Jornalismo Sob Perspectiva Filosófica

O advento da filosofia constitui um acontecimento especial na história. Sem estarem vinculados a cargos religiosos ou políticos, alguns homens de uma região litorânea específica da Ásia menor, em uma época típica da antiguidade, ousaram lançar opiniões divergentes do modo de pensar mítico-teológico dominante. Procederam assim primeiro ao estudarem a natureza, depois com os costumes, as crenças, o convívio humano, a melhor maneira de argumentar e o gosto da sociedade.
Desse modo, indivíduos que de outra forma seriam ignorados pela história puderam gravar seu nome para a posteridade. Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Xenófanes e Heráclito, na Jônia; seguidos de Pitágoras, Parmênides e Empédocles, na Magna Grécia; depois por Sócrates, Platão e Aristóteles, na Ática, entre outros, tornaram-se proeminentes devido à força de suas palavras e pela capacidade elevada de raciocínio. Essas pessoas tinham como principal preocupação a busca do conhecimento verdadeiro. Por conseguinte, iniciaram a investigação dos fatos, cujas narrativas da tradição estavam repletos de fantasias. Observaram com atenção o comportamento humano e suas experiências no mundo, para então proporem uma explicação e justificação sobre suas princípios e fins.
Ao agirem assim, permitiam que outras pessoas pudessem contestá-los, se, baseados em uma melhor observação, tivessem elaborado uma teoria mais consistente. Isto é, um conjunto de sentenças que poderiam ser todas interpretadas como verdadeiras. Com isso, estava a se formar. Destarte, começava a se construir a concepção de que o pensamento poderia ser aperfeiçoado pelo confronto de conceitos e juízos bem definidos. Para tanto, bastava que a investigação dos fatos pudesse ser fundamentada pela justeza da ordenação do discurso e pela aceitação de todos sobre sua validade.
A invocação de uma crença religiosa, arraigada na tradição, ou de uma autoridade política, estabelecida pela força das armas, deixava de ser fonte de argumentos válidos. A partir dos primeiros pensadores helenos, o poder do melhor argumento residirá na correta inferência conclusões extraídas de premissas consideradas verdadeiras. Quem pudesse sustentar seus argumentos dessa maneira seria o “dono da verdade”, até que uma melhor interpretação ou uma nova experiência viesse a refutá-lo.
Nesse sentido, a organização política das cidades-estados helênicas (poleis) foi um aspecto crucial para o desenvolvimento inicial da filosofia. Pois, no centro da polis estava a praça pública (ágora), onde os cidadãos podiam discutir abertamente sobre as leis (nomoi) que comandavam e ordenavam a comunidade, bem como os princípios originais (archai) de todo universo. Fosse esse princípio a água, algo indefinido, o ar, o fogo, a própria Terra, pouco importa, o ponto decisivo para a história da humanidade consiste em saber que por causa do debate filosófico foi possível aos seres humanos tomar consciência dos seu lugar entre os fenômenos do mundo. A progressiva especialização dos estudos permitiu tornar cada vez mais precisa as ações sobre a natureza, obtendo desta os recursos para uma melhor sobrevivência e uma reprodução tranquila a todos.

O Fato Filosófico

Em artigo publicado dia 18 de agosto de 2007, o experiente colunista brasileiro Carlos Chagas, ao defender a exigência de diploma para o exercício do jornalismo, listou uma série de matérias imprescindíveis “ao jornalista conhecer história, geografia, filosofia, ética, economia, semântica, línguas e outras ciências capazes de levá-lo ao bom desempenho de suas funções” [1]. De todas as disciplinas relacionadas, exceto por “línguas”, as demais encontram suas origem na própria filosofia.
História, ou investigação, era assim que o pensador Pitágoras de Samos (c. 582-497 a.C.) concebia seu método de busca de conhecimento. Anaximandro de Mileto (c. 610-547 a.C.) foi o primeiro a projetar um mapa do mundo conhecido em seu tempo, nos primórdios da geografia. Além do estudo da natureza, a fundamentação das leis que norteiam a convivência em sociedade, bem como a procura da felicidade, sempre foram algumas das principais preocupações dos melhores filósofos. A ciência econômica começou por iniciativa das pesquisas filosóficas expostas por Adam Smith (1723-1790) em Teoria dos Sentimentos Morais (1759) e A Riqueza das Nações (1776). A semântica, por sua vez, é uma área da filosofia da linguagem que avalia o valor de verdade que dá significado às frases bem formuladas, relacionando-as com seus objetos. Do mesmo jeito, outras ciências, como a biologia, a matemática, lógica, informática etc, invariavelmente tiveram seu ponto de partida para sua especialização nas doutrinas de um filósofo.
Hoje em dia, a importância da filosofia decorre não só de seu histórico papel de geradora do conhecimento, mas, sobretudo, por ser o lugar da reflexão crítica dos inúmeros desafios que são apresentados em todo âmbito da atividade humana. Nos diversos centros acadêmicos de excelência espalhados nos Estados Unidos, Europa, Ásia e Oceania, são os filósofos que discutem se os conceitos designam com adequação as características próprias dos objetos referidos, se tais referências sustentam a verdade das proposições derivadas e se tais conceitos se relacionam a ponto de formar um raciocínio correto. Bons argumentos são aqueles que partem de sentenças verdadeiras e permitem chegar a conclusões válidas.
Pelos métodos de aferição das teorias filosóficas, outras disciplinas podem averiguar se suas hipóteses científicas estão livres de contradição. O jornalista com formação filosófica pode então, antes mesmo de consultar suas fontes, saber se as afirmações de um entrevistado são condizentes com o que foi declarado previamente. Pode também servir-se da filosofia para evitar erros grosseiros na elaboração de um texto, à medida que descobre estarem os fatos, da perspectiva filosófica, sujeitos à contestação, ao contrário dos objetos e dos acontecimentos no mundo.
Por objetos, entenda-se os materiais sobre os quais se pode fazer experiências, coisas que existem no mundo. Os objetos empíricos, portanto, são a matéria-prima dos acontecimentos, ou fatos, dos quais são feitas afirmações. Assim, os fatos narrados podem ser verdadeiros ou falsos, se forem ou não apoiados pelos objetos de experiência. Tal conclusão, contudo, não deve significar que é suficiente verificar a correspondência dos fatos com as coisas no mundo, para se aferir a sua validade. Pois ao invés de serem apenas uma constatação da ação física exercida pelos e sobre os objetos – como são todas experiências -, os fatos são representados através de enunciados que informam algum acontecimento no mundo. Por exemplo, se “o sinal estava amarelo”, quando o automóvel avançou o cruzamento, ou se “a pista estava escorregadia”, no momento do desastre aéreo.
Fatos são sempre afirmações cujo conteúdo informativo pode ser questionado. Sendo apenas enunciados ou proposições linguísticas, exigem do falante esclarecimentos para serem aceitos pelos ouvintes como válidos. Logo, é no contexto do debate, da discussão argumentada, que os fatos podem ser considerados válidos ou não. Objetos empíricos podem ser identificados nos enunciados aos quais são referências, mas estes precisam ser compreendidos por meio de discursos e não da repetição exaustiva de experiências que, por seu turno, demandam, novas interpretações. As experiências somente apoiam as asserções enquanto nenhuma outra que se oponha a seus resultados for realizada. A pretensão de verdade dos fatos enunciados só pode ser resgatada através da argumentação. Nas palavras do filósofo alemão Juergen Habermas, “pensamentos sobre objetos de experiência não são o mesmo que experiência, ou percepções dos objetos” [2].

O Fato Cultural

Diferente do senso comum, que tende a considerar os fatos como incontestáveis, a filosofia os trata como afirmações sobre o mundo que nada mais são além de interpretações passíveis de refutação. Da mesma forma, teorias científicas precisam estar sujeitas a experiências que possam rejeitá-las, a fim de se distinguirem das crenças e dogmas da tradição, cujo valor de verdade não podem ser testados. Foi Karl Raimund Popper (1902-1994), um filósofo austríaco, quem primeiro estabeleceu o critério de falsificação para as teorias científicas [3]. Desde então, nas ciências, abandonou-se a pretensão positivista de verdade absoluta, no que diz respeito à produção de conhecimento.
A teoria discursiva da verdade, de Habermas, e o critério de falsificação, de Popper, são ainda compatíveis com a definição semântica de Alfred Tarski (1902-1983) para sentenças verdadeiras. Em “The Semantic Conception of Truth and the Foundations of Semantics” (A Concepção Semântica da Verdade e os Fundamentos da Semântica, 1944), Tarski definiu que “uma sentença é verdadeira se é satisfeita por todos objetos, e falsa de outro modo” [4]. Desse modo, tanto a semântica, como a pragmática linguística e a hipótese científica estão aptas para reconhecer as relações entre os objetos e suas expressões, na língua natural ou formal. Todavia, se as proposições teóricas encontram um critério válido de legitimação na discussão argumentada, o mesmo não ocorre com os juízos estéticos e toda avaliação da produção cultural de uma sociedade. Fatos culturais, por definição, não estão diretamente relacionados com objetos empíricos ou acontecimentos no mundo. Toda sua avaliação depende da subjetividade do gosto de cada um. Objetos empíricos podem sustentar, em última instância, a validade de uma interpretação dos fatos acerca dos fenômenos no mundo. No entanto, não são apropriados para sustentarem qualquer juízo sobre a beleza de uma obra de arte ou sobre o sublime de um evento natural. Muito menos pode a estética ser fundamentada em dogmas ou crenças tradicionais.
Por causa de sua concepção subjetiva, os conceitos e juízos da estética constituem um conjunto de problemas de solução mais difícil para a filosofia. Na estética, a batalha por definições deterministas, absolutas e precisas ficou completamente comprometida pela barreira intransponível da subjetividade. Se algum critério sobrou para aferir a validade dos juízos estéticos foi o da comunicação e do discurso previsto pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) em sua Crítica do Juízo (1790) [5]. Deixando de lado as longas considerações em relação ao estatuto da beleza natural e do sublime na natureza, são objetos estéticos e culturais todos produtos da criação humana. Desde pontes suspensas por cabos até anéis de diamantes, passando por lavouras de canas de açúcar, todo objeto produzido pelo trabalho humano pode ser considerado belo ou não. Tudo dependerá do gosto individual e da concordância de todos sobre os juízos estéticos emitidos por este. Só quando todos concordarem sobre a legitimidade de tal pretensão do sujeito, é que seus conceitos poderão ser aceitos como objetivamente válidos. A beleza universal de um objeto artificial pode então ser defendida se houver um consenso entre todos concernidos.
Um jornalista que atue no setor cultural deve estar atento, portanto, que, para um objeto de arte ser avaliado como belo não basta apenas a opinião de um especialista – seja este crítico de arte, marchand (negociante), ou curador. É preciso que também seja ouvida a palavra do artista, do público, proprietário ou financiador, no sentido de se encontrar o valor universal objetivo da obra em questão. Na falta de outro critério mais preciso – como seria a experiência de campo ou análise laboratorial -, resta estar atento para condição de sinceridade das declarações prestadas e as atitudes consequentes de cada agente cultural. Isto pode ser percebido pela clareza na forma que os argumentos são construídos – sem apelo à autoridade ou ataque pessoais (argumentum ad hominem) – em torno do objeto descrito como belo artístico. Bons candidatos à beleza universal são o Taj Mahal, a poesia de Safo de Lesbos (c. 630-580 a.C.), o teatro da Ópera de Pequim, as Cantatas de Johann Sebastian Bach (1685-1750), os filmes de Akira Kurosawa (1910-1998), as estátuas de Michelangelo Buonarroti (1475-1564) e os quadros de Leonardo da Vinci (1452-1519).

Notas

1. CHAGAS, C. “O Açougueiro, o Camelô e o Jornalista”, in Tribuna da Imprensa, 18 de agosto de 2007.
2. HABERMAS, J. “Teorías de la Verdad”, I, p. 119.
3. Veja POPPER, K. Lógica da Pesquisa Científica.
4. TARSKI, A. “The Semantic Conception of Truth and the Foundations of Semantics”, § 11. Existe um debate interminável para saber qual seria o melhor critério para fundamentar a verdade de um fato, ou enunciado. Os listados aqui disputam fortemente a prevalência sobre os demais. A intenção deste artigo é tão somente mostrar que, embora divergentes em muitos pontos, as teorias da verdade são capazes de defender com bons argumentos as condições de verdade em diversos aspectos das linguagens formais e ordinárias, além da prática científica. Algo bem diferente do que acontece no âmbito da cultura, ou estética. Uma maior discussão sobre o assunto, entretanto, está fora do alcance deste texto.
5. Veja KANT, I. Crítica do Juízo, §§ 38 a 41.

Referências Bibliográficas

CHAGAS, C. “O Açougueiro, o Camelô e o Jornalista”, in Tribuna da Imprensa, 18 de agosto de 2007.
HABERMAS, J. “Teorías de la Verdad”, in Teoría de la Acción Comunicativa; trad. Manuel J. Redondo. – Madrid: Catedra, 1994.
KANT, I. Critica del Juício; trad. Aleio G. Moreno. – Madrid: Francisco Iravedra, 1876.
POPPER, K. Lógica da Pesquisa Científica; trad. Leonidas Hegenberg e Octanny S. da Mota. – São Paulo: Cultrix, 1975.
TARSKI, A. “The Semantic Conception of Truth and the Foundations of Semantics”, in Philosophy and Phenomenological Research, 4. 1944.

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