A Segunda Abolição

NO dia 29 de junho de 2023, a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou uma decisão histórica e corajosa. Ao determinar a igualdade de direitos no acesso às universidades, os juízes suspenderam as políticas de “cotas raciais” para a matrícula em instituições de ensino superior, nos EUA. A medida equivale a uma segunda abolição da escravidão. Agora, os afro-estadunidenses estão livres das doutrinas demagógicas e preconceituosas da esquerda racista. Depois de duas gerações de “ações afirmativas” ineficazes, os afro-estadunidenses podem enfim provar que não precisam do assistencialismo “progressista” para ingressarem nas universidades, como qualquer outra pessoa ou etnia – que não fazem uso de muletas do mal disfarçado racismo esquerdista. Assim, como na música popular e nos esportes, por exemplo, essa “minoria oprimida” mostrará que também é competente no xadrez, na matemática, na informática e na música erudita, sem a demagogia de políticos e intelectuais hipócritas.

Não façam nada conosco! (…) [S]e o Negro não puder ficar em pé sobre suas próprias pernas, deixem-no cair também. Tudo que eu peço é, deem-no uma chance para ficar sobre suas próprias pernas! Deixem-no em paz! Se vocês o virem a caminho da escola, deixem-no em paz, não perturbem! (DOUGLASS, Fr. “What the Black Man Wants”, 1865).

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Referência Bibliográfica

DOUGLASS, Fr. “What the Black Man Wants”, in Negro Social e Political Thought (1850-1920) – New York: Basic Books, 1962.

A Ilusão do Direito Natural

DIREITOS não nascem em árvores, nem caem do céu. Na natureza, não existe um rei leão ao qual as lebres possam recorrer para reivindicarem igualdade, sem apresentarem garras e presas que a defendam [1]. Para os direitos dos indivíduos prevalecerem é preciso que se lute para tanto. No mundo natural, domina a lei dos mais aptos ao ambiente atual. Quem estiver melhor adaptado ao meio poderá transmitir a seus descendentes os bens genéticos e materiais acumulados.
A teoria do direito natural afirma que este surge da própria natureza das coisas e independe das deliberações legislativas humanas. Um conjunto de regras e princípios universais e eternos, invariáveis, desvinculados da vontade dos indivíduos ou das instituições comandariam suas ações. Sua verdade seria evidente à razão e refletiria a natureza das relações entre os seres humanos. Derivam das condições objetivas dos valores extraídos dos fatos vividos ou, acima disso, de uma ordem divina. Em última instância, formariam o elenco de deveres de toda humanidade, a despeito de seus desejos ou vontades. Em suma, decorreriam das inclinações naturais humanas, em seus valores éticos e espirituais, inseridos na consciência de todos, percebidos em suas razões mais gerais, sendo um valor ideal atemporal, de nenhum local específico.
Ao longo da história, uma concepção natural do direito pretende fazer parte de uma visão geral da natureza, confundindo questões da física e biologia com psicologia ou sociologia. Quando se fala de necessidades naturais humanas, que precisam ser atendidas por um direito básico, se pensa que haja uma finalidade natural na espécie para a qual ela avance. Tais condições, compartilhadas por todos seres vivos, seriam, por isso, o fundamento do direito natural. A sobrevivência possuiria um estatuto especial que sustentaria todo pensamento acerca da justiça. O conteúdo mínimo do direito natural. A sobrevivência determinaria, portanto, o modo de viver da espécie, aceito em geral, formando o elemento comum de todo controle social. Pensamento que contaminou até mesmo a origem do contrato social, na versão proposta por Thomas Hobbes (1588-1679) no livro Leviatã (1651).

Hobbes tinha, em sua postura empírica do saber, esse conteúdo mínimo de direito natural. Pensava que, pelo método geométrico, a razão poderia descobrir as regras fundamentais para formação de uma sociedade submetida à soberania de um estado dedicado a garantir a segurança de seus cidadãos, manter a paz e o cumprimento dos pactos firmados [2].

Falácia

Uma falácia naturalista surge quando se tem a crença de que uma regularidade dos fatos na natureza possa ser consequência de uma lei natural, que regeria todos acontecimentos físicos. David Hume (1711-1776) foi um dos primeiros filósofos a observar esse tipo de raciocínio equivocado. Em sua Investigação sobre o Entendimento Humano apontou, no hábito de associar a regularidade com a qual os objetos se relacionam às leis naturais necessárias, o erro de se transcender às experiências, verdadeira fonte do conhecimento humano, e imaginar um mundo ideal das relações perfeitas entre as coisas. É uma falácia repetida pelos defensores do direito natural que acontece, por exemplo, quando se estende um princípio ético, como “bom”, a condições naturais, de “prazer” ou “satisfação” [3]. Entretanto, Hume – que fora tão arguto com relação às leis da física -, no que diz respeito à ética, ao contrário, considerava que a benevolência seria um princípio natural fundamental do conhecimento prático humano. Uma perspectiva dos sentimentos morais semelhante ao utilitarismo que prevalecia entre os filósofos escoceses e ingleses no século XVIII. Também entendia Hume que, na política, a sujeição habitual sustentaria a observância das leis e a submissão ao soberano, como se estas fossem leis universais da natureza, independente do consentimento voluntário [4].
Todavia, dois séculos depois, George Edward Moore (1873-1958) demonstrou a existência de uma falácia naturalista na ética toda vez que se confunde um objeto natural com o prazer e a satisfação que produz, algo que por isso o tornaria uma coisa considerada “boa” no sentido moral, por ter tal propriedade sensível [5]. Nesse sentido, Moore fora além de David Hume. Pois, no que se trata da soberania, nem mesmo se fosse acompanhada pelo hábito de obediência às leis, o apelo utilitarista seria capaz, por si só, de gerar a prevalência do direito natural, sem a observância das penalidades contra sua infração. Além do mais, conforme argumentou Herbert Lionel Adolphus Hart (1907-1994), os hábitos não possuem força normativa para “conferir direitos ou autoridade a quem quer que seja” [6].
As necessidades naturais de todos seres vivos em se manter são questões factuais que não implicam em um dever ou um direito a se respeitar, ainda que seja para preservar a existência das espécies. Na natureza, não há um “rei leão” ao qual se possa recorrer a fim de denunciar abusos de uma espécie sobre a outra na luta pela sobrevivência. O direito à vida, talvez a condição básica trivial para os seres vivos postularem uma definição natural para o direito, por sua vez, depende antes de tudo da capacidade de cada vivente em encontrar soluções para sua sobrevivência, ao invés do reconhecimento de uma lei “escrita na pedra”, desde tempos imemoriais, que imponha seu respeito a todos. A luta pelos recursos de subsistência tem estratégias próprias moldadas na interação entre outros seres vivos, competitivos ou cooperativos. As melhores estratégias garantem não só a sobrevivência do indivíduo, como a de cada espécie, quando são transmitidas através das futuras gerações.
Entre a cooperação e a deserção, a teoria dos jogos delimitou 16 estratégias básicas adotadas em situações típicas àquelas de tomadas de decisão semelhantes às do modelo simplificado do Dilema dos Prisioneiros – passíveis de serem aplicadas às interações enfrentadas pelos agentes na natureza [7]. Em geral, as linhas de ação empregadas são uma mistura de cooperação e deserção conforme as oportunidades específicas de cada circunstância. São raras e sujeitas à rápida extinção, em poucas gerações, as estratégias de pura deserção ou cooperação incondicional. A reciprocidade desponta como a estratégia comum mais eficiente na maioria dos casos. Entretanto, para que a cooperação recíproca se sustente, a longo prazo, é necessário que os agentes envolvidos sejam capazes de responder a uma agressão imotivada sofrida, na mesma proporção em que foram atingidos. Do contrário, a cooperação será perdida e o retorno ao estado de natureza da “guerra de todos contra todos” e mútua desconfiança dominarão as ações subsequentes [8].

A rêmora une-se a tubarões e embarcações, a fim de obterem alimento fácil para sua sobrevivência.

Na natureza, a cooperação entre espécies ocorre de maneira simbiótica e em outras formas de parasitismo e comensalismo, quando os participantes da interação se beneficiam mutuamente na relação ou não percebem sua exploração. Bactérias fixam no solo o nitrogênio necessário para plantas desenvolverem-se. O pássaro-palito (Pluvianus aegyptius) limpa os dentes de crocodilos, enquanto a rêmora (Remora remora) e o peixe-piloto (Naucrates ductor) acompanham tubarões e navios, a fim de alimentarem-se das sobras de caças abatidas pelos carniceiros ou simplesmente jogadas ao mar por embarcações. Tais comportamentos gravados nessas espécies pela evolução, embora tratem de colaboração e aproveitamento de situações, não fazem parte de um processo deliberativo passível de ser modificado de acordo com as circunstâncias e interesses dos indivíduos de uma determinada geração. Para que haja a possibilidade de mudança de comportamento ou discussão de cláusulas de um acordo, é preciso que as propostas sejam entendidas e ratificadas com base em argumentos aceitos como válidos ou na luta bem sucedida para afirmá-los.

Todos os direitos da humanidade foram conquistados pela luta; seus princípios mais importantes tiveram de enfrentar os ataques daqueles que a eles se opunham; todo e qualquer direito, seja o direito de um povo, seja o direito do indivíduo, só se afirma por uma disposição ininterrupta para a luta (IHERING, R.v. A Luta pelo Direito, I, p. 27).

O abandono da luta ameaça o direito e todas as conquistas humanas, de acordo com o jurista alemão Rudolf von Ihering (1818-1892). Deixar de mobilizar-se contra fraudadores do direito termina na dissolução deste e ganho para os usurpadores que se aproveitam da fragilidade alheia, na defesa de seus direitos. O combate vitorioso de cada um pelos recursos necessários a sua sobrevivência criou, pela conquista, o direito privado que se tornou a base de todos os direitos posteriores. Assim, a formação do direito vem na esteira da luta pela sobrevivência, da invenção das armas e ferramentas que o sustentavam, como uma resposta natural da evolução biológica da espécie humana. É o resultado dos confrontos vividos pela espécie e sua inteligência para solucionar os problemas, não uma causa a priori para sua constituição.
A seleção natural não dotou a espécie humana de garras e dentes fortes, como os dos grandes felinos. Não obstante, lhe concedeu um cérebro superdimensionado, dotado de uma racionalidade pronta para resolver os problemas vitais e julgar o que era bom ou mau, segundo seus interesses, além da sobrevivência e reprodução. O sucesso de sua adaptação a todos ambientes na Terra, fez da espécie homo sapiens a única que de fato assumiu o papel de regente, na natureza. Os seres humanos determinam, agora, quais espécies são nocivas ou benignas. Combatem com eficácia devastadora as que lhes ameaçam, enquanto favorecem as que lhes fornecem o sustento necessário a sua existência.
Entre os seres vivos não há ética ou direito assegurado, por natureza. Tais conceitos foram criados pela racionalidade humana, não por uma lógica transcendental, mas pela necessidade de evitar a disputa incessante pelos recursos naturais entre os próprios seres humanos que, então, estabeleceram costumes e regras para pacificar seu território e proporcionar o progresso jamais obtido por nenhuma outra espécie no planeta. Semelhante às ferramentas criadas para trabalhar a terra, e às armas inventadas para sua segurança, a ética e o direito foram projetados com o intuito de organizar e policiar aqueles que disputavam os mesmos meios entre os membros de sua própria espécie.
O direito à vida – fundamental aos viventes – não tem acordo entre os seres vivos, para ser considerado um “direito natural e universal”. Carnívoros precisam se alimentar de herbívoros, para não morrerem de fome. Herbívoros, por sua vez, não sobrevivem sem os vegetais, dos quais se nutrem. Espécies onívoras, não podem deixar de comer – tanto plantas, como animais – sem apresentar deficiências por falta de vitaminas, carboidratos e proteínas indispensáveis a sua boa saúde. Dito de outro modo, animais carnívoros dependem de caçar herbívoros, enquanto estes se alimentam de vegetais, da mesma forma que onívoros precisa dos nutrientes que encontram tanto na carne como nas plantas, para ter um corpo saudável. Os vegetais percebem as condições do clima, a presença de água, luz e suas raízes e folhas buscam os nutrientes necessários no ar e na terra para sua subsistência. Sem a presença de um sistema nervoso, não conseguem, entretanto, elaborar uma imagem do mundo que permita se chamar de consciente. Alguns animais sencientes formam mapas do ambiente através de suas experiências mentais. Contudo, apenas os seres humanos atingiram a capacidade de associar uma narrativa que poderia ser comunicada, por meio de palavras, as suas imagens mentais. A noção de si que surgiu dessa evolução criou o universo da individualidade humana que lhe proporciona a “construção de culturas” e invenções, tais como o direito comum que forjou as sociedades [9].

Em conclusão, a subjetividade e a experiência integrada são componentes cruciais da consciência (DAMÁSIO, A. A Estranha Ordem das Coisas, part. II, cap.9, p. 167).

A consciência de si foi o elemento fundamental para formação do indivíduo e de sua respectiva reivindicação de direitos. Com a afirmação do que possui, sua propriedade, o ser humano pode inventar o certo e o errado que fundam o direito e orientam o seu comportamento em sociedade, a relação cooperativa com seus semelhantes.

Certo e Errado

O ceticismo moral – que teve um representante ilustre em John Leslie Mackie (1917-1981) – defende, então, que não há valores objetivos, em ética. Juízos morais ordinários – como o valor da vida – pretendem ser objetivos. Porém, sua pretensão é falsa e se apoia em um erro teórico. Em sua origem, as pessoas são pressionadas socialmente a adotarem determinados comportamentos, cujo caráter absoluto lhe conferiria uma autoridade objetivada, embora artificial, no seio de uma sociedade. Um estatuto de lei suprema que não tem um legislador real.

Outra maneira de explicar a objetivação dos valores morais é dizer que a ética é um sistema legal cujo legislador foi removido. Derivado de leis positivas de um estado ou de um suposto sistema de direitos divinos (MACKIE, J.L. Ethics, cap. 1, §10, p. 45).

O pensamento moral que fundamenta o direito depende de modos de viver reais. A visão metafísica desses valores não passa de motivação que guia as ações intrinsecamente. As consequências derivam de suas características materiais, para quem assume uma perspectiva naturalista que não seja falaciosa. Por conseguinte, a falta de uma capacidade cognitiva plena impediria de se reconhecer tais consequências, dos valores morais. Contudo, a dificuldade de traçar uma linha contínua entre diferentes padrões morais observados nas sociedades, reforçam a percepção de que estes se sustentam apenas em crenças particulares.
Sem embargo, juízos morais têm pretensões de universalização. O que não quer dizer que eles sejam valores universais transcendentais, de verdade, mas simplesmente que aspiram a ter validade universal para todos os entes racionais. São, desse modo, propostas da mente humana, como as leis e seus direitos vinculados. Um direito universalizável apoia-se em valores morais com pretensões iguais. Embora não haja nenhum valor objetivo que possa ser imposto a priori, sem a aceitação dos indivíduos, da mesma forma que as leis [10].
A aceitação da fundamentação moral do direito precisa de indivíduos com capacidade cognitiva para entenderem suas implicações. A faculdade de raciocínio dos agentes determina a correta validação das normas, segundo o atendimento de seus interesses básicos pela sobrevivência e reprodução. Afirmar que não existem valores ideais objetivos e direitos naturais não apaga as necessidades naturais que todos seres vivos possuem, incluindo aqueles que propõem as leis. Isso significa tão somente que ao se propor leis gerais, os seres racionais têm de levar em conta os fatos da vida biológica de todos envolvidos e seus consentimentos, para sua validação.

Embora quem não possua capacidade cognitiva para reconhecimento das leis, não possa ser considerado sujeito de direito, muito menos seu agente, não obstante, pode ser tido como objeto do direito, conforme a vontade de quem aprovar as regras a serem seguidas, com as quais esteja relacionado. Quanto maior for a abrangência das leis, maiores serão os atingidos. O debate em torno da validação de princípios morais e do direito deve ser constituído por seres racionais que possuam as mesmas necessidades dos seres viventes. A espécie humana é a única, salvo engano, apta a criar leis e sustentar argumentos em seu favor, ainda que atinjam seres que não possuam tais habilidades, mas sejam objetos de sua consideração. Desse modo, o direito e a moral criados pelos humanos acabam por afetar todo meio ambiente, sem, no entanto, ter como causa uma “iluminação natural”, mas um artifício projetado pela mente humana.

O Conceito de Direito

Hart dedicou o nono capítulo de sua obra clássica, Conceito de Direito (1961), a rebater os principais argumentos em favor do direito natural. Em seu ceticismo moral em relação às leis, considerava válidos os critérios jurídicos, para formulação de leis concretas, que fossem independentes de referências éticas ou de uma concepção prévia de justiça admitidas tacitamente [11]. Ao contrário do direito natural, o positivismo jurídico – do qual era adepto – não dependeria de leis com conteúdos morais, nem de um método de descoberta racional semelhante às leis da física. Tais leis são frutos da observação e correta descrição de um movimento repetitivo, na natureza, enquanto as leis de condutas humanas não passam de proposições prescritas como normas a serem seguidas, conforme a aceitação geral [12].
Diferente dos objetos inanimados e dos demais seres vivos, os seres humanos poderiam escapar às leis “naturais” da moral e do direito, por serem dotados de livre arbítrio. Apesar de não poderem voar como os pássaros, a persistência dessa mentalidade metafísica, no direito, manter-se-ia, apenas por conta de aspirações de verdades que pudessem ser validadas tanto por humanos, como pelos deuses. As formulações abstratas e complexas devem, entretanto, passar por deduções que surgem da observação de elementos reais e confirmadas ou refutadas de modo mais simples. A regularidade dos fenômenos assegura a postulação de leis naturais, embora isso não implique que haja um fim natural e universal para o qual as coisas tendam. Essa concepção teleológica da natureza perdura desde a antiguidade, quando a causa final significava que não poderia haver uma escolha aos seres vivos e da própria natureza, em geral, sobre seu destino.
A vulnerabilidade física, semelhante entre todos os membros da espécie, a despeito da colaboração observada, a fim de se evitar o confronto constante pelos recursos escassos, foi fixada independente da vontade dos indivíduos, que, além disso, precisam de regras dinâmicas para que estas leis sejam implementadas no intuito de superar as carências de cada um. Uma disposição e maior compreensão das normas tornam a vida social praticável entre as pessoas. As vantagens da cooperação são visíveis, quando as sanções inibem os seus desertores. Tais garantias são observadas se houver um sistema coercitivo que estimule o cumprimento dos acordos e do empreendimento mútuo entre os seres humanos [13]. Por outro lado, contra as posturas de um cético positivismo radical, Hart defende que sistemas de leis de uma sociedade possam ser fundamentados com princípios éticos acerca do direito, internamente.

Podemos dizer, dado o enquadramento dos fatos e finalidades naturais, que aquilo que torna as sanções, não só possíveis, como necessárias num sistema interno, é uma necessidade natural, (…) de proteção das pessoas, da propriedade e dos compromissos, os quais são aspectos igualmente indispensáveis do direito interno (HART, H.L.A. Conceito de Direito, cap. IX, §2, p. 215).

As críticas ao direito natural não eliminam a possibilidade de um conteúdo específico para o direito, em geral. Assim, não haveria um conteúdo vazio que um positivismo radical poderia sugerir. Valores, como o trato igual de pessoas diferentes, sob as mesmas leis – isonomia -, podem ser aceitos por todas as formas de direito, embora, historicamente, tenha havido sociedades que não estendiam o mesmo direito a todos. Um sistema jurídico é, então, um fenômeno social que depende da aceitação voluntária das regras e sua observância [14].
A estabilidade de um sistema jurídico depende de um padrão de comportamento aceito, por parte dos adeptos e de seus transgressores. Um sistema exclusivista rígido está sujeito a ameaças e revoltas constantes. Um controle social jurídico, que não se apoie apenas nas obrigações, tem um custo administrativo alto e precisa se adaptar às mudanças, sob pena de uma sujeição a uma organização centralizada opressora e burocrática. Poder e autoridade sustentam-se na regra da aceitação pacífica, por parte das pessoas que lhe são subordinadas. A lealdade ao sistema baseia-se em interesses de longo prazo, na observação do comportamento da população ou em um apego à tradição. Não está, assim, necessariamente vinculada a um juízo moral com relação ao que deve ser feito com o direito.
A legislação absorve a moral comum aos códigos jurídicos. Princípios e valores sociais são, então, observados no direito. Desse modo, a estabilidade do sistema também pode estar ligada à moral. Porém, a interpretação da lei pode pôr em conflito tais valores, sem que uma postura conflitante seja mais decisiva do que a outra. As virtudes a serem seguidas nesses casos são de imparcialidade e neutralidade, em uma palavra: “isonomia”, os interesses de todos envolvidos devem ser considerados igualmente sob a mesma lei. Uma decisão racional deve ser buscada para concordância de um princípio geral, diante dos postulantes.
A crítica do direito requer a conformidade aos padrões jurídicos geralmente aceitos, como o respeito ao trato igual das partes; proteção às liberdades fundamentais etc. A mesma regra geral deve ser aplicada a todos os casos pertinentes, sem discriminação ou outros interesses escusos do magistrado. As regras precisam ser claras, compreensíveis à maioria das pessoas sem retroagirem sobre decisões julgadas. As leis que formam o conteúdo do direito são propostas, debatidas e aceitas antes de sua aplicação, embora as suas consequências nem sempre sejam devidamente avaliadas.

Enquanto os seres humanos puderem conseguir a suficiente cooperação de alguns, de forma a permitir-lhes dominar os outros, utilizarão as formas do direito como um de seus instrumentos. Os homens perversos editarão regras perversas que os outros obrigarão a cumprir (HART, H.L.A. Idem, §3, p.226).

Código de Hamurabi

O código de Hamurabi um dos pactos mais antigo inscritos em pedra, para que todos conheçam a lei vigente.

Regimes totalitários prevalecem, não apenas pela força bruta, mas principalmente pela servidão voluntária daqueles que se acovardam perante o autoritarismo de leis iníquas que lhes são impostas, por um poder espúrio usurpado do povo [15]. Disso resulta a necessidade de constante atenção e possibilidade de revisão das leis. O que não seria possível se fossem tidas como um direito natural absoluto.
No final das contas, para se impedir o abuso do direito é preciso que seja feito um exame moral de suas pretensões, apesar do risco de se cair na anarquia. Em circunstâncias extremas, escolhas ruins podem ser feitas entre os vários males que regras iníquas podem proporcionar. O direito positivo e não o natural enfrenta essas questões com clareza, revelando as escolhas erradas ocorridas no passado. O positivismo jurídico afirma que as leis são comandos humanos, sem conexão obrigatória com a moral ou sua forma idealizada, separada dos momentos históricos, sociológicos ou conceitos éticos. Por vezes, considera o corpo de leis como um sistema lógico fechado, cujas regras jurídicas são determinadas racionalmente, diferente dos juízos morais que não seriam passíveis de uma prova lógica [16]. Hart, no entanto, postula um “positivismo moderado”, no qual se admite que um juiz possa ser orientado por conceitos morais cuja objetividade é deixada em aberto, mas que servem como diretrizes para que tribunais possam operar o direito em harmonia com a ética [17].
A admissão de juízos morais no ordenamento jurídico não significa que haja uma “ordem natural” a regular o direito. Como mostrou Mackie, juízos morais – tal qual o direito – não são fundados em valores ideais, lógicos e transcendentais. Ética e direito passam por um consenso que pode ser validado de modo intersubjetivo, por um pragmático acordo provisório, a fim que se evite a inação e a anarquia. Cabem às pessoas racionais submeterem-se ou não aos critérios da lei, segundo seus interesses justificáveis. O reconhecimento universal de todos interessados deve ser suficiente para que se considere uma norma válida do ponto de vista moral e do direito legítimo.

Raciocínios abrangentes passíveis de serem confirmados por seres racionais estão na base do direito conquistado pelos indivíduos, ao longo da história. O direito existe para mitigar a distribuição desigual dos recursos naturais necessários à existência. Uma escassez completa ou uma abundância que permita o acesso de todos aos bens de que precisam tornariam as demandas por justiça dispensáveis. Para que não haja uma luta interminável entre os homens, o direito procura pacificar as questões em torno dos bens materiais disponíveis, entre os postulantes de um mundo real, com pessoas de carne e osso.

Notas

1. Como na fábula do ateniense Antístenes (445-360 a.C.), o cínico, preservada na Política de Aristóteles (384-322 a.C.), 1284a.
2. Veja HOBBES, Th. Leviatã, part.I, cap.XIV, pp.78 e ss.
3. Veja MOORE, G.E. Principia Ethica, cap. I, seç.B, §14, pp.114 e ss.
4. Veja HUME, D. Investigação sobre o Entendimento Humano, seç. V, part. I, §36; seç VIII, part.I, §64; seç. XII, part.III, §132; Investigación sobre los Principios de la Moral, seç.V, part.II, p.100 e “Do Contrato Original”, in Ensaios Morais, Políticos e Literários, p.232.
5. Veja MOORE, G.E. Op.Cit., cap. I, seç B, §10, p.108.
6. HART, H.L.A. O Conceito de Direito, cap. IV, § 1, p. 68.
9. Veja DAMÁSIO, A. A Estranha Ordem das Coisas, part. II, cap. 9, pp. 167 e ss.
10. Veja MACKIE, J.L.H. Ethics, part.3, cap.10, §2, pp. 232 e ss.
11. Veja HART, H.L.A. Conceito de Direito, cap. IX, §1, p.201.
12. Veja HART, H.L.A. Op.Cit., p. 203.
13. Veja HART, H.L.A. Idem, §2, pp.209 e ss.
14. Veja HART, H.L.A. Ibdem, §3, p. 217.
15. O que não é novidade para quem já leu Discurso sobre a Servidão Voluntária (1571) do jurista francês Étienne de la Boétie (1530-1563).
16. Veja HART, H.L.A. Ibdem, “Notas”, pp.287/6.

17. Veja HART, H.L.A. Ib., “Pós-Escrito”, p. 316, §2, iii.

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Política. – Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
BOÉTIE, É. de la. Discurso sobre a Servidão Voluntária. – s/l: LCC, 2006. Disponível na internet via https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2014171/mod_resource/content/1/Servidao_voluntaria_Boetie.pdf. Arquivo consultado em 2023.
DAMÁSIO, A. A Estranha Ordem das Coisas. -São Paulo: Cia das Letras, 2018.
HART, H.L.A. Conceito de Direito. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
HOBBES, Th. Leviatã. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
HUME, D. Investigação sobre o Entendimento Humano. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
____. Investigación sobre los Principios de la Moral. – Madrid: Espasa-Calpe, 1991.
____. “Do Contrato Original”, in Ensaios Morais, Políticos e Literários. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
IHERING, R. von. A Luta pelo Direito, – São Paulo: Martin Claret, 2004.
MACKIE, J.L.H. Ethics. – Londres: Penguin Books, 1977.
MOORE, G.E. Principia Ethica, – São Paulo: Ícone, 1998.
SILVA, A. R. da. Teoria dos Jogos e da Cooperação para Filósofos. – Rio de Janeiro: Discursus, 2016 (edição digital). Disponível na internet via: https://archive.org/details/tjcf_20210616. Arquivo consultado em 2023.

Honk, Honk!

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Todo apoio aos caminhoneiros unidos nos Comboios da Liberdade, espalhados em todo mundo, em sua luta pelos direitos individuais e contra os governos totalitários e os fánaticos asseclas neofascistas, travestidos de pseudo-anarquistas e comunistas pós-modernos – financiados pelo Forum Econômico Mundial e magnatas “socialistas”.

Cientificismo: a Religião Ateia Científica

SUPERSTIÇÕES e dogmas não são exclusividades de doutrinas teológicas. Entre cientistas e pseudocientistas, existe uma crença que pode ser comparada ao fanatismo religioso. O cientificismo, também conhecido por “cientismo”, é uma ideologia que considera os métodos científicos e suas técnicas experimentais como os únicos elementos dignos de conhecimento. Seja em suas formulações teóricas, pesquisas empíricas ou aplicações à realidade. Um fanático cientificista emprega todo tipo de falácia para defenderem suas ideias absurdas – argumento de autoridade, falsa causa e até mesmo a força bruta, quando contam com apoio de políticos, ditadores e tiranos.
O cientificismo, não por acaso, constitui uma das características marcantes de regimes totalitários, como o comunismo, o socialismo científico, o nacional-socialismo e o fascismo. Uma de suas manifestações mais evidentes ocorre durante epidemias na forma de autoritarismo sanitário que, no Brasil, levou à Revolta da Vacina, em 1904, e provocou o bloqueio econômico nas sociedades democráticas do ocidente, na pandemia do vírus chinês de 2019 a 2021. Crendices sem qualquer fundamento racional obrigaram pessoas saudáveis a se submeterem ao uso compulsório de máscaras e ao bloqueio de suas atividades econômicos, causando todos os tipos de transtornos ao convívio social.
O sensacionalismo e o alarmismo exploraram o medo irracional que as pessoas naturalmente possuem, com a difusão pela imprensa marrom de notícias falsas e informações desencontradas fornecidas por especialistas inescrupulosos, associados a políticos com tendências autoritárias, que encobriam suas incompetências, ignorâncias e interesses escusos, na gestão de uma emergência sanitária. Tudo isso, a despeito dos fatos e contra-argumentos mostrarem a ineficácia das medidas arbitrárias tomadas.

O uso de máscaras é um fetiche que acompanha os cientificistas desde a grande praga de Londres, no século XVII. Mais de 300 anos depois, uma nova pandemia de gripe provocada pelo vírus H1n1 – o mesmo que atacou letalmente a humanidade, em 1918 – foi enfrentada sem que se recorresse ao uso de máscaras ou qualquer restrição aos direitos individuais. Na pandemia de 2009, não foi recomendado o uso geral de máscaras pela população saudável. Apenas as pessoas infectadas e que tivessem contato com estas deveriam utilizá-las, por um curto período de tempo. A preocupação de então era de que o emprego errado de máscaras poderia causar uma falsa sensação de segurança e o agravamento da disseminação da doença.
De fato, o H1N1, mesmo agente patogênico da gripe espanhola de 1918, provocou menos mortes em 2009. Na sua primeira pandemia, o H1N1 atingiu nível 5 de mortalidade, enquanto no século XXI não passou do primeiro nível, sem que nenhuma medida extrema contra os direitos individuais fosse tomada. Isso porque, as condições de higiene e nutrição da população haviam melhorado consideravelmente de um século para o outro.
Além disso, medidas de distanciamento social não foram recomendadas, devido à falta de argumentos racionais para tanto. Apenas os casos em que houvesse contato com pessoas doentes, o isolamento individual foi aceito como válido. Demais ações, como fechamento de escolas e comércio tinham recomendações condicionadas ou rejeitadas totalmente, em 2019 [Veja relatório WHO. Non-pharmaceutical public health measures for mitigating the risk and impact of epidemic and pandemic influenza]. Sobre 1918, relatório de vários países indicaram que as quarentenas não pararam a transmissão do vírus e eram impraticáveis [Veja WHO. Nonpharmaceutical Interventions for Pandemic Influenza, National and Community Measures]. Para efeitos de comparação, em 1918, o H1n1 matou cerca de 5,55% da população mundial (100 milhões de vítimas fatais em 1,8 bilhão), com quarentena e uso de máscaras; em 2009, o mesmo vírus vitimou apenas 0,01% (575,4 mil para 6,85 bilhões da população), sem bloqueios ou máscaras; por sua vez, a pandemia de 2019-21 matou 0,025% das pessoas em 2020 (2 milhões de mortes para 7,75 bilhões de pessoas), com obrigação de máscaras e quarentenas, tornando-se assim duas vezes e meia mais letal do que a última incidência de H1N1.
As contradições e inconsistências dos cientistas não se apagam diante de momentos históricos diferentes. As repetições de erros cometidos no passado fazem com que o ceticismo entorno das suas reais intenções políticas sejam erguidas. A crença cientificista na infalibilidade das ciências foi por essas e outras razões duramente criticada por pensadores da Escola de Frankfurt [Veja ADORNO. Th. “Introdução à Controvérsia sobre o Positivismo na Sociologia Alemã] e pelo químico e filósofo Paul Feyerabend (1924-1994), em Contra o Método (1975), onde sustentava a necessidade de:

a separação entre o estado e a igreja há de ser completada por uma separação entre estado e a ciência, a mais recente, mais agressiva e mais dogmática instituição religiosa (FEYERABEND, P. Contra o Método, XVIII, p. 447).

Thomas Samuel Kuhn (1922-1996), no clássico A Estrutura das Revoluções Científicas (1969), já revelou que os paradigmas ditos científicos não passam de um acordo vigente entre grupos de pesquisadores que adotam determinada teoria em função das disputas internas pela dominância de um campo de investigação específico. O que, na prática, acaba por envolver interesses políticos e financeiros, a fim de garantirem a manutenção e existência do grupo de cientistas, através das verbas obtidas. “Em alguns casos, a implementação de medidas, como restrições de viagem e quarentena, podem seguir os interesses de políticos, em vez de propósitos de saúde pública” já dizia um relatório da Universidade Johns Hopkins, de setembro de 2019.
Uma crise está posta no pensamento científico sempre que este se aferra a dogmas cientificistas obscurantistas. O vínculo entre políticos e pesquisadores com vocação totalitária traz à tona interesses escusos pelo controle social rígido, no intuito de encobrirem a luta pelo poder e seus lucros financeiros, quando na imposição de medicamentos e vacinas da indústria farmacêutica que os patrocinam, que deságuam na implantação de tecnologias de ostensiva vigilância da população [Um exemplo do que acontece na política REUTERS. German lawmaker from Merkel’s conservatives quits over face mask scandal].

 

Referências Bibliográficas

ADORNO, Th. “Introdução à Controvérsia sobre o Positivismo na Sociologia Alemã. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
FEYERABEND, P. Contra o Método. – Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
JOHNS HOPKINS CENTER FOR HEALTH SECURITY. Preparedness for a High-Impact Respiratory Pathogen Pandemic. – Baltimore: Johns Hopkins University, set. de 2019.
KUHN, Th. S. Estrutura da Revolução Científica. – São Paulo: Perspectiva, 1997.
REUTERS. German lawmaker from Merkel’s conservatives quits over face mask scandal. Disponível na internet via https://www.reuters.com/article/instant-article/idUSL1N2L61IL. Acesso em 10 de mar de 2021.
WHO. “Nonpharmaceutical Interventions for Pandemic Influenza, National and Community Measures”. Emerging infectious diseases, 12(1), 88–94, jan 2006. Disponível em https://doi.org/10.3201/eid1201.051371.
____. Non-pharmaceutical public health measures for mitigating the risk and impact of epidemic and pandemic influenza. – Genebra: WHO, 2019. Disponível em https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/329438/9789241516839-eng.pdf. Acesso em 11 de mar de 2021.

Causas Perdidas

DEPOIS da queda do mudo de Berlim (1989), a esquerda ocidental perdeu muitas das bandeiras que vinha empunhando até então. Quando a cortina de ferro caiu, se desvelou um amplo espectro de corrupção e a incapacidade do modelo socialista soviético cumprir suas promessas de igualdade e bem estar de seus cidadãos. Ao longo das décadas que serviram de passagem do século XX para o XXI, filósofos contemporâneos alertaram para os erros dos esquerdistas em desprezar os sentimentos patrióticos das pessoas e o apoio descarado às ações terroristas de extremistas muçulmanos, contra o ocidente. Richard Rorty (1931-2007) e Michael Walzer foram dois nomes importantes que se destacaram pelo apelo por uma esquerda patriótica e que preservasse os valores iluministas [veja https://forumdediscursus.wordpress.com/2019/03/28/zero-a-esquerda/]. Porém, o esquerdismo doentio pós-moderno não quis ouvir as palavras lúcidas desses pensadores.
Durante a pandemia dos hospitais vazios, os esquerdistas do século XXI bradaram furiosamente pelas restrições ao direito de ir e vir, pela censura aos que se opunham, bem como o fechamento das escolas e todo comércio. Falsos democratas aceitaram com alegria: “As restrições à liberdade de movimentos e de associação, até a certo ponto seriam impensáveis anteriormente nas democracias liberais, agora são amplamente aceites como necessárias” [veja https://criticanarede.com/covid19.html]. Sem qualquer justificativa razoável que fosse ancorada nos fatos, a esquerda pós-moderna vociferou pelo autoritarismo e controle totalitário das pessoas. O livre arbítrio, a liberdade de expressão, a defesa da educação universal e dos direitos individuais passaram a ser coisas de neoliberais, conservadores e direitistas. Intelectuais e políticos demagogos perderam a razão em meio a uma doença, cujos números provam ser da mesma gravidade de uma gripe comum que ataca a humanidade sazonalmente. Os esquerdistas vestiram a máscara da hipocrisia e acabaram por ter suas características tirânicas desmascaradas diante de todos.

Em 2020, o vírus chinês apresentou uma taxa de mortalidade de 0,026%, em todo mundo. Foram 1.831.703 mortes acumuladas para uma população global acima dos 7 bilhões de pessoas [Veja https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20210105_weekly_epi_update_21.pdf?sfvrsn=15359201_15&download=true]. No Brasil, essa taxa ficou em 0,092% – 196.524 mortes [veja https://transparencia.registrocivil.org.br/especial-covid] em uma população de 212.609.975 [veja https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html?utm_source=portal&utm_medium=popclock&utm_campaign=novo_popclock], dentro da média anual para a gripe sazonal típica que é menor que 0,1% [veja https://en.wikipedia.org/wiki/2009_swine_flu_pandemic]. A pandemia de 2020, portanto, manteve uma severidade de nível 1, semelhante a da pandemia de 2009 de H1N1. As diferenças estão no fato de naquele ano não houve apelos histéricos pela paralisação da economia e violação dos direitos fundamentais das pessoas. Não por coincidência, em 2009, havia um governo democrata nos Estados Unidos e de um corruPTo, no Brasil, que distribuíam recursos a ditaduras igualmente corruPTas. Os objetivos evidentes de todo alarmismo e sensacionalismo das organizações envolvidas e da imprensa marrom, que manipularam o sentimento de medo humano, eram derrubar a economia ocidental e os governos conservadores nos EUA e Brasil. Duas dessas metas foram cumpridas, falta uma…

Com a perda da liberdade, perde-se imediatamente a coragem (DE LA BOÉTIE, É. Discurso sobre a Servidão Voluntária).

Meses Depois…

A central de informações dos Cartórios de Registro Civil (CRC) do Brasil apresentou novos gráficos atualizados e mais detalhados dos óbitos provocados por doenças respiratórias, no país. Durante o período de dias que vem desde o dia 16 de março até 16 de maio, foram registrados 16.179 óbitos. Uma média de 261 casos por dia com o máximo de 613 mortes a 08 de maio (veja Figura 1) Isto representa 8,75 por cento das fatalidades ocorridas neste intervalo, em 2020, 184.856 no total. Um número menor do que aconteceu em 2019, sem a ocorrência da pandemia, quando 188.955 brasileiros morreram por doenças respiratórias. Foram 4.099 ocorrências a mais do que 2020, ano em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou estar sob severa pandemia oriunda da China (veja Figura 2).

Figura 1 – Fonte: CRC


Figura 2 – Fonte: CRC

Por conta dessa nova doença, várias medidas extremas foram tomadas em todo mundo contra os direitos individuais das pessoas saudáveis ao trabalho e liberdade. Governantes com viés totalitários tomaram decisões que provocaram mais mortes do que as naturais nessa época, em diversos países. Na cidade do Rio de Janeiro, capital do estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a administração municipal – notória por sua má gestão na saúde – decretou quarentena, uso obrigatório de máscara e bloqueio de alguns bairros. O resultado foi um aumento vertiginoso do número de óbitos na região. Até o dia 18 de abril, data do decreto municipal que obrigou o uso de máscara para todos cidadãos cariocas, a média de óbitos era de 15 por dia, sendo 15 de abril o mais grave com 55 casos. A partir do decreto, a média diária saltou para 96 com maior mortandade em 30 de abril, quando ocorreram 159 mortes por causa do vírus chinês e das medidas desastrosas adotadas (veja Figura 3).

Figura 3 – Fonte CRC

Em todo mundo, os desastres causados pelo confinamento vão sendo revelados. No recordista estado de Nova York, nos Estados Unidos (EUA), seu governador esquerdista se disse “chocado” por uma pesquisa oficial ter revelado que a maioria dos pacientes hospitalizados com a gripe chinesa estavam cumprindo corretamente as medidas restritivas que seu governo inconsequente havia ordenado (veja Figura 4). Ações humanitárias de combate à fome, mortalidade infantil, materna e outras doenças mais graves que a disseminada pelo Partido Comunista da China (vulgo PCC) estão sendo ameaçadas por bloqueios forçados por gestores autoritários (veja artigos da UNICEF. As COVID-19 devastates already fragile health systems, over 6,000 additional children under five could die a day, without urgent action e THE GUARDIAN. Millions predicted to develop tuberculosis as result of Covid-19 lockdown).

Figura 4 – Fonte: CNBC

Países que optaram por manter suas políticas democráticas começam a receber o reconhecimento internacional, enquanto preservam sua população imunizada naturalmente de futuras recaídas (veja SAYERS, F. Nobel prize-winning scientist: the Covid-19 epidemic was never exponential). O Brasil, cujo governo federal optou por não decretar estado de defesa, gestores estaduais e municipais tomaram várias medidas contraditórias, sendo que aqueles cujos sistemas de saúde falidos decidiram tomar medidas extremas, acabaram por quebrar suas economias e multiplicar o número de mortos. Como no caso do Rio de Janeiro, onde leitos hospitalares completos estão vazios por falta de pessoal qualificado para sua utilização (veja YAHOO. Comissão encontra leitos vazios a poucos metros de pacientes que esperam vagas em corredores).

Medidas como lockdown só servem para encobrir a incapacidade gerencial da administração pública em abrir leitos ou UTIs que vinham sendo ostensivamente fechados e contribuíram para o estado atual que sugere o sistema como lotado (FERREIRA, Dr. G. Comunicado).

Apesar das advertências contra o alarmismo histérico orquestrado em torno da gripe chinesa, a marcha da estupidez humana segue seu curso rumo ao abismo no qual se pretende atirar as conquistas históricas da humanidade.

Referências Bibliográficas

CNBC. Cuomo says it’s ‘shocking’ most new coronavirus hospitalizations are people who had been staying home. Disponível na Internet via https://www.cnbc.com/2020/05/06/ny-gov-cuomo-says-its-shocking-most-new-coronavirus-hospitalizations-are-people-staying-home.html. Arquivo consultado em 2020.
FERREIRA, Dr. G. Comunicado: Sinmed RN é contrário ao lockdown. Disponível na Internet via http://sinmedrn.org.br/noticias/sinmed-rn-e-contrario-ao-lockdown/. Arquivo consultado em 2020.
THE GUARDIAN. Millions predicted to develop tuberculosis as result of Covid-19 lockdown. Disponível na Internet via https://www.theguardian.com/global-development/2020/may/06/millions-develop-tuberculosis-tb-covid-19-lockdown. Arquivo consultado em 2020.
SAYERS, F. Nobel prize-winning scientist: the Covid-19 epidemic was never exponential. Disponível na Internet via https://unherd.com/thepost/nobel-prize-winning-scientist-the-covid-19-epidemic-was-never-exponential/. Arquivo consultado em 2020.
UNICEF. As COVID-19 devastates already fragile health systems, over 6,000 additional children under five could die a day, without urgent action. Disponível na Internet via https://www.unicef.org/press-releases/covid-19-devastates-already-fragile-health-systems-over-6000-additional-children. Arquivo consultado em 2020.
YAHOO. Coronavírus: Comissão encontra leitos vazios a poucos metros de pacientes que esperam vagas em corredores. Disponível na Internet via https://br.noticias.yahoo.com/coronav%C3%ADrus-comiss%C3%A3o-encontra-leitos-vazios-200007769.html. Arquivo consultado em 2020.

Política Econômica Justa

A justiça une as questões relacionadas com a política e economia, quando se trata de promover a melhor distribuição dos recursos e talentos, considerados escassos. Como dizia David Hume (1711-1776), em Investigação sobre os Princípios da Moral (1751), é uma virtude útil apenas quando há uma escassez restrita de recursos. Se todos os bens necessários à manutenção da vida e do conforto dos indivíduos fossem plenamente disponíveis a todos, a justiça não seria reivindicada pois cada um estaria satisfeito com o que possui sem precisar lutar com outra pessoa pela posse daquilo que lhe faltasse. Tudo seria dado. Nos casos extremos de uma violência generalizada, como numa guerra civil ou total contra um inimigo, não cabe justiça entre os beligerantes, vencerá aquele que for mais forte ou astuto. Portanto, a justiça só se faz necessária quando a escassez de bens é moderada e um apelo pela melhor distribuição dos bens materiais pode ser defendida argumentativamente.

A Revolução de 1776 dos Estados Unidos escolheu a Democracia como forma de regime político justa para seu Federalismo

Nesse sentido, a política econômica justa será aquela que atender a uma distribuição de recursos, segundo as circunstâncias históricas locais. Mas isso não diz muita coisa, afinal o modo como a distribuição for feita influencia decisivamente na consideração sobre sua justiça. Muitos poderiam pensar que a repartição igualitária dos bens materiais e dos talentos humanos seria uma coisa justa. Outros talvez contra-argumentariam alegando que não é justo que uma pessoa mais carente receba o mesmo que outra não tão carente ou ainda que aquele com maior capacidade de produzir deva obter uma parte maior que aquele que nada faz de útil. “A cada um segundo sua capacidade” é o lema de muitas doutrinas e religiões tão distantes como o marxismo e o cristianismo. Agora, quando esse tipo de justiça é posto em prática, os problemas quanto à desigualdade da distribuição retornam imediatamente. Apenas para citar autores modernos e contemporâneos, correntes liberais radicais defendem que o mercado livre, sem qualquer intervenção externa, seja o único meio eficiente de fazer tal distribuição justa. No mercado livre, “uma mão invisível” seria a única coisa responsável pela divisão equilibrada dos recursos disponíveis – para mais detalhes veja A Riqueza das Nações (1773) de Adam Smith (1723-1790). Entretanto, a intervenção do Estado é defendida por quem pensa que o liberalismo econômico não seja suficiente para realizar a justiça, por si só, pois estaria a mercê de conluios, do uso da força indiscriminada, ameaças, formação de oligopólios etc. que impediriam a recompensa justa aos esforços daqueles que não tivessem a sorte ou disposição para explorar a fraqueza dos demais. Assim, o Estado serviria como uma espécie de mecanismo de compensação das distorções provocadas pelo mercado – veja Las Esferas de la Justicia (1983) de Michael Walzer.
A respeito da forma de governo capaz de realizar a justiça, a democracia é hoje defendida pelos principais autores ocidentais como John Rawls (1921-2002), em O Direito dos Povos (1999), e Jürgen Habermas, em Direito e Democracia (1992). No passado, já houve quem defendesse o absolutismo, como a forma mais justa de distribuição do poder, por exemplo, Thomas Hobbes (1588-1679), no Leviatã (1651). Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) proclamavam a ditadura do proletariado como o regime político ideal para promover a justiça, por exemplo, no Manifesto do Partido Comunista (1847).
Isso sem falar nos pensadores orientais e nos filósofos medievais e antigos que também tinham concepções próprias de política e economia justas, vinculadas à monarquia e ao despotismo, entre outros tipos de regimes.

Referências Bibliográficas

HABERMAS, J. Direito e Democracia. – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
HOBBES, Th. Leviatã. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
HUME, D. Uma Investigação sobre os Princípios da Moral. – Campinas: UNICAMP, 1995.
MARX, K e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. – São Paulo: Matin Claret, 2001.
SMITH, A. A Riqueza das Nações. – São Paulo: Nova Cultural, 1985.
RAWLS, J. O Direito dos Povos. – São Paulo: Martins Fontes, 2001.
WALZER, M. Las Esferas de la Justicia. – México, D.F.: Fondo de Cultura Económico,1993.

Direito de Propriedade

Texto sobre PolíticaO direito de propriedade é um ponto que desde a origem da filosofia política moderna alimentou divergências fundamentais. Thomas Hobbes (1588-1679), que com justiça é considerado o primeiro autor moderno de filosofia política, considerava o direito de propriedade como algo derivado das leis civis. Isto é, o poder de propor regras sobre os bens que os seres humanos poderiam gozar seria um atributo da soberania do Estado:

porque antes da constituição do poder soberano (…) todos os homens tinham direito a todas as coisas, o que necessariamente provocava a guerra. Portanto, esta propriedade, dado que é necessária à paz e depende do poder soberano, é um ato deste poder, tendo em vista a paz pública (HOBBES, Th. O Leviatã, II, cap. XVIII, p. 110).

Gravura de Thomas Hobbes feita por William Faithorne, em 1676.

Para Hobbes, o direito de propriedade seria um direito do soberano por instituição, uma vez que a lei natural ditada pela razão estabelecia os limites à liberdade de cada um fazer o que quiser para sua própria sobrevivência e reprodução, em função do estabelecimento de um Estado encarregado de manter a paz e, portanto, regulador do direito de propriedade.
Contudo, John Locke (1632-1704), um dos fundadores do pensamento liberal, defendia que a propriedade era uma consequência natural do trabalho humano:

(…) nenhum trabalho do homem podia tudo dominar ou de tudo apropriar-se, e nem a fruição consumir mais do que uma pequena parte, de sorte que era impossível para qualquer homem (…) usurpar o direito de outro ou adquirir para si uma propriedade com prejuízo do vizinho, que ainda disporia de espaço para posse tão boa e tão extensa (…), como antes de ter-se dela apropriado (LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o Governo, cap. V, § 36, p. 48).

Na perspectiva de Locke, o motivo que guiava os seres humanos à convivência em sociedade seria a manutenção da propriedade, principal objetivo do governo. Ao contrário de Hobbes, o Estado concebido por Locke não poderia retirar a propriedade de qualquer um sem o consentimento do proprietário.
Ainda hoje, o direito à propriedade privada continua sendo assunto de muita polêmica. Depois de Karl Marx (1818-1883) e Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) a distinção entre propriedade privada dos bens de produção e do consumo reacendeu a questão sobre o direito do Estado intervir na propriedade privada. Assunto que permanece no centro do debate entre os defensores atuais do liberalismo e do socialismo remanescente da Queda do Muro de Berlim, em 1989.

Referências Bibliográficas

HOBBES, Th. O Leviatã. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
LOCKE, J. O Segundo Tratado sobre o Governo. – São Paulo: Abril Cultural, 1978.

As Chances da Justiça Social de Miller

Uma teoria da justiça, na concepção de David Miller, deve combinar os princípios de necessidade, mérito e igualdade, tendo em vista as diferenças entre grupos sociais. Apesar de suas dificuldades práticas esse conceito de justiça social acredita poder sustentar seu aspecto formal de modo consistente numa jurisdição que vai além dos limites da democracia liberal. Os efeitos da globalização e do multiculturalismo sobre esses princípios despertam um interesse maior por conta de seus desafios diretos aos objetivos de um projeto político dessa envergadura.
A globalização é aquele fenômeno contemporâneo que estabelece um mercado mundial que avança sobre as fronteiras nacionais, enquanto o multiculturalismo busca o reconhecimento político das diversas culturas em meio às nações existentes. À primeira vista, o projeto de justiça social precisaria de uma integração política homogênea na comunidade e as intervenções estatais na economia tornariam simplesmente impossível a execução dos propósitos dessa aspiração, nas atuais circunstâncias.
A aplicação de uma política de justiça social depende de uma estrutura institucional que atenda os princípios de necessidade, mérito e igualdade, a fim de que tais objeções sejam superadas. Essa estrutura institucional deve promover uma distribuição dos bens com base nas necessidades individuais, proporcionando pelo menos uma vida minimamente decente. Tendo em mente, a globalização e o multiculturalismo, o ponto chave é saber se o mercado pode ou não dar conta desse tipo de distribuição. A justiça exige que muitos recursos sociais sejam distribuídos também com base no mérito, tais como prêmios e honrarias. Mas o mérito econômico é a principal questão para a justiça social tentar responder acerca de como as recompensas devem ser repartidas em função do desempenho, considerando as atividades produtivas como inovação, gerenciamento e trabalho.
Um mercado justo precisa ter uma regulamentação que preencha cinco condições: igualdade de oportunidade; legislação contra discriminações; a livre competição; a restrição aos efeitos cumulativos da sorte e a consideração recíproca dos trabalhos realizados dentro e fora do mercado. O desenho de uma sociedade justa que atenda esses requisitos possui uma distribuição de bens que admite uma certa desigualdade entre os seus participantes, desde que menor do que a existente nas economias capitalistas.
Por fim, uma igualdade positiva deve ser pretendida em associações de certos grupos sociais na forma de uma cidadania em que as pessoas reivindicam um tratamento igual. Uma constituição formal é o mecanismo que assegura tais conquistas. A comunidade política assim estabelecida garantiria o recebimento dos benefícios correspondentes, merecidos por cada pessoa.

Globalização e Multiculturalismo

A globalização, em todos os aspectos, tem contribuído para reduzir o alcance das decisões tomadas no domínio restrito do estado nação. Principalmente, as regulamentações econômicas que restringem os ganhos e as atividades profissionais. Nesse sentido, instituições sociais justas possuem interesses comuns ao do mercado global por uma economia florescente, pois sem participar de um comércio internacional os estados não teriam como atender suas demandas internas. Porém, a abertura da economia afeta a unidade dos estados que passam a ter de levar em conta as necessidades estrangeiras, fora de seus horizontes, sobrecarregando suas funções como instrumento de justiça social.
O multiculturalismo, por sua vez, representa a fragmentação das culturas nacionais, onde os membros procuram agir politicamente a partir da perspectiva de um grupo cultural. Isso acarreta três consequências importantes para a justiça social. Primeiro, a visão estreita de uma comunidade específica ameaça a ideia de uma distribuição mais ampla que atravesse várias culturas. Segundo, os acordos sobre a justiça social ficam mais difíceis de serem obtidos. Além disso, em terceiro lugar, essa preocupação declina frente à busca pelo reconhecimento cultural. Para enfrentar esses problemas, um critério de justiça preciso se faz necessário para que as demandas elementares acerca da justiça sejam tratadas da mesma maneira, segundo seus três princípios. A complexidade dessas questões obrigam um exame mais detalhado sobre a globalização e o multiculturalismo, em suas relações com a justiça social.

Justiça Social num Mundo Globalizado

Em termos de globalização, os agentes são vistos como maximizadores econômicos que investem onde houver melhor retorno. Embora justiça social e eficiência econômica não formem um casamento perfeito, espera-se que os maximizadores econômicos reconheçam as boas razões para aplicarem nas sociedades justas. O fato de estarem sempre buscando maior ganho econômico não quer dizer necessariamente que esses agentes sejam cegos a considerações sobre o ambiente social no qual os recursos são alocados.

A igualdade de cidadania tenta impedir o risco de cair abaixo da linha da pobreza

Os pontos aos quais a globalização e a justiça social se enfrentam estão ligados à cidadania igual, à meritocracia, às necessidades básicas e à igualdade material. Por um lado, a igualdade entre os cidadãos favorece o investimento e o incremento profissional. Por outro, um regime político que promova a cidadania igual pode ser mais oneroso na perspectiva dos maximizadores do que uma autocracia capaz de impor o progresso econômico.
Já numa meritocracia, a excelência dos bens produzidos poderia prevalecer, graças aos incentivos à competição entre os melhores. Contudo, isso também poderia servir de preocupação para os investidores, uma vez que certos privilégios privados estariam ameaçados. A meritocracia exige mais do que uma mera apreciação econômica para ser preferida. De modo semelhante, a justiça baseada no atendimento às necessidades individuais pode ajudar no aumento da produtividade, porém a existência de grupos marginais ao mercado, cujas necessidades precisam ser atendidas, vão além das expectativas econômicas.
Uma interpretação fraca desse princípio defende que haja um mínimo abaixo do qual as pessoas não devam descer, ficando o resto livre para um crescimento desigual. Uma posição mais forte, pretende que os recursos necessários sejam distribuídos uniformemente, a despeito das diferentes carências de cada um, sem gerar grandes distorções acima do patamar mínimo. Nesse aspecto, um investidor poderia rejeitar a variante mais forte, pois esta reduziria a margem de lucro esperada, enquanto a mais fraca manteria a produção acelerada, preservando a projeção de altos ganhos.
Todavia, a meritocracia e o atendimento às necessidades básicas não colocam forçosamente empecilhos à eficiência econômica. A igualdade material passa, então, a ser um item que merece maior atenção. Contra as teorias igualitaristas, argumenta-se que uma economia desigual pode ser sustentada dentro da perspectiva ponderada de diferentes contribuições sociais. A distribuição de recursos, numa sociedade mundial, ultrapassa os domínios dos governos nacionais. Motivo que reduz a abrangência das políticas igualitárias dessas administrações. O exemplo da liberação do mercado inglês, aos poucos vai sendo seguido por outros países que não conseguem mais manter os acordos internos que restringiam a desigualdade.
Toda dificuldade está em saber que medidas adotar para inibir eficazmente a desigualdade. Entretanto, isso só vem a ocorrer quando há um sólido sentido de justiça social. Projeto que fica muito desamparado com a fragmentação do estado-nação. O que leva à discussão mais atenta sobre o multiculturalismo.

As Dificuldades do Multiculturalismo

Na visão multiculturalista, um consenso sobre uma justiça social comum a todas culturas é algo implausível. John Gray é um dos que apontam o fato do mérito e das necessidades variarem nas diversas tradições morais. Não obstante, apesar dessas diferenças evidentes, a hipótese de um conflito inevitável entre essas concepções divergentes e uma noção de justiça social é também duvidosa. A despeito das diferenças de conteúdo cultural, a forma das reivindicações de justiça para os grupos desfavorecidos pode ser entendida por todos cidadãos, em geral.
Estudos empíricos comprovam a convergência para determinadas normas de procedimento da justiça. Somente as fortes identidades nacionais impedem a ampliação da consideração de outros grupos externos. A dificuldade principal reside no não reconhecimento do direito dos outros serem incluídos nas metas de uma justiça social. Essa inclusão, no entanto, não exige a eliminação das diferenças culturais, mas a abertura das identidades nacionais para sua viabilização, como acontece nos estados democráticos. Assim, uma forma de cidadania forte e inclusiva, apoiada numa identidade nacional partilhada, forneceria as condições para a observação das demandas justas por parte dos outros grupos sociais.

Conclusão

Na prática, três condições principais são requeridas para implementação do projeto de justiça social: uma associação específica vinculada à sociedade; uma estrutura institucional que interfira nas oportunidades vitais de cada um; e uma agência capaz de alterar esta estrutura, segundo as propostas de um convívio justo. Os argumentos oriundos da globalização e do multiculturalismo têm seus acertos e suas falhas, quando atacam essa política intervencionista.
A globalização erra ao encarar a justiça social como obstáculo à eficiência econômica, embora o combate às desigualdades, no seio dos estados nacionais, possa limitar a atuação dos agentes econômicos. Os multiculturalistas, por seu turno, erram ao acreditarem que um desacordo em torno do sentido da justiça é inevitável entre culturas diferentes. Contudo, têm razão quando criticam a base de distribuição primária que parte da ideia de uma cultura homogênea.
Para evitar tais embaraços, é preciso encontrar novas maneiras de promover os princípios de justiça e renová-los em alguns casos. O alcance limitado dos instrumentos políticos obriga o emprego de novos mecanismos sugeridos, como o incentivo à melhoria das habilidades e dos talentos (meritocracia). Instituições transnacionais devem integrar as identidades da maioria dos cidadãos. Em suma, os propósitos da justiça social têm de encarar os difíceis temas de um universo em que as fronteiras econômicas, sociais e políticas não são coincidentes.

Referência Bibliográfica

MILLER, D. Principles of Social Justice. – Cambridge: Harvard University Press, 2001.