Corrupção do Judiciário

OS efeitos destruidores da corrupção são conhecidos da humanidade desde suas primeiras civilizações. Vários documentos, ao longo da história, registram as tentativas de controlá-la. Sem uma forte vigilância e a instituição de punições que a restrinjam, a corrupção permanece em um ciclo endêmico de cooperação-deserção-repressão que acaba por reduzir o número de cooperadores espontâneos e o empreendimento comum.
No conjunto de determinações feitas pelo rei Hamurabi (cc.1792-1750 a.C.), na Babilônia, há a decisão inicial de punir com multa e deposição do cargo os juízes que alterarem o resultado de um julgamento realizado antes. A alteração da coisa julgada foi uma das primeiras preocupações dos operadores do direito originais. Qualquer mudança feita nas sentenças obrigaria o pagamento de 12 vezes o valor da causa e a consequente demissão do juiz infrator [1]. O Deuteronômio, no Antigo Testamento, também proibia ao juiz distorcer a justiça, aceitar suborno e, por conseguinte de “subverter a causa dos justos” [2].
Enquanto se mantiveram fiéis às leis ditadas pelo lendário Licurgo (séc. IX a.C.), os espartanos formaram uma sociedade considerada exemplo de virtude em toda Hélade antiga. Platão (429-347 a.C.) recomendava, em sua VIII Carta, o respeito à instituição das leis como as modeladas em Esparta, que deveriam se tornar soberanas sobre os homens, em vez destes serem os tiranos da lei [3]. Platão sabia que, mesmo as melhores constituições estão sujeitas à corrupção, devido o caráter de seus governantes e sua constante mudança.

Aristóteles (384-322 a.C) conheceu as leis de Esparta quando a cidade havia atingido seu auge e conquistado a hegemonia política sobre as outras poleis. A cobiça e a divisão de poderes abalavam suas convicções nas leis mais rigorosas, que deixavam de fazer valer seu caráter marcial [4]. Tais críticas não impediram Xenofonte (428-354 a.C.) de reconhecer, apesar da decadência observada em seus tempo, o valor do vigor com o qual os espartanos combatiam a corrupção na Lacedemônia, através de suas regras. Do mesmo modo que Plutarco (50-120), séculos depois [5].

O Estado Moderno contra a Corrupção

No século XVII, entre duas revoluções inglesas – a Puritana (1642-1649) e a Gloriosa (1688) – Thomas Hobbes (1588-1679) estava em condições de descrever os fundamentos de uma legislação consensual, cuja função seria impedir o estado de natureza, no qual prevalece a “guerra de todos contra todos” – como nos casos das revoluções. Por meio de acordos estabelecidos entre as pessoas, a instituição de um estado soberano e o respeito às leis estabelecidas poderia reestabelecer a paz e reorganizar a sociedade, de modo que a cooperação entre os cidadãos pudesse prosperar novamente [6]. A natureza violenta é o cenário concebido por Hobbes, onde cada um pode dispor dos recursos disponíveis, do seu corpo e dos outros rivais, segundo sua capacidade de dominá-los.
Uma situação geral que, no século XX, Garrett Hardin (1915-2003) denominou de “tragédia dos comuns”, em seu famoso artigo de 1968 para revista Science. Um lugar sem dono, ou um bem comum, que pode ser explorado livremente por quem tem acesso, conforme suas vontades e capacidade de exploração. Nessa situação, em pouco tempo, os recursos logo se esgotam e a luta para utilização do material restante acaba sendo mais custosa do que seu valor real para aquisição. A luta pela sobrevivência e manutenção do terreno acabam por elevar as despesas dos utilizadores a valores maiores do que gastavam antes de ocupar a área devoluta. Sem uma lei ou acordo que limitasse o direito de cada um para exploração do bem, a perda desse bem se torna inevitável. A solução, portanto, seria o estabelecimento de pactos e contratos que regulassem a utilização dos recursos naturais a disposição de todos.

O único tipo de coerção que eu recomendo é a coerção mútua, mutuamente acordada pela maioria das pessoas afetadas (HARDIN, G. A Tragédia dos Comuns, p. 10).

Contudo, como Hobbes alertara, tais acordos coercitivos de nada serviriam sem a intermediação de um árbitro com poderes para solucionar as disputas e os descumprimentos dos contratos estabelecidos entre as partes. Um mediador que pudesse intervir, para garantir o cumprimento do que havia sido acordado e assim manter a paz e a segurança necessárias, no desenvolvimento de negócios e dos trabalhos construtivos [7].

A invenção de um estado civil ajuda à promoção dos pactos. Por outro lado, se os árbitros e mediadores responsáveis pela fiscalização dos contratos forem corrompidos, retorna a condição original de natureza, na qual a desconfiança entre os homens destrói qualquer possibilidade para continuação da cooperação.

O Jogo da Corrupção

A racionalidade econômica comanda as decisões em um jogo de corrupção. Desde Hobbes, tal racionalidade ficara evidente. Não se conhecia, no entanto, os detalhes precisos que levam à degradação da cooperação. Na ausência de mediadores confiáveis – que recusem suborno e sejam capazes de julgar com imparcialidade, punir os desertores e fazer valer os acordos firmados-, a tendência é o desaparecimento de agentes cooperadores e florescimento de aproveitadores. As pessoas passam a desconfiar de todo empreendimento comum e só voltam a cooperar quando seus ganhos fossem garantidos, de uma maneira ou de outra. O resultado final é a degradação do ambiente social, no qual uma ação conjunta possa ser bem sucedida. Todos acabam perdendo algo, seja pela maior desconfiança existente, seja pelo aumento de custo do controle social. A formulação de modelos formais, com a estrutura da teoria dos jogos, ajudou a esclarecer a atuação dos elementos principais que levam ao aparecimento do comportamento corruPTo entre os agentes que participam de um empreendimento mútuo.
O matemático austríaco Karl Sigmund, em colaboração com pesquisadores japoneses Joung-Hun Lee e Yoh Iwasa, mais seu colega austríaco Ulf Dieckmann modelaram a corrupção de acordo com critérios da teoria dos jogos, a fim de detectar os momentos nos quais a fraude dos jogadores e as propinas dos agentes fiscalizadores podem ser evitadas e punidas. O jogo da corrupção, assim estruturado, permitiria aos participantes envolvidos nas tomadas de decisão estabelecer a possibilidade de uma mediação, a fim de fiscalizar, denunciar e multar os jogadores que fizessem registros ilegais que aumentassem seus ganhos. O modelo era sensível o suficiente para reproduzir também as situações nas quais os mediadores são expostos ao suborno e fazem “vista grossa” diante dos registros fraudulentos, que evitam notificar.
A aceitação de pagamentos laterais, por parte dos fiscais, tende a arruinar os esforços conjuntos e a distorcer os resultados finais da interação [8]. Para evitar isso, a boa educação e informação transparente sobre os agentes e seus desempenhos reduzem a ocorrência de caos de corrupção. O que vale dizer que a transparência dos dados e a rotulagem dos indivíduos corruPTos e mau cooperadores influencia profundamente na qualidade do empreendimento comum. Conforme a constância de um maior ou menor grau de combate aos infratores, um comportamento cíclico é observado entre as fases de cooperação-corrupção-deserção. Toda vez que se relaxa no combate da corrupção, aumenta os casos de registros falsos e degradação do ambiente social. O que exige uma subsequente retomada das restrições contra os desertores, um aumento nos custos das tarefas de cooperação, até uma renovação no nível de cooperação livre de entraves burocráticos, quando de volta a baixar o controle sobre as deserções e subornos.
O resultado é a extinção das estratégias iniciais de cooperação incondicionais, ao longo do tempo. Para manter a possibilidade de cooperação, os jogadores passam a exigir garantias adicionais para continuarem no jogo. Apenas cooperadores condicionais permanecem ativos, ao lado de desertores que prosperam com a corrupção e seus registros ilegais [9]. A corrupção é, portanto, uma ameaça constante nos contextos sociais evolutivos. Esse comportamento cíclico foi encontrado ainda em vários outros modelos, incluindo aqueles que simulavam cenários de períodos eleitorais [10].
Em resumo, no cenário de uma área comum disponível à exploração dos jogadores, cada indivíduo procura extrair o máximo que puder, a fim de maximizar seus ganhos. Para evitar a rápida deterioração do meio ambiente e o esgotamento das matérias primas, os participantes devem estabelecer um acordo entre eles, limitando a extração permitida para cada um em cada rodada. Com objetivo de controlar e inibir as burlas, os jogadores podem estabelecer um sistema de vigilância próprio ou contratar agentes externos que façam o monitoramento da exploração do condomínio. No caso de um policiamento próprio (coerção mútua no sentido de Hardin), um sistema de honra e vingança surge nos padrões da antiguidade e da idade média. Por outro lado, a contratação de uma agência de controle à parte (um soberano no sentido hobbesiano) abre espaço para corrupção entre os agentes fiscalizadores a serviço do estado. Em todo caso, apenas a punição efetiva e a transparência das informações são capazes de inibir o florescimento da corrupção e, ao mesmo tempo, proporcionar o desenvolvimento de uma cooperação que não destrua a natureza. De outro modo, a ausência de um sistema eficaz de policiamento leva à ruína do empreendimento comum e do convívio social, em geral.

Corrupção revela uma diversidade surpreendente. Nossa abordagem focou em uma parte apenas […] A corrupção de instituições do judiciário pode efetivamente estrangular a vida econômica. Uma vez que os agentes relutam investir em empreendimentos sem instituições necessárias duradouras, para manter seus acordos, a corrupção subverte suas próprias bases a longo prazo (LEE, J-H et al. Op.cit., p. 13280).

Meio do Caminho

A correlação entre corrupção e baixo desempenho econômico é notória. Países desenvolvidos, com índices de desenvolvimento humano e econômicos elevados, são melhor avaliados, com baixos níveis de percepção da corrupção. Enquanto as piores nações, consideradas as mais corruPTas, são aquelas com os piores padrões de bem estar social. Dinamarca aparece na liderança, entre as nações menos corruPTas. Depois, seguem-na Finlândia, Nova Zelândia, Noruega, Singapura, Suécia, Suíça, Holanda, Alemanha e Irlanda, como os 10 melhores lugares para bons cooperadores. Na parte de baixo da tabela dos mais corruPTos e atrasados, estão Somália, Síria, Sudão do Sul, Venezuela, Yemen, Líbia, Coreia do Norte, Haiti, Guiné Equatorial e Burundi.

Em 2022, o Brasil sustentou sua pontuação baixa de 38, na 94ª posição, pouco aquém do meio da tabela, que lista 180 países avaliados em seus níveis de corrupção. Desde 2020, o país se mantém nessa colocação. Na última década, caiu de 43 pontos, em 2012, para 35, em 2018, sua pior pontuação. Em 2016, ano que o governo corruPTo da organização criminosa de esquerda foi impedido de continuar no poder, a taxa havia caído para 40 pontos, até atingir o mínimo histórico de 2018, quando ocupava a 105ª posição. Em 2018, um novo governo de direita foi eleito e os índices melhoraram até estagnar em 2020, ano a partir do qual um crescente ativismo judicial impediu que a pontuação se elevasse mais, deixando o país na situação intermediária em que se encontra, a meio caminho entre a Dinamarca (1º) e a Somália (180º) [11]. No Brasil, abaixo do congresso nacional, o judiciário brasileiro é a instituição estatal que a população menos confia, no início de 2023, de acordo com enquete divulgada por páginas na internet [12].

Notas

1. Veja BOUZON, E. O Código de Hamurabi, §5, pp.49 e ss.
2. DEUTERONÔMIO, 16:19.
3. PLATÃO. VIII Carta, 354 b-c.
4. Veja ARISTÓTELES. A Política, 1271 a-b.
5. Veja XENOFONTE, La República de los Lacedemonios, p.1 e PLUTARCO. Vida de Licurgo, §29, p.39.
6. Veja HOBBES, Th Leviatã, caps. XIII e XIV.
7. Veja HOBBES, Th Op. Cit., l. 1, cap. XIV, p. 82.
8. Veja LEE, J-H et. al. “Games of Corruption”, p.4.
9. Veja LEE, J-H et al. Op.Cit, p. 10 §2.3.
10. Veja LEE, J-H. et al. “Social Evolution Leads to Persistent Corruption”, p. 13.279.
11. Veja CPI, 2022.

12. Veja DEFESANET. https://www.defesanet.com.br/wp-content/uploads/2023/02/militares_1.jpg.

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. A Política; trad. Nestor S. Chaves. – Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
BIBLIA SAGRADA. “Deuteronômio”; trad. Pe. Antonio P. de Figueiredo. -São Paulo: EP e Maltese, 1962.
BOUZON, E. O Código de Hammurabi. – Petrópolis: Vozes, 1986.
DEFESANET. “8JANBSB – Exército com o menor índice de aprovação histórico”. Disponível na Internet via https://www.defesanet.com.br/wp-content/uploads/2023/02/militares_1.jpg. Arquivo consultado em 2023.
HARDIN, G. A Tragédia dos Comuns, trad. José R. Bonifácio. – Disponível na Internet via https://edisciplinas.usp.br/…/a_tragédia_dos_comuns.pdf. Arquivo consultado em 2023.
HOBBES, Th. Leviatã, trad. João P. Monteiro e Mª Beatriz N. da Silva. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
LEE, J-H et al. “Games of Corruption”, in Journal of Theoretical Biology, vol. 367, pp. 1-13, 21 de fevereiro de 2015, – Disponível na Internet via https://core.ac.uk/reader/33901757?utm_source=linkout. Arquivo consultado em 2023.
___. “Social Evolution leads to Persistent Corruption”. – Disponível na Internet via https://www.pnas.org/doi/pdf/10.1073/pnas.1900078116. Arquivo consultado em 2023.
PLATÃO. “VIII Carta”, in Diálogos, vol. V, trad. Carlos A. Nunes. – Belém: Uni. Fed. do Pará, 1975.
PLUTARCO. “Vida de Licurgo”, in Vidas; trad. Jaime Bruna. – São Paulo: Cultrix, 1963.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Corruption Perceptions Index. – Disponível na Internet via https://www.transparency.org/en/cpi/2022. Arquivo consultado em 2023.
XENOFONTE. “La República de los Lacedemonios”, in Obras Menores; trad. Orlando G. Tuñon. – Madrid: Gredos, 1984.

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