O Ataque de Searle a I.A. Forte

Caso John R. Searle não tivesse escrito o artigo “Mind, Brains and Programs”, em 1980, talvez ficasse conhecido apenas como filósofo da linguagem autor da teoria d’Os Atos de Fala (1969), onde os enunciados linguísticos eram considerados além de sua estrutura sintática e semântica. Pois também precisava ser levado em conta o comportamento ilocucionário do falante – declarar, ordenar, prometer, aprovar etc – portadores de intenções para ação. Sob esse aspecto, Searle pretendia apresentar claramente as regras constitutivas e reguladoras que distinguem cada ato de linguagem.
A partir do começo dos anos 80, o debate em torno de seu polêmico artigo motivou uma guinada na sua linha de pesquisa, passando da linguística, para a crítica filosófica da ciência cognitiva. Em 1984, ele repetiu o ataque desferido em 1980, numa série de palestras radiofônicas, promovidas pela emissora britânica BBC. O livro Mente, Cérebro e Ciência é o resultado dessas conferências postas em forma impressa, acrescido das respostas às objeções que lhe foram lançadas antes. Trata-se, então, de seis seções coordenadas aos temas do funcionamento do cérebro humano; à consideração da mente como fenômeno biológico e à categorização dos termos tradicionais relacionados com o processo mental. Do quarto capítulo em diante, Searle procura explicar a estrutura da ação humana, o método das ciências sociais para o estudo do comportamento e a liberdade da vontade frente às colocações apresentadas sobre o funcionamento da mente.
Logo de início, portanto, o clássico problema da relação corpo e mente, inaugurado por René Descartes, é abordado, no intuito de esclarecer a interação entre os fenômenos mentais e o organismo. Em poucas palavras, admite-se que a posição fisicalista ingênua, que diz ser tudo existente no mundo um composto de partículas físicas, não é passível de refutação. Assim, como o mentalismo ingênuo, por sua vez, é bem sucedido ao afirmar a existência efetiva dos estados mentais. Destarte, tanto o mentalismo, como o fisicalismo, seriam posições consistentes em si e verdadeiras [1].

Computadores Não Pensam

Para Searle, não haveria problemas em aceitar a existência da mente e do corpo como fenômenos naturais, sendo a primeira causada por uma atividade dos componentes físicos do cérebro. Todo embaraço surgia na pretensão da teoria computacional em reproduzir uma inteligência artificial (I.A.) que pudesse ser causada por qualquer outro aparato físico desde que bem montado. A chamada I.A. forte erraria ao considerar o cérebro humano como um computador digital e a mente como seu programa.
De acordo com essa postura, não haveria nada de especial na constituição biológica da mente e um computador feito com outro material, totalmente diferente, poderia executar o programa cognitivo, sendo somente uma questão de tempo a reprodução da configuração exata da mente. Nessa perspectiva, seria possível as máquinas pensarem, uma vez que os símbolos formais permitiriam transportar os processos lógicos realizados pelo cérebro para um mecanismo inorgânico.
Entretanto, o fracasso da teoria computacional não estaria nas suas deficiências tecnológicas, mas na sua concepção de computador digital, pois tais equipamentos possuiriam a capacidade sintática de manipular símbolos abstratos e não a semântica que forneceria o significado das expressões linguísticas. A mente, além da sintaxe, possuiria essa semântica necessária para preencher conteudisticamente sua estrutura formal. Desse modo, para refutar a hipótese do computador sintático, Searle propôs o experimento mental do “quarto chinês”, no qual uma pessoa isolada reproduziria as instruções formais contidas dentro do cômodo, mas não teria a compreensão do que estaria fazendo.
Um falante de uma língua ocidental -o português, no nosso caso- é isolado numa sala que contém vários símbolos em mandarim -língua oficial da China-, cujo significado ele desconhece. Sobre uma mesa, há um manual em português com regras de como o “lusófono” deve entregar os símbolos corretos, toda vez que determinados cartões, em mandarim, lhe forem mostrados. Desse modo, observando no manual a correlação específica entre os sinais recebidos e os enviados, a pessoa dentro da sala, induz o destinatário de seus cartões, do lado de fora, falante do mandarim, a acreditar que ele compreende sua língua. No entanto, o falante do português trancado na sala, na verdade, não entende uma palavra em mandarim. Tudo que ele faz é seguir as instruções contidas no manual. Moral da história: se o manual, semelhante ao programa de um computador, não ensina palavra alguma em outra língua ao leitor, então nenhum computador, ao executar um programa, compreende o conteúdo daquilo que está sendo processado. Tal como o personagem na sala, o computador apenas segue as instruções formais para manipular símbolos em uma sintaxe correta, sem compreender seu significado semântico [2].
Com isso, Searle atacava a pretensão de que o teste de Turing fosse suficiente para atribuir corretamente uma mente a máquinas, pois seu desempenho poderia ser uma mera imitação formal, sem entendimento do conteúdo da ação. Por apresentar apenas um comportamento sintático formalmente correto, o computador não conhece a semântica, o contexto real de sua atuação, ou a intenção de seus estímulos ou respostas [3].
Disso tudo, extrai-se que a falta de uma semântica não permitiria ao programa fornecer à máquina uma compreensão de suas ações, pois esta não saberia o significado das expressões envolvidas no processamento das informações. Contudo, por mais óbvias que fossem essas colocações, várias críticas foram lançadas por parte dos teóricos da computação e outros filósofos. Entre elas, afirmou-se que, embora a pessoa dentro de um compartimento não soubesse o que estava fazendo, o quarto e o sistema, como um todo, saberiam; ou se um programa fosse instalado num robô, ele se comportaria como quem compreendesse o que faz. Porém, Searle insistiu que, fosse ele tal robô, não seria ainda capaz de entender nada, apenas seguindo as instruções formais e sintáticas, pois faltaria o significado e a semântica necessária para tanto. As interações do equipamento com o ambiente seriam irrelevantes nesse caso.
Entender uma Língua

Na historieta de Quino, a diferença entre aplicar uma regra e entendê-la.

Só máquinas biológicas, como os seres humanos, poderiam causar os efeitos que caracterizam a mente. Nenhuma outra seria capaz de pensar usando tão somente regras sintáticas, pois é o conteúdo semântico que dá o significado. Independente do estágio tecnológico alcançado pela I.A., a simulação da mente não será bem sucedida se o computador não puder duplicar as causas mentais, que permitem ao cérebro secretar a consciência. Afinal, a imitação por si só não constitui a coisa imitada.
O cientista cognitivo canadense, Zenon W. Pylyshyn, criticou essa vinculação entre intencionalidade e o aparato físico cerebral, feita por Searle. Semelhante aos contos “Segregacionista” e “O Homem Bicentenário”, de Isaac Asimov, Pylyshyn imaginou a substituição gradual das células nervosas por circuitos eletrônicos integrados que mantivessem a mesma função delas, até chegar o ponto em que a pessoa, subjetivamente, perdesse a compreensão do significado de suas ações. Nesse momento, todos os seus amigos, do ponto de vista objetivo, continuariam entendendo suas palavras como se elas remetessem a alguma intencionalidade.
Apesar desse embaraço, Searle continuou mantendo sua posição de que bastam apenas dois níveis de explicação -intencional e fisiológico- para entender porque o cérebro realiza estados intencionais. Destarte, ele abandona a ideia de que haja um programa de computador entre a mente e o cérebro e com ela a necessidade de um nível de representação simbólica [4].
A inspiração do “quarto chinês” é uma adaptação de experimento semelhante imaginado por Ned Block no artigo “Troubles With Functionalism” (Problemas com o Funcionalismo, 1978). O chamado “ginásio chinês” reunia, num estádio maior que o Maracanã, milhões de pessoas para que elas transmitissem sinais umas às outras, por meio de rádios de fala-escuta -numa analogia ao funcionamento dos neurônios. Assim, seguindo uma série de regras, a multidão conseguiria responder a perguntas sobre histórias em mandarim, embora o ginásio não entendesse uma palavra dessa língua. É curioso notar que a intenção de Block era defender a teoria computacional do cérebro, o oposto do que Searle propôs [5]. Contra o conexionismo, Searle diz que as conexões correspondentes às sinapses neurais não simulam as propriedades causais que provocam a sua compreensão, por mais perfeita que seja a emulação do funcionamento do cérebro. Falta-lhes habilidade para produzir estados intencionais. Para Searle, “a mente e o corpo interagem, mas são duas coisas diferentes, visto que os fenômenos mentais são justamente características do cérebro”[6]
Em todas as teorias computacionais, existiriam certas características de fundo behaviorista e dualista, o que seria fonte de suas inconsistências. Ambas motivações podem ser refutadas pela afirmação de que a mente nada mais é do que um fenômeno biológico natural do mundo. Resumindo, Searle propõe as seguintes teses que refutariam a postura forte da I.A.: primeiro assumindo que os cérebros causariam a mente; segundo, que a sintaxe não é suficiente para gerar a semântica; terceiro, que os computadores só são capazes de ser definidos por uma estrutura formal sintática; quarto, que a mente possui conteúdos mentais semânticos. Logo, conclui-se que nenhum programa proporciona uma mente ao computador e nem esta pode ser entendida como tal. Não é o programa que faz as funções cerebrais causarem a mente. A biologia do cérebro precisa exercer algum papel nisso. Tudo o que causa a mente deve ter, essencialmente, o mesmo poder causal dos cérebros humanos, o programa por si só não é suficiente.
Em suma, como diz Searle: “a consciência, a intencionalidade, a subjetividade e a causação mental fazem parte de nossa história vital biológica, juntamente com o crescimento, a reprodução, a secreção da bílis e a digestão” [7].

Notas

1. Veja SEARLE, J.R. Mente, Cérebro e Ciência, cap. 1, pp. 11-33.
2. Veja SEARLE, J. R. Op. Cit, idem, pp. 39-41.
3. Veja GARDNER, H. Ibidem, ibidem, pp. 187-188.
4. Veja GARDNER, H. Ibidem, ibidem, pp. 188-191 e SEARLE, J. R. Ibidem, cap. III, pp. 66-70.
5. Veja PINKER, S. Op. Cit. idem, pp. 104-105.
6. SEARLE, J. R. Idem, cap. I, p. 33.
7. SEARLE, J. R. Ibidem, cap. II, p. 51.

Referências Bibliográficas

GARDNER, H. A Nova Ciência da Mente; trad. Cláudia M. Caon. – São Paulo: EDUSP, 1995.
PINKER, S. Como a Mente Funciona; trad. Laura T. Motta. – São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SEARLE, J.R. Os Atos de Fala; trad. Carlos Voigt et.al. – Coimbra: Almedina, 1984.
________,___. Mente, Cérebro e Ciência; trad. Artur Morão. – Lisboa: Edições 70, 1984.

Deixe um comentário