Falácia de “Falácia das Falácias”

FaláciasEM 1989, o filósofo analítico finlandês Jaakko Hintikka (1929-2015) lançou um artigo intitulado “The Fallacy of Fallacies” (A Falácia das Falácias), no qual pretendia mostrar que as assim chamadas falácias não passavam de erros de estratégia tomados em um “jogo interrogativo”, ao invés dos erros de inferências assim considerados, desde Aristóteles. Um jogo interrogativo seria aquele no qual os jogadores trocam perguntas e respostas, a fim de encontrar a verdade sobre um assunto. Uma determinada questão é posta inicialmente, por um inquiridor que faz perguntas passíveis de serem respondidas com um simples “sim” ou “não”, pelo respondente. Na prática, quem fornece as respostas não precisa ser uma outra pessoa. Pode ser também um banco de dados ou a própria natureza, sobre os quais se buscam informações que resolvam uma dúvida inicial feita pelo pesquisador.
Tal modelo de questionamento seguiria o antigo método adotado por Sócrates, em sua maiêutica, ou na dialética platônica. Hintikka defende, em seu ensaio, que o modelo interrogativo serviria de base para a lógica e o método de inferência criado por Aristóteles, no Organon [Veja HINTIKKA, J. The Fallacy of Fallacies, §§ 1 e 3, pp. 193 e 194]. O que não significa que todas as falácias mencionadas nesse conjunto de texto fossem isentas de erros lógicos ou conceituais.
Não obstante, pelo menos em um sentido, todas as falácias apresentadas nos Tópicos e Argumentos Sofísticos, em particular, teriam essencialmente um erro de questionamento e, por acidente, raciocínios dedutivos confusos, segundo Hintikka. As primeiras premissas das ciências reconhecidas por Aristóteles teriam sido geradas por algum tipo de processo de questionamento. Em geral, os maiores erros contidos na teoria das falácias residiriam na “petição de princípios” – quando se retorna à questão original – feita quando os debatedores se afastam das respostas exigidas pelo tema proposto.
Como é sabido, em uma discussão dialética, as premissas partem de opiniões geralmente aceitas (endoxa) a fim de encontrar uma solução comum para um caso particular a ser tratado. De um modo geral, o método dedutivo seria a base da silogística e da lógica aristotélica. Sócrates e Platão, por sua vez, iniciavam um debate com uma ideia considerada válida para, em seguida, derrubá-la ou encontrar um obstáculo intransponível (aporia). Na maiêutica (parto das ideias) socrática, por outro lado, o objetivo era mostrar que o conhecimento estaria adormecido ou oculto na mente humana, a espera de alguém que pudesse trazê-lo à luz. Tal concepção de inatismo aparece nitidamente no diálogo Ménon, onde Sócrates consegue extrair de um jovem escravo respostas que não se imaginava que ele pudesse fornecer [Veja PLATÃO. Ménon, 82 a 85]. A noção de reminiscência está no fundo da maiêutica pela qual Sócrates costumava dizer que trabalhava como um obstetra da alma, fazendo o parto de quimeras ou verdades [PLATÃO, Op.Cit, 81c-e e Teeteto, 150b].
A teoria da reminiscência faz uso da dialética, na forma de diálogos com perguntas e respostas, como meio de fazer com que o respondente recorde as ideias adormecidas na mente humana [Veja PLATÃO, Ménon, 81d]. Aristóteles fazia uso da dialética a fim de extrair do interlocutor as premissas necessárias que levassem a uma conclusão que favorecesse um dos lados da discussão [Veja BERTI, E. As Razões de Aristóteles, cap. I, p. 21]. Ao contrário de Platão, Aristóteles não esperava encontrar ideias inatas, mas um ponto de partida reconhecido como válido (endoxa), para encaminhar o diálogo ao fim esperado: a vitória sobre a contradição do oponente. Portanto, esse ponto de partida original mais as perguntas subsequentes que conduzem o raciocínio público, constituem a dialética clássica, como os primeiros pensadores entendiam, mas não um jogo interrogativo como quer Hintikka. O debate é público e a participação da plateia, como juiz da demanda, é fundamental. e eximir de reconhecer sua contradição leva à reprovação dos ouvintes. A dialética, portanto, exigiria a participação de um terceiro jogador, o público, a fim de que o resultado final fosse atribuído a um dos debatedores.
Na interpretação de Hintikka, o jogo interrogativo era praticado por Sócrates, a fim de obter a verdade através de perguntas e respostas, sem nenhum ponto de partida pré-concebido. Por vezes, no entanto, a discussão terminava em dificuldades intransponíveis (aporia). A dialética platônica – que também usava o diálogo como modelo – também teria por objetivo a busca do conhecimento, embora, por sua vez, refutasse as ideias prévias contrárias. No confronto com sofistas, a dialética servia, amiúde, para combater as noções opostas radicais (erística), consideradas erradas.

Aristóteles conhecia bem essa prática questionadora. Era capaz de distinguir três tipos de silogismos diferentes que poderia formar: os demonstrativos, os dialéticos e os erísticos [ARISTÓTELES, Tópicos, 1, 1, 100a e b]. Ele próprio fez uso da dialética e do método de perguntas e respostas no intuito de resolver problemas cognitivos em sua obra. A busca da verdade e da causa racional sempre foram seus objetivos principais. Hintikka atribui, no entanto, ao jogo interrogativo essa função esclarecedora. Para este, os erros de estratégias e a presunção de que se poderia persuadir alguém fugindo das respostas à questão principal é que impediriam que o conhecimento fosse alcançado [HINTIKKA, J. “Fallacy of Fallacies”, §21 e 22, p. 212].

Questionamento, Dialética e Mais Falácias

Para Hintikka, a dialética e os diálogos socráticos estariam na origem dos jogos interrogativos. A silogística aristotélica e sua lógica de inferências também dependeriam da maneira correta de se fazer perguntas e fornecer respostas de teor científico. Não obstante, as técnicas empregadas na dialética, seja esta platônica ou aristotélica, já levavam em conta as práticas mais efetivas para se questionar um debatedor. Não faziam isso, evidente, pensando na forma de um jogo interrogativo, mas de condução de uma discussão no caminho que consideravam mais adequado para se encontrar as informações que buscavam. De outro modo seria um anacronismo completo pensar que os antigos antecipavam a teoria dos jogos interrogativos, antes de John Von Neumann (1903-1957) formular suas ideias revolucionárias – que interpretava as interações humanas como jogos, cooperativos ou não, composto por jogadores, estratégias e recompensas.
Aristóteles em texto árabe

A influência de Aristóteles se estendeu por várias civilizações. Ilustração de um texto árabe, arquivado na Biblioteca Britânica, mostra Aristóteles falando a um discípulo.

Sócrates, Platão e Aristóteles sabiam da importância de se conduzir um debate na forma de diálogos com perguntas e respostas. A dialética assumiu um caráter específico de disputa de ideias, no confronto com os sofistas em praça pública. Aristóteles foi além da dialética desenvolvendo uma forma de raciocínio que dispensava, a priori a participação de um respondente. Com sua lógica silogística, poderia antecipar os erros de raciocínio cometidos por quem não souber extrair conclusões corretas de premissas reconhecidas por todos. Isso tornava explícito, os erros de inferências cometidos intencionalmente ou não, durante a argumentação. Não apenas escolhas de estratégias equivocadas, mas erros efetivos de entendimento. Quando esses equívocos acontecem na busca de conhecimento verdadeiro, as consequências podem ser muito graves, com a manipulação e a força política subvertendo os fatos segundo os seus interesses escusos. A dialética clássica, então, diferente do jogo interrogativo, possui no público um agente que exerce o papel de juiz que decide se um debatedor tem pretensões de verdades válidas, de modo intersubjetivo.

A intensão inicial de Hintikka era parar a literatura sobre as falácias tradicionais. Entretanto, ao final de seu ensaio, se contentava em identificar os elementos interrogativos passíveis de abrir a porta para descoberta de novas falácias nos moldes da teoria dos jogos, na análise dos resultados obtidos por determinadas estratégias na busca de conhecimento [HINTIKKA, J. Idem, §§1 e 21, pp.193 e 212]. Não obstante, seja pelo novo método proposto ou pela antiga teoria das falácias, o certo é que novos erros de raciocínio ou de “estratégia de questionamento” foram apontados, depois de seu trabalho ser lançado.
O filósofo sueco Sven Ove Hansson, em 2001, apresentou nada menos que 10 falácias sobre o risco na forma tradicional de inferências. A falácia da insignificância ocorre quando se conclui que, por causa do pequeno risco de algo acontecer, se pode aceitá-lo porque é menor do que outro já aceito. Na falácia da insignificância reversa, por sua vez, quando o risco de algo é maior do que outro não aceitável, não deve ser aceito. A falácia da naturalidade, a terceira, diz que algo é aceitável por ser natural. A falácia do avestruz imagina se algo não dá sinais de risco detectável, então não dá sinais de algum risco inaceitável. Já na busca de provas, se não há provas de que algo é perigoso, então nada deveria ser feito contra isso. A falácia do atraso espera mais informações sobre risco, antes de tomar alguma medida imediata sobre algo. Para a falácia tecnocrática, se algo é um problema científico perigoso, então só os cientistas poderiam determinar se é um risco aceitável ou não. A oitava falácia, a do consenso, exige que haja um consenso entre os especialistas, nas demandas que lhes são feitas. A falácia da precificação quer saber qual o custo e os benefícios para se aceitar os riscos de uma coisa perigosa. Por fim, na falácia da infalibilidade, quando especialistas e o público discordam sobre um assunto, então o público está errado e os especialistas certos [Veja HANSSON, S.O. Fallacies of Risk, 2001].
Mesmo Hintikka apresentou outra, “falácia da embromação (snowjob)”, descoberta com o uso do modelo de jogos interrogativos. Pela falácia da embromação, um jogador cometeria um erro estratégico ao continuar fornecendo sucessivamente fatos que nada contribuem para se encontrar uma resposta à questão principal. A falácia comprova a inutilidade de uma estratégia embromadora na tentativa de persuadir um debatedor atento [Veja HINTIKKA, J. Idem, nota 40, pp. 217 e 218].

A interpretação das falácias tradicionais, ou erros de inferências, sob o método da teoria dos jogos foi uma contribuição inovadora para a teoria das falácias contemporânea, baseada em jogos. Erros de raciocínio acontecem sempre e a silogística aristotélica foi um avanço espetacular em relação à dialética socrática ou platônica. Tal como, dois milênios depois, os jogos interrogativos foram à lógica das inferências e à própria teoria dos jogos.

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. – Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
____. Tópicos. – São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BERTI, E. As Razões de Aristóteles. – São Paulo: Loyola, 1998.
HANSSON, S.O. “Fallacies of Risk”. – Stockholm: Royal Intitute of Technology, 2001.
HINTIKKA, J. “The Fallacy of Fallacies”, in Analyses of Aristotle. – Dordrecht: Kluwer, 2004.
PLATÃO. Menon. – Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
____. Teeteto. – Belém: Universidade Federal do Pará, 1973.

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