DIREITOS não nascem em árvores, nem caem do céu. Na natureza, não existe um rei leão ao qual as lebres possam recorrer para reivindicarem igualdade, sem apresentarem garras e presas que a defendam [
1]. Para os direitos dos indivíduos prevalecerem é preciso que se lute para tanto. No mundo natural, domina a lei dos mais aptos ao ambiente atual. Quem estiver melhor adaptado ao meio poderá transmitir a seus descendentes os bens genéticos e materiais acumulados.
A teoria do direito natural afirma que este surge da própria natureza das coisas e independe das deliberações legislativas humanas. Um conjunto de regras e princípios universais e eternos, invariáveis, desvinculados da vontade dos indivíduos ou das instituições comandariam suas ações. Sua verdade seria evidente à razão e refletiria a natureza das relações entre os seres humanos. Derivam das condições objetivas dos valores extraídos dos fatos vividos ou, acima disso, de uma ordem divina. Em última instância, formariam o elenco de deveres de toda humanidade, a despeito de seus desejos ou vontades. Em suma, decorreriam das inclinações naturais humanas, em seus valores éticos e espirituais, inseridos na consciência de todos, percebidos em suas razões mais gerais, sendo um valor ideal atemporal, de nenhum local específico.
Ao longo da história, uma concepção natural do direito pretende fazer parte de uma visão geral da natureza, confundindo questões da física e biologia com psicologia ou sociologia. Quando se fala de necessidades naturais humanas, que precisam ser atendidas por um direito básico, se pensa que haja uma finalidade natural na espécie para a qual ela avance. Tais condições, compartilhadas por todos seres vivos, seriam, por isso, o fundamento do direito natural. A sobrevivência possuiria um estatuto especial que sustentaria todo pensamento acerca da justiça. O conteúdo mínimo do direito natural. A sobrevivência determinaria, portanto, o modo de viver da espécie, aceito em geral, formando o elemento comum de todo controle social. Pensamento que contaminou até mesmo a origem do contrato social, na versão proposta por Thomas Hobbes (1588-1679) no livro Leviatã (1651).
Hobbes tinha, em sua postura empírica do saber, esse conteúdo mínimo de direito natural. Pensava que, pelo método geométrico, a razão poderia descobrir as regras fundamentais para formação de uma sociedade submetida à soberania de um estado dedicado a garantir a segurança de seus cidadãos, manter a paz e o cumprimento dos pactos firmados [2].
Falácia
Uma falácia naturalista surge quando se tem a crença de que uma regularidade dos fatos na natureza possa ser consequência de uma lei natural, que regeria todos acontecimentos físicos. David Hume (1711-1776) foi um dos primeiros filósofos a observar esse tipo de raciocínio equivocado. Em sua
Investigação sobre o Entendimento Humano apontou, no hábito de associar a regularidade com a qual os objetos se relacionam às leis naturais necessárias, o erro de se transcender às experiências, verdadeira fonte do conhecimento humano, e imaginar um mundo ideal das relações perfeitas entre as coisas. É uma falácia repetida pelos defensores do direito natural que acontece, por exemplo, quando se estende um princípio ético, como “bom”, a condições naturais, de “prazer” ou “satisfação” [
3]. Entretanto, Hume – que fora tão arguto com relação às leis da física -, no que diz respeito à ética, ao contrário, considerava que a
benevolência seria um princípio natural fundamental do conhecimento prático humano. Uma perspectiva dos sentimentos morais semelhante ao utilitarismo que prevalecia entre os filósofos escoceses e ingleses no século XVIII. Também entendia Hume que, na política, a sujeição habitual sustentaria a observância das leis e a submissão ao soberano, como se estas fossem leis universais da natureza, independente do consentimento voluntário [
4].
Todavia, dois séculos depois, George Edward Moore (1873-1958) demonstrou a existência de uma falácia naturalista na ética toda vez que se confunde um objeto natural com o prazer e a satisfação que produz, algo que por isso o tornaria uma coisa considerada “boa” no sentido moral, por ter tal propriedade sensível [
5]. Nesse sentido, Moore fora além de David Hume. Pois, no que se trata da soberania, nem mesmo se fosse acompanhada pelo hábito de obediência às leis, o apelo utilitarista seria capaz, por si só, de gerar a prevalência do direito natural, sem a observância das penalidades contra sua infração. Além do mais, conforme argumentou Herbert Lionel Adolphus Hart (1907-1994), os hábitos não possuem força normativa para “conferir direitos ou autoridade a quem quer que seja” [
6].
As necessidades naturais de todos seres vivos em se manter são questões factuais que não implicam em um dever ou um direito a se respeitar, ainda que seja para preservar a existência das espécies. Na natureza, não há um “rei leão” ao qual se possa recorrer a fim de denunciar abusos de uma espécie sobre a outra na luta pela sobrevivência. O direito à vida, talvez a condição básica trivial para os seres vivos postularem uma definição natural para o direito, por sua vez, depende antes de tudo da capacidade de cada vivente em encontrar soluções para sua sobrevivência, ao invés do reconhecimento de uma lei “escrita na pedra”, desde tempos imemoriais, que imponha seu respeito a todos. A luta pelos recursos de subsistência tem estratégias próprias moldadas na interação entre outros seres vivos, competitivos ou cooperativos. As melhores estratégias garantem não só a sobrevivência do indivíduo, como a de cada espécie, quando são transmitidas através das futuras gerações.
Entre a cooperação e a deserção, a teoria dos jogos delimitou 16 estratégias básicas adotadas em situações típicas àquelas de tomadas de decisão semelhantes às do modelo simplificado do Dilema dos Prisioneiros – passíveis de serem aplicadas às interações enfrentadas pelos agentes na natureza [
7]. Em geral, as linhas de ação empregadas são uma mistura de cooperação e deserção conforme as oportunidades específicas de cada circunstância. São raras e sujeitas à rápida extinção, em poucas gerações, as estratégias de pura deserção ou cooperação incondicional. A
reciprocidade desponta como a estratégia comum mais eficiente na maioria dos casos. Entretanto, para que a cooperação recíproca se sustente, a longo prazo, é necessário que os agentes envolvidos sejam capazes de responder a uma agressão imotivada sofrida, na mesma proporção em que foram atingidos. Do contrário, a cooperação será perdida e o retorno ao estado de natureza da “guerra de todos contra todos” e mútua desconfiança dominarão as ações subsequentes [
8].
A rêmora une-se a tubarões e embarcações, a fim de obterem alimento fácil para sua sobrevivência.
Na natureza, a cooperação entre espécies ocorre de maneira simbiótica e em outras formas de parasitismo e comensalismo, quando os participantes da interação se beneficiam mutuamente na relação ou não percebem sua exploração. Bactérias fixam no solo o nitrogênio necessário para plantas desenvolverem-se. O pássaro-palito (Pluvianus aegyptius) limpa os dentes de crocodilos, enquanto a rêmora (Remora remora) e o peixe-piloto (Naucrates ductor) acompanham tubarões e navios, a fim de alimentarem-se das sobras de caças abatidas pelos carniceiros ou simplesmente jogadas ao mar por embarcações. Tais comportamentos gravados nessas espécies pela evolução, embora tratem de colaboração e aproveitamento de situações, não fazem parte de um processo deliberativo passível de ser modificado de acordo com as circunstâncias e interesses dos indivíduos de uma determinada geração. Para que haja a possibilidade de mudança de comportamento ou discussão de cláusulas de um acordo, é preciso que as propostas sejam entendidas e ratificadas com base em argumentos aceitos como válidos ou na luta bem sucedida para afirmá-los.
Todos os direitos da humanidade foram conquistados pela luta; seus princípios mais importantes tiveram de enfrentar os ataques daqueles que a eles se opunham; todo e qualquer direito, seja o direito de um povo, seja o direito do indivíduo, só se afirma por uma disposição ininterrupta para a luta (IHERING, R.v. A Luta pelo Direito, I, p. 27).
O abandono da luta ameaça o direito e todas as conquistas humanas, de acordo com o jurista alemão Rudolf von Ihering (1818-1892). Deixar de mobilizar-se contra fraudadores do direito termina na dissolução deste e ganho para os usurpadores que se aproveitam da fragilidade alheia, na defesa de seus direitos. O combate vitorioso de cada um pelos recursos necessários a sua sobrevivência criou, pela conquista, o direito privado que se tornou a base de todos os direitos posteriores. Assim, a formação do direito vem na esteira da luta pela sobrevivência, da invenção das armas e ferramentas que o sustentavam, como uma resposta natural da evolução biológica da espécie humana. É o resultado dos confrontos vividos pela espécie e sua inteligência para solucionar os problemas, não uma causa a priori para sua constituição.
A seleção natural não dotou a espécie humana de garras e dentes fortes, como os dos grandes felinos. Não obstante, lhe concedeu um cérebro superdimensionado, dotado de uma racionalidade pronta para resolver os problemas vitais e julgar o que era bom ou mau, segundo seus interesses, além da sobrevivência e reprodução. O sucesso de sua adaptação a todos ambientes na Terra, fez da espécie homo sapiens a única que de fato assumiu o papel de regente, na natureza. Os seres humanos determinam, agora, quais espécies são nocivas ou benignas. Combatem com eficácia devastadora as que lhes ameaçam, enquanto favorecem as que lhes fornecem o sustento necessário a sua existência.
Entre os seres vivos não há ética ou direito assegurado, por natureza. Tais conceitos foram criados pela racionalidade humana, não por uma lógica transcendental, mas pela necessidade de evitar a disputa incessante pelos recursos naturais entre os próprios seres humanos que, então, estabeleceram costumes e regras para pacificar seu território e proporcionar o progresso jamais obtido por nenhuma outra espécie no planeta. Semelhante às ferramentas criadas para trabalhar a terra, e às armas inventadas para sua segurança, a ética e o direito foram projetados com o intuito de organizar e policiar aqueles que disputavam os mesmos meios entre os membros de sua própria espécie.
O direito à vida – fundamental aos viventes – não tem acordo entre os seres vivos, para ser considerado um “direito natural e universal”. Carnívoros precisam se alimentar de herbívoros, para não morrerem de fome. Herbívoros, por sua vez, não sobrevivem sem os vegetais, dos quais se nutrem. Espécies onívoras, não podem deixar de comer – tanto plantas, como animais – sem apresentar deficiências por falta de vitaminas, carboidratos e proteínas indispensáveis a sua boa saúde. Dito de outro modo, animais carnívoros dependem de caçar herbívoros, enquanto estes se alimentam de vegetais, da mesma forma que onívoros precisa dos nutrientes que encontram tanto na carne como nas plantas, para ter um corpo saudável. Os vegetais percebem as condições do clima, a presença de água, luz e suas raízes e folhas buscam os nutrientes necessários no ar e na terra para sua subsistência. Sem a presença de um sistema nervoso, não conseguem, entretanto, elaborar uma imagem do mundo que permita se chamar de consciente. Alguns animais sencientes formam mapas do ambiente através de suas experiências mentais. Contudo, apenas os seres humanos atingiram a capacidade de associar uma narrativa que poderia ser comunicada, por meio de palavras, as suas imagens mentais. A noção de si que surgiu dessa evolução criou o universo da individualidade humana que lhe proporciona a “construção de culturas” e invenções, tais como o direito comum que forjou as sociedades [
9].
Em conclusão, a subjetividade e a experiência integrada são componentes cruciais da consciência (DAMÁSIO, A. A Estranha Ordem das Coisas, part. II, cap.9, p. 167).
A consciência de si foi o elemento fundamental para formação do indivíduo e de sua respectiva reivindicação de direitos. Com a afirmação do que possui, sua propriedade, o ser humano pode inventar o certo e o errado que fundam o direito e orientam o seu comportamento em sociedade, a relação cooperativa com seus semelhantes.
Certo e Errado
O ceticismo moral – que teve um representante ilustre em John Leslie Mackie (1917-1981) – defende, então, que não há valores objetivos, em ética. Juízos morais ordinários – como o valor da vida – pretendem ser objetivos. Porém, sua pretensão é falsa e se apoia em um erro teórico. Em sua origem, as pessoas são pressionadas socialmente a adotarem determinados comportamentos, cujo caráter absoluto lhe conferiria uma autoridade objetivada, embora artificial, no seio de uma sociedade. Um estatuto de lei suprema que não tem um legislador real.
Outra maneira de explicar a objetivação dos valores morais é dizer que a ética é um sistema legal cujo legislador foi removido. Derivado de leis positivas de um estado ou de um suposto sistema de direitos divinos (MACKIE, J.L. Ethics, cap. 1, §10, p. 45).
O pensamento moral que fundamenta o direito depende de modos de viver reais. A visão metafísica desses valores não passa de motivação que guia as ações intrinsecamente. As consequências derivam de suas características materiais, para quem assume uma perspectiva naturalista que não seja falaciosa. Por conseguinte, a falta de uma capacidade cognitiva plena impediria de se reconhecer tais consequências, dos valores morais. Contudo, a dificuldade de traçar uma linha contínua entre diferentes padrões morais observados nas sociedades, reforçam a percepção de que estes se sustentam apenas em crenças particulares.
Sem embargo, juízos morais têm pretensões de universalização. O que não quer dizer que eles sejam valores universais transcendentais, de verdade, mas simplesmente que aspiram a ter validade universal para todos os entes racionais. São, desse modo, propostas da mente humana, como as leis e seus direitos vinculados. Um direito universalizável apoia-se em valores morais com pretensões iguais. Embora não haja nenhum valor objetivo que possa ser imposto
a priori, sem a aceitação dos indivíduos, da mesma forma que as leis [
10].
A aceitação da fundamentação moral do direito precisa de indivíduos com capacidade cognitiva para entenderem suas implicações. A faculdade de raciocínio dos agentes determina a correta validação das normas, segundo o atendimento de seus interesses básicos pela sobrevivência e reprodução. Afirmar que não existem valores ideais objetivos e direitos naturais não apaga as necessidades naturais que todos seres vivos possuem, incluindo aqueles que propõem as leis. Isso significa tão somente que ao se propor leis gerais, os seres racionais têm de levar em conta os fatos da vida biológica de todos envolvidos e seus consentimentos, para sua validação.
Embora quem não possua capacidade cognitiva para reconhecimento das leis, não possa ser considerado sujeito de direito, muito menos seu agente, não obstante, pode ser tido como objeto do direito, conforme a vontade de quem aprovar as regras a serem seguidas, com as quais esteja relacionado. Quanto maior for a abrangência das leis, maiores serão os atingidos. O debate em torno da validação de princípios morais e do direito deve ser constituído por seres racionais que possuam as mesmas necessidades dos seres viventes. A espécie humana é a única, salvo engano, apta a criar leis e sustentar argumentos em seu favor, ainda que atinjam seres que não possuam tais habilidades, mas sejam objetos de sua consideração. Desse modo, o direito e a moral criados pelos humanos acabam por afetar todo meio ambiente, sem, no entanto, ter como causa uma “iluminação natural”, mas um artifício projetado pela mente humana.
O Conceito de Direito
Hart dedicou o nono capítulo de sua obra clássica,
Conceito de Direito (1961), a rebater os principais argumentos em favor do direito natural. Em seu ceticismo moral em relação às leis, considerava válidos os critérios jurídicos, para formulação de leis concretas, que fossem independentes de referências éticas ou de uma concepção prévia de justiça admitidas tacitamente [
11]. Ao contrário do direito natural, o
positivismo jurídico – do qual era adepto – não dependeria de leis com conteúdos morais, nem de um método de descoberta racional semelhante às leis da física. Tais leis são frutos da observação e correta descrição de um movimento repetitivo, na natureza, enquanto as leis de condutas humanas não passam de proposições prescritas como normas a serem seguidas, conforme a aceitação geral [
12].
Diferente dos objetos inanimados e dos demais seres vivos, os seres humanos poderiam escapar às leis “naturais” da moral e do direito, por serem dotados de livre arbítrio. Apesar de não poderem voar como os pássaros, a persistência dessa mentalidade metafísica, no direito, manter-se-ia, apenas por conta de aspirações de verdades que pudessem ser validadas tanto por humanos, como pelos deuses. As formulações abstratas e complexas devem, entretanto, passar por deduções que surgem da observação de elementos reais e confirmadas ou refutadas de modo mais simples. A regularidade dos fenômenos assegura a postulação de leis naturais, embora isso não implique que haja um fim natural e universal para o qual as coisas tendam. Essa concepção teleológica da natureza perdura desde a antiguidade, quando a causa final significava que não poderia haver uma escolha aos seres vivos e da própria natureza, em geral, sobre seu destino.
A vulnerabilidade física, semelhante entre todos os membros da espécie, a despeito da colaboração observada, a fim de se evitar o confronto constante pelos recursos escassos, foi fixada independente da vontade dos indivíduos, que, além disso, precisam de regras
dinâmicas para que estas leis sejam implementadas no intuito de superar as carências de cada um. Uma disposição e maior compreensão das normas tornam a vida social praticável entre as pessoas. As vantagens da cooperação são visíveis, quando as sanções inibem os seus desertores. Tais garantias são observadas se houver um sistema coercitivo que estimule o cumprimento dos acordos e do empreendimento mútuo entre os seres humanos [
13]. Por outro lado, contra as posturas de um cético positivismo radical, Hart defende que sistemas de leis de uma sociedade possam ser fundamentados com princípios éticos acerca do direito, internamente.
Podemos dizer, dado o enquadramento dos fatos e finalidades naturais, que aquilo que torna as sanções, não só possíveis, como necessárias num sistema interno, é uma necessidade natural, (…) de proteção das pessoas, da propriedade e dos compromissos, os quais são aspectos igualmente indispensáveis do direito interno (HART, H.L.A. Conceito de Direito, cap. IX, §2, p. 215).
As críticas ao direito natural não eliminam a possibilidade de um conteúdo específico para o direito, em geral. Assim, não haveria um conteúdo vazio que um positivismo radical poderia sugerir. Valores, como o trato igual de pessoas diferentes, sob as mesmas leis –
isonomia -, podem ser aceitos por todas as formas de direito, embora, historicamente, tenha havido sociedades que não estendiam o mesmo direito a todos. Um sistema jurídico é, então, um fenômeno social que depende da aceitação voluntária das regras e sua observância [
14].
A estabilidade de um sistema jurídico depende de um padrão de comportamento aceito, por parte dos adeptos e de seus transgressores. Um sistema exclusivista rígido está sujeito a ameaças e revoltas constantes. Um controle social jurídico, que não se apoie apenas nas obrigações, tem um custo administrativo alto e precisa se adaptar às mudanças, sob pena de uma sujeição a uma organização centralizada opressora e burocrática. Poder e autoridade sustentam-se na regra da aceitação pacífica, por parte das pessoas que lhe são subordinadas. A lealdade ao sistema baseia-se em interesses de longo prazo, na observação do comportamento da população ou em um apego à tradição. Não está, assim, necessariamente vinculada a um juízo moral com relação ao que deve ser feito com o direito.
A legislação absorve a moral comum aos códigos jurídicos. Princípios e valores sociais são, então, observados no direito. Desse modo, a estabilidade do sistema também pode estar ligada à moral. Porém, a interpretação da lei pode pôr em conflito tais valores, sem que uma postura conflitante seja mais decisiva do que a outra. As virtudes a serem seguidas nesses casos são de imparcialidade e neutralidade, em uma palavra: “isonomia”, os interesses de todos envolvidos devem ser considerados igualmente sob a mesma lei. Uma decisão racional deve ser buscada para concordância de um princípio geral, diante dos postulantes.
A crítica do direito requer a conformidade aos padrões jurídicos geralmente aceitos, como o respeito ao trato igual das partes; proteção às liberdades fundamentais etc. A mesma regra geral deve ser aplicada a todos os casos pertinentes, sem discriminação ou outros interesses escusos do magistrado. As regras precisam ser claras, compreensíveis à maioria das pessoas sem retroagirem sobre decisões julgadas. As leis que formam o conteúdo do direito são propostas, debatidas e aceitas antes de sua aplicação, embora as suas consequências nem sempre sejam devidamente avaliadas.
Enquanto os seres humanos puderem conseguir a suficiente cooperação de alguns, de forma a permitir-lhes dominar os outros, utilizarão as formas do direito como um de seus instrumentos. Os homens perversos editarão regras perversas que os outros obrigarão a cumprir (HART, H.L.A. Idem, §3, p.226).
O código de Hamurabi um dos pactos mais antigo inscritos em pedra, para que todos conheçam a lei vigente.
Regimes totalitários prevalecem, não apenas pela força bruta, mas principalmente pela servidão voluntária daqueles que se acovardam perante o autoritarismo de leis iníquas que lhes são impostas, por um poder espúrio usurpado do povo [
15]. Disso resulta a necessidade de constante atenção e possibilidade de revisão das leis. O que não seria possível se fossem tidas como um direito natural absoluto.
No final das contas, para se impedir o abuso do direito é preciso que seja feito um exame moral de suas pretensões, apesar do risco de se cair na anarquia. Em circunstâncias extremas, escolhas ruins podem ser feitas entre os vários males que regras iníquas podem proporcionar. O direito positivo e não o natural enfrenta essas questões com clareza, revelando as escolhas erradas ocorridas no passado. O
positivismo jurídico afirma que as leis são comandos humanos, sem conexão obrigatória com a moral ou sua forma idealizada, separada dos momentos históricos, sociológicos ou conceitos éticos. Por vezes, considera o corpo de leis como um
sistema lógico fechado, cujas regras jurídicas são determinadas racionalmente, diferente dos juízos morais que não seriam passíveis de uma prova lógica [
16]. Hart, no entanto, postula um “positivismo moderado”, no qual se admite que um juiz possa ser orientado por conceitos morais cuja objetividade é deixada em aberto, mas que servem como diretrizes para que tribunais possam operar o direito em harmonia com a ética [
17].
A admissão de juízos morais no ordenamento jurídico não significa que haja uma “ordem natural” a regular o direito. Como mostrou Mackie, juízos morais – tal qual o direito – não são fundados em valores ideais, lógicos e transcendentais. Ética e direito passam por um consenso que pode ser validado de modo intersubjetivo, por um pragmático acordo provisório, a fim que se evite a inação e a anarquia. Cabem às pessoas racionais submeterem-se ou não aos critérios da lei, segundo seus interesses justificáveis. O reconhecimento universal de todos interessados deve ser suficiente para que se considere uma norma válida do ponto de vista moral e do direito legítimo.
Raciocínios abrangentes passíveis de serem confirmados por seres racionais estão na base do direito conquistado pelos indivíduos, ao longo da história. O direito existe para mitigar a distribuição desigual dos recursos naturais necessários à existência. Uma escassez completa ou uma abundância que permita o acesso de todos aos bens de que precisam tornariam as demandas por justiça dispensáveis. Para que não haja uma luta interminável entre os homens, o direito procura pacificar as questões em torno dos bens materiais disponíveis, entre os postulantes de um mundo real, com pessoas de carne e osso.
Notas
1. Como na fábula do ateniense Antístenes (445-360 a.C.), o cínico, preservada na
Política de Aristóteles (384-322 a.C.), 1284a.
2. Veja HOBBES, Th.
Leviatã, part.I, cap.XIV, pp.78 e ss.
3. Veja MOORE, G.E.
Principia Ethica, cap. I, seç.B, §14, pp.114 e ss.
4. Veja HUME, D.
Investigação sobre o Entendimento Humano, seç. V, part. I, §36; seç VIII, part.I, §64; seç. XII, part.III, §132;
Investigación sobre los Principios de la Moral, seç.V, part.II, p.100 e
“Do Contrato Original”, in Ensaios Morais, Políticos e Literários, p.232.
5. Veja MOORE, G.E.
Op.Cit., cap. I, seç B, §10, p.108.
6. HART, H.L.A.
O Conceito de Direito, cap. IV, § 1, p. 68.
9. Veja DAMÁSIO, A.
A Estranha Ordem das Coisas, part. II, cap. 9, pp. 167 e ss.
10. Veja MACKIE, J.L.H.
Ethics, part.3, cap.10, §2, pp. 232 e ss.
11. Veja HART, H.L.A.
Conceito de Direito, cap. IX, §1, p.201.
12. Veja HART, H.L.A.
Op.Cit., p. 203.
13. Veja HART, H.L.A.
Idem, §2, pp.209 e ss.
14. Veja HART, H.L.A.
Ibdem, §3, p. 217.
15. O que não é novidade para quem já leu
Discurso sobre a Servidão Voluntária (1571) do jurista francês Étienne de la Boétie (1530-1563).
16. Veja HART, H.L.A.
Ibdem, “Notas”, pp.287/6.
17. Veja HART, H.L.A. Ib., “Pós-Escrito”, p. 316, §2, iii.
Referências Bibliográficas
ARISTÓTELES. Política. – Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
DAMÁSIO, A. A Estranha Ordem das Coisas. -São Paulo: Cia das Letras, 2018.
HART, H.L.A. Conceito de Direito. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
HOBBES, Th. Leviatã. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
HUME, D. Investigação sobre o Entendimento Humano. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
____. Investigación sobre los Principios de la Moral. – Madrid: Espasa-Calpe, 1991.
____. “Do Contrato Original”, in Ensaios Morais, Políticos e Literários. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
IHERING, R. von. A Luta pelo Direito, – São Paulo: Martin Claret, 2004.
MACKIE, J.L.H. Ethics. – Londres: Penguin Books, 1977.
MOORE, G.E. Principia Ethica, – São Paulo: Ícone, 1998.
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https://archive.org/details/tjcf_20210616. Arquivo consultado em 2023.