Um Círculo em Viena

A atmosfera filosófica dos países de língua alemã no século XIX esteve impregnada pela tradição idealista dos românticos Fichte, Schelling e Hegel. Esses autores não se satisfaziam com a simples descrição de como as coisas acontecem no mundo e procuravam, então, obter o pleno entendimento dos fenômenos através da descoberta de suas causas metafísicas, inacessíveis pelo método indutivo das ciências. Não obstante esse predomínio intelectual, alguns físicos, entre eles Gustav Robert Kirchhoff (1824-1887) – cuja pesquisa descrevia as reações fotoquímicas dos elementos – e Ernst Mach (1838-1916) – físico e filósofo empirista radical -, protestaram contra tal tendência de buscar um porque de todas as coisas. Para esses autores não haveria um agente metafísico que fosse responsável pelos acontecimentos, motivo pelo qual passaram a descrevê-los em termos de leis empíricas.
O positivismo decorrente dessa postura procurou livrar a pesquisa científica dos encargos metafísicos acerca de um suposto “porque” de algo acontecer. Nas primeiras décadas do século XX, já era possível fazer frente às concepções idealistas de um modo mais evidente. Em 1924, o filósofo alemão Moritz Schlick (1882-1936) reuniu em torno do seminário que organizava na Universidade de Viena os filósofos e cientistas de inspiração empirista para debaterem os critérios de verdade e pesquisa mais compatíveis com o método científico. Lá já estavam o físico Philipp Frank (1884-1966), o filósofo Otto Neurath (1882-1945) e o matemático Hans Hahn (1879-1934), aos quais se juntaram com o tempo Rudolf Carnap (1891-1970), Herbert Feigl (1902-1988), Friedrich Waismann (1896-1959), entre outros. Participavam ainda do grupo, sem no entanto serem filiados, Ludwig Wittgenstein e Karl Popper (1902-1994), que logo foi considerado “a oposição oficial” ao Círculo de Viena (1).
Em linhas gerais, esses pensadores tinham em comum uma nova concepção filosófica fundada apenas nas descobertas de uma investigação daquilo que fosse possível de ser conhecido, deixando de lado tudo que resultasse de crenças injustificadas ou de suposições metafísicas. Ao tentar unificar as ciências sob um método considerado correto, procediam à análise da linguagem científica e sua estrutura teórica. Por conseguinte, procuravam fazer uso de uma lógica formal, desenvolvida a partir da obra do matemático alemão Friedrich Ludwig Gottlob Frege (1848-1925) e do lógico inglês George Boole (1815-1864). A análise feita deveria adotar como regra o princípio da verificabilidade ou verificação, pelo qual se distinguia as sentenças significativas do ponto de vista factual através da possibilidade de verificação. Dependendo das condições observadas a proposição poderia ser aceita como verdadeira ou rejeitada como falsa. Essas ideias foram defendidas e divulgadas na revista Erkenntnis (Conhecimento), a partir de 1930. Mas com a morte de Schlick o grupo se desfez, já desgastado que estava com as repercussões contrárias a sua postura positivista.

Lógica, Ciências e Linguagem

Longe das discussões metafísicas a lógica pôde avançar além do ponto que Aristóteles havia deixado o silogismo como principal modelo de inferência. Os trabalhos pioneiros de Boole e de Frege apresentaram uma vinculação direta entre a lógica e a matemática que permitiram considerar as sentenças da linguagem como uma interface humana para estruturas mais simples que poderiam ser aplicadas a outras máquinas computadoras, cujos primeiros projetos só se tornaram possíveis graças a esta aproximação inédita. Boole publicou dois livros fundamentais para incorporação da lógica à matemática: o primeiro, Análise Matemática da Lógica (1847), e o segundo, Investigação sobre as Leis do Pensamento (1864). A realização desse projeto permitiu que fosse criada a chamada álgebra de Boole de ordem binária, isto é, quando as variáveis só podem assumir apenas dois valores excludentes, ou verdadeiro (1) ou falso (0), tendo como operadores a conjunção (∧) – também interseção – , a disjunção (∨) – ou união – e a negação (¬). Ao respeitar os axiomas de associatividade [a ∧ (b ∧ c) = (a ∧ b) ∧ c; a ∨ (b ∨ c) = (a ∨ b) ∨ c]; comutatividade [a ∧ b = b ∧ a; a ∨ b = b ∨ a]; distributividade [a ∧ (b ∨ c) = (a ∧ b) v (a ∧ c); a ∨ (b ∧ c) = (a ∨ b) ∧ (a ∨ c)]; identidade [a ∨ 0 = a; a ∧ 1 = a] e complementação [a ∨ a’ = 1; a ∧ a’ = 0], a álgebra de Boole estaria apta para simular qualquer cálculo das proposições feitas sobre essa estrutura, tal como o pensamento de um ser racional.
No mesmo ano em que Nietzsche editava Assim Falou Zaratustra, 1884, Frege apresentou sua definição lógica de número ao demonstrar também a fundamentação lógica das leis da aritmética, no seu livro Os Fundamentos da Aritmética. Para isso, Frege procurou separar todos os aspectos psicológicos de sua investigação daqueles meramente lógicos e tudo que fosse subjetivo do que fosse objetivo. Toda busca pelo significado das palavras deveria ser feita no contexto da proposição e não fora desta tendo em vista a distinção clara entre conceito e objeto (2). Nesse sentido, Frege chegou à conclusão de que todas as leis da aritmética são juízos analíticos e a priori, ao contrário do que havia afirmado Kant. Pois essas leis não seriam aplicáveis a coisas exteriores, mas sim aos juízos que são feitos sobre tais coisas. Por conseguinte, ao tratar das conexões entre esses juízos, as leis da aritmética também estariam lidando com as leis da natureza, que nada mais são do que juízos sobre o mundo exterior. Sendo assim, para que uma lei da natureza pudesse ser considerada válida seria necessário saber se seu respectivo juízo fora inferido de forma válida do ponto de vista lógico. Destarte, Frege inaugurou uma nova forma de investigação analítica das leis naturais, partindo da maneira pela qual suas proposições são elaboradas.
A guinada radical dada por Frege à lógica clássica, agora simbólica, passando dos silogismos ao estudo da formulação de proposições, tal como em Boole, permitiu aos filósofos encontrar a certeza das leis empíricas que não podiam ser fornecidas pela fenomenologia metafísica dos idealistas. Carnap estabeleceu, por sua vez que a única tarefa legítima da filosofia das ciências seria o esclarecimento das estruturas da linguagem científica e da matemática, a partir de Sintaxe Lógica da Linguagem (1934). Além das leis quantitativas que descrevem as experiências por meios de uma quantidade numérica – como, por exemplo, “todos pregos que contém ferro são atraídos ao extremo de uma barra que tenha sido magnetizada” -, Carnap postulava leis qualitativas mais simples que se expressariam na forma lógica de uma implicação (“se x, então y”). Uma explicação científica deveria seguir essa forma de propor leis e não acrescentar entidades metafísicas que nada acrescentem ao conhecimento, como espírito absoluto, ou enteléquias (efetivação da potência das coisas) aristotélicas.

(…) O ponto que eu desejo enfatizar é este: não é suficiente, para os propósitos de uma explicação, simplesmente introduzir um novo agente, dando-lhe um novo nome. Você precisa também fornecer leis.
(…) Da noção de uma enteléquia [ou qualquer conceito metafísico] não extraímos novas leis, ela não explica mais que uma lei geral já disponível. Não nos ajuda nem mesmo a fazer novas previsões. Por essas razões não podemos dizer que nosso conhecimento científico foi ampliado. O conceito de enteléquia, a primeira vista, pode acrescentar algo a nossas explicações; mas quando a examinamos mais profundamente, vemos que é vazia. É uma pseudo-explicação (CARNAP, R. An Introduction to the Philosophy of Science, cap. 1, pp. 15-16).

O primeiro Wittgenstein influenciou Viena, mas o segundo foi influenciado pelo Círculo.

Wittgenstein participou do Circulo de Viena na época em que apresentava o Tratado Lógico-Filosófico como tese de doutorado em Cambridge (1929). Um ano depois se afastou do seminário vienense e começou a escrever suas Investigações Filosóficas (1953), que só vieram a ser publicadas, depois de sua morte, ocorrida em 1951. O Tractatus foi escrito na esperança de ter elucidado todos os problemas aos quais as soluções da filosofia tradicional tinham gerado equívocos típicos de um uso impróprio da linguagem. Assim, o objetivo era encontrar as condições que deveriam ser satisfeitas para que se empregasse uma linguagem logicamente perfeita. Na linha de pesquisa que veio a ser adotada pelo Círculo de Viena, Wittgenstein terminou sua colocação da forma simbólica perfeita de uma lógica linguística defendendo a separação de tudo que fosse místico, ou sem sentido e significado preciso.

O método correto da Filosofia seria o seguinte: só dizer o que pode ser dito, isto é, as proposições das ciências naturais – e portanto sem nada que ver com a Filosofia – e depois, quando alguém quisesse dizer algo metafísico, mostrar-lhe que nas suas proposições existem sinais aos quais não foram dados uma denotação. A esta pessoa o método pareceria ser frustrante – uma vez que não sentiria que lhe estávamos a ensinar Filosofia – mas este seria o único método estritamente correto (WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-Filosófico, 6.53, p. 141-142).

Círculo Partido

Popper participou do Círculo de Viena apenas como ouvinte, apresentando alguns artigos para publicação em seus veículos de divulgação. De fato, nunca se vinculou a esse seminário como membro efetivo. Seu primeiro contato aconteceu por intermédio de Hans Hahn, em 1926. Na época, Popper interessou-se pelas conferências e obras de Neurath, Carnap e Wittgenstein. E, apesar de suas críticas ao positivismo dos vienenses, recebeu incentivo de Herbert Feigl para publicar suas impressões.
Logo em seu primeiro livro, Lógica da Pesquisa Científica (1934), Popper criticou o positivismo lógico por levar fatalmente a um solipsismo, à visão exclusiva da perspectiva subjetiva de um indivíduo sobre o mundo. O passo que conduziria a essa condição decorre de uma concepção ingênua de que “o mundo não é, pois, nada senão as minhas impressões sensoriais” (3). A oposição de Popper ao Círculo concentrava-se nessa interpretação introspectiva da percepção das coisas. Popper defendia uma postura mais realista que evitasse esse retorno subreptício a uma metafísica idealista que radicalizava as sensações, a ponto de tornar o mundo percebido pelo sujeito como sua própria criação particular, posto que não haveria nada mais de certo além dessa percepção. O realista crítico, ao invés de considerar tudo falso ou enganador, partiria para construção de hipóteses passíveis de ser complementadas pela colaboração de vários outros domínios científicos que lhe fossem coerente.
As críticas de Popper ao empirismo radical trataram apenas um dos dois aspectos problemáticos do positivismo lógico. O outro dizia respeito ao método de verificação, que supostamente corroboraria as experiências sensíveis e as teorias construídas pelo sujeito a respeito do mundo exterior. A grosso modo, faltou uma teoria da confirmação que fosse indubitável pelos padrões dos vienenses a servir de base para uma lógica científica. Uma estrutura desse tipo nunca chegou a ser formulada em definitivo. Além disso ao invés de se concentrar em uma análise das proposições científicas, isoladamente, passou-se a acreditar que a falta de um estatuto preciso para o significado das expressões era devido ao desprezo de uma interpretação mais ampla, holista, que levasse em conta o contexto da frase em um encadeamento de outras proposições, em um parágrafo, por exemplo. Desse modo, após a morte de Schlick houve uma dispersão do grupo por diversas instituições europeias. E mesmo o idealismo metafísico que dera origem as posições críticas extremadas do Círculo de Viena já tinha perdido sua força nos principais centros. Mesmo Wittgenstein, na segunda fase de sua obra adotou posições menos radicais em relação à lógica da linguagem científica, em favor de uma postura mais próxima do pragmatismo estadunidense.

Notas

1. Título irônico que lhe foi atribuído por Neurath.
2. Veja FREGE. G. Os Fundamentos da Aritmética, introdução, p. 202.
3. POPPER, K. Sociedade Aberta, Universo Aberto, p. 41.

Referências Bibliográficas

AYER, A. J. As Questões Centrais da Filosofia; trad. Alberto Oliva e Luis A. Cerqueira. – Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia; trad. Desidério Murcho et al.. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
CARNAP, R. An Introduction to the Philosophy of Science. – Nova York: Dover, 1995.
FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmética; trad. Luiz H. dos Santos. – São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)
POPPER, K. Sociedade Aberta, Universo Aberto; trad. Mª Helena R. de Carvalho. – Lisboa: Dom Quixote, 1983.
WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-Filosófico; trad. M. S. Lourenço. – Lisboa: Caloute Gulbenkian, 1987.

O Mais Violento dos Séculos

A história do século XX, tal como a de toda modernidade – do século XVI em diante -, pode ser contada através de suas sucessivas guerras. Esses conflitos representam o somatório final dos debates de ideias que foram levadas às suas últimas consequências, desde que foram lançadas pelo Renascimento. Rivalidades entre casas dinásticas transnacionais, colonialismo, nacionalismo, socialismo, vontade de poder, corridas tecnológicas (armamentista e espacial), expansão do mercado e a luta pelo direito são os ingredientes filosóficos que radicalizaram os gostos extremados no chamado período contemporâneo.
O primeiro ano dos novecentos começa com uma reviravolta na Guerra dos Boeres (1899-1902), entre Inglaterra e suas colônias na África do Sul, que depois de assinado um cessar fogo, entra em uma fase de guerrilha que dura por mais 12 meses. Em 1903, os Estados Unidos apoiam a independência da província colombiana do Panamá, com o envio de uma frota que garantiu a construção do canal por empresas estadunidenses. Em 1904, o domínio russo sobre a Manchúria, nordeste da China, e o japonês sobre a Coreia, no extremo oriente, levam a deflagração da Guerra Russo-Japonesa (1904-1905). A vitória do Japão, depois de uma manobra naval surpreendente, alçou este país ao cenário das grandes potências bélicas do início do século. A derrota para o Japão foi um dos motivos principais a provocar a primeira Revolução Russa, em 1905, que foi sufocada pelo czar Nicolau II (1868-1918). Em 1906, ocorre em Cuba uma revolta esmagada pelas tropas estadunidenses que ainda se mantinham na ilha, mesmo depois de quatro anos da proclamação da independência daquele país. 1907 é o ano da revolta de camponeses na Romênia, incentivada por comunistas e anarquistas russos. Na Turquia, ocorre em 1908, a Revolução dos Jovens Turcos que impuseram eleições livres e um parlamento, mas não contiveram o desfecho do Império Otomano, um dos mais longos da história – fundado por Otman I (1258-1326) em 1300 e reduzido às fronteiras turcas em 1923. Aproveitando-se da fragilidade otomana, Áustria-Hungria anexa, em 1908, a região da Bósnia e Herzegóvina. Áustria-Hungria já estava envolvida nessa época com uma estranha Guerra dos Porcos (1906-1911) contra a Sérvia, o que provocou atritos diplomáticos com a Rússia. De 1910 a 1920, explode no México a Revolução que derruba a ditadura de Porfirio Díaz (1830-1915) e implanta pela primeira vez os ideais socialistas no solo americano através de Emiliano Zapata (1879-1919), líder dos peões camponeses e indígenas do sul. Na Ásia, a Revolução Chinesa começa em 1911 com o nacionalista Sun Yat Sen (1866-1825) e termina em 1949, com o comunista Mao Tse Tung (1893-1976). Na Europa, a Guerra dos Balcãs (1912 e 1913) reuniu Montenegro, Bulgária, Sérvia e Grécia contra a Turquia, no primeiro momento, mas depois houve uma disputa entre antigos aliados – Bulgária, Grécia, Sérvia – e Áustria pela posse da Macedônia.
Esses conflitos regionais, sobretudo os que envolveram países da Europa, serviram de preparação para a I Grande Guerra (1914-1918) a obrigar a participação de todas as potências mundiais em um mesmo combate. Ato contínuo, por causa de suas perdas aí, a Rússia viu detonar sua segunda Revolução em 1917, que se seguiu a uma Guerra Civil que durou até 1929, quando Stalin (Ossip Vissarionovitch Dzhugashvili, 1879-1953) tomou o poder e implantou o comunismo de uma só nação. Em consequência da Grande Depressão econômica de 1929, o liberalismo do laissez-faire (deixe fazer) sofre baixas sucessivas em vários países que lutavam contra o colonialismo e nas nações que fazem revoluções pela via militar, como o Brasil de 1930. Em 1922, os “camisas pretas” de Benito Mussolini (1883-1945) já haviam dado o golpe fascista em Roma. Com o rearmamento da Alemanha, 1933, foi a vez de Adolf Hitler (1889-1945) tomar o poder junto dos “camisas castanhas”. Entre 1936 e 1939, a Guerra Civil Espanhola pôs frente a frente anarquistas, socialistas, liberais e fascistas em uma prévia da II Guerra Mundial, que começa em 1939 e termina em 1945. Os soviéticos são os primeiros a chegar em Berlim (maio de 1945), mas a guerra no Pacífico só teve fim depois da detonação de duas bombas atômicas estadunidenses sobre Hiroshima (6 de agosto de 1945) e Nagasaki (9 de agosto de 1945). O fim da II Guerra Mundial dividiu o globo terrestre em dois grande blocos políticos que sustentaram uma Guerra Fria até 1989. Nesse ínterim, diversas outras guerras regionais esquentaram as relações entre a União Soviética e os Estados Unidos, como a Guerra da Indochina (1946-1954), a Guerra da Coreia (1950-1953), a Revolução Cubana de 59, a Guerra do Vietnã (1961-1975) e as intermitentes guerras árabe-israelenses (1948-1973), além da derradeira Guerra do Afeganistão (1979-1989).
O historiador britânico Eric John Ernest Hobsbawm (1917-2012) relacionou em sua obra Era dos Extremos (1994) vários depoimentos de pessoas que viveram esses períodos de mudanças abruptas, sobre as circunstâncias históricas testemunhadas por eles. Dessas declarações destacam-se três. A do filósofo político inglês Isaiah Berlim (1909-1997):

vivi a maior parte do século XX, devo acrescentar que não sofri provações pessoais. Lembro-o apenas como o século mais terrível da história;

do escritor britânico William Gerald Golding (1911-1993), prêmio Nobel de literatura de 1983:

não posso deixar de pensar que este foi o século mais violento da história humana;

e do violinista estadunidense-suíço-britânico Yehudi Menuhin (1916-1999):

se eu tivesse de resumir o século XX, diria que despertou as maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu todas as ilusões e ideais (apud, HOBSBAWM, E. Era dos Extremos, pp. 11 e 12).

A sucessão ininterrupta de conflitos e o número de baixas não deixam dúvidas. Cerca de 120 milhões de pessoas – civis e militares – perderam suas vidas de forma violenta. A II Guerra Mundial ceifou a maior parte dessas vítimas, 50 milhões de mortos. Mas foi a I Grande Guerra que iniciou a era dos massacres, eliminando aproximadamente 10 milhões de soldados. A Revolução de 1917 e a Guerra Civil Russa mataram mais seis milhões de pessoas. Na Coreia, 5 milhões e 300 mil morreram em combates diretos, de fome, epidemias ou bombardeios. As transformações das estratégias de guerras e o extermínio em massa de grandes populações estiveram estritamente ligados às mudanças de valores filosóficos decorrentes das ideias românticas do século XIX. Por outro lado, o desenvolvimento científico permitiu o incremento dos bens de consumo que permitiram a sustentação de uma população cada vez maior. A tecnologia de armamento e comunicações cresceram ao lado das pesquisas que ampliaram o conhecimento biológico e de produção de remédios que salvaram uma quantidade ainda maior de pessoas.
Ideologicamente, a primeira metade do século XX foi uma prestação de contas ao nacionalismo, ao socialismo e ao liberalismo econômico defendidos pelas gerações anteriores. Pouco a pouco, a fé na razão e no progresso da história foram sendo desmistificados. Chegou-se mesmo a falar de uma filosofia pós-moderna, na segunda metade da era contemporânea. Aqueles que defendiam uma postura racional frente aos céticos e relativistas tiveram de admitir um falibilismo em uma revisão das ideias iluministas, sob novas exigências de justificação, nem dogmáticas, nem metafísicas.

Principais Tendências Contemporâneas

Entre as correntes de pensamento mais importantes desse período, o Pragmatismo antecipou-se à crítica pós-moderna na concepção de uma razão que pode falhar na sustentação da verdade. Essa vertente filosófica colocou os pensadores estadunidenses na vanguarda do debate contemporâneo que fizeram dos Estados Unidos a principal área de concentração dos centros de excelência em pesquisa acadêmica, no final do século.
Remanescentes de um dogmatismo metafísico concentraram-se na filosofia analítica da linguagem que sucedeu ao Círculo de Viena, na mesma época em que duas vertentes existencialistas disputavam a melhor interpretação da essência humana: seja a partir de uma fenomenologia fundada por Edmund Gustav Albert Husserl (1859-1938), que teve em Martin Heidegger (1889-1976) seu principal expoente; seja do mal estar detectado por Jean-Paul Sartre (1905-1980), em sua obra sobre a condição humana.
Do ponto de vista político, a Escola de Frankfurt procurou fazer uma crítica da sociedade desde uma perspectiva marxista, sem no entanto, comprometer-se com uma utópica realização de um projeto revolucionário. A partir dos anos 1970, uma nova concepção teórica da justiça propôs uma interpretação da sociedade ocidental livre de um sentido metafísico nos textos de John Rawls (1921-2002). Porém, coube a Hannah Arendt (1906-1975) fazer um exame preciso do conceito de violência, característico de sua época.
A violência, que marcou a passagem do século XX, é o instrumento que os seres humanos possuem para realizarem um fim e que se justifica e orienta por este. Sua aplicação eficaz depende do poder que a sustenta, isto é, da obediência aos comandos da autoridade que representa a unidade de um grupo político constituído. Assim, o uso da violência sem uma sustentação legítima reduz o seu alcance apenas aos efeitos sobre uma situação momentânea que para serem prolongados precisam de um rápido reestabelecimento do apoio indispensável de um grupo social.

(…) O poder e a violência se opõem: onde um domina de forma absoluta, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em perigo, mas se se deixar que percorra o seu curso natural, o resultado será o desaparecimento do poder. Tal coisa significa que não é correto pensar na não-violência como oposto da violência; falar de poder não-violento é realmente uma redundância. A violência pode destruir o poder, mas é incapaz de criá-lo (ARENDT, H. Da Violência, cap. II, pp. 30 e 31).

A disseminação da violência na era contemporânea resultou não apenas da produção de instrumentos de morte em massa, mas sobretudo da crescente perda da autoridade dos governos constituídos. Com a perda do poder legítimo, os Estados perderam também o monopólio do uso da força por meios violentos. Por conseguinte, o avanço tecnológico dos armamentos foi apenas um item secundário na “democratização” da violência, permitindo o acesso de indivíduos às armas de fogo mais destrutivas. Isso tudo aconteceu por diversos fatores, entre os quais o fato da autoridade constituída não ter mais o consentimento daqueles que estavam à margem da lei – no banditismo, na guerrilha política, ou na crescente multidão de excluídos – e por não poder ampliar o acesso aos bens gerados e mal distribuídos pela sociedade.
Nesse sentido, a vitória do Vietnã sobre os Estados Unidos simboliza a superioridade da organização de quem tem poucos recursos diante da mais avançada máquina de guerra atual.

Bombardeios químicos destruíram plantações e florestas no Vietnam.

(…) Mesmo a dominação mais despótica de que temos conhecimento, o domínio do senhor sobre os escravos, que sempre o excederam em número, não repousa em instrumentos de coerção superiores como tais, mas em uma organização do poder mais aperfeiçoada – isto é, na solidariedade organizada dos senhores. Homens isolados sem outros que os apoiem nunca têm poder suficiente para fazer uso da violência de maneira bem-sucedida. Assim, nas questões internas, a violência funciona como último recurso do poder contra os criminosos ou rebeldes – isto é, contra indivíduos isolados que, pode-se dizer, recusam-se a ser dominados pelo consenso da maioria. E quanto aos combates propriamente ditos, vimos no Vietnã como pode uma imensa superioridade no que diz respeito aos instrumentos da violência tornar-se impotente se confrontada por um inimigo mal-equipado, mas bem-organizado e muito mais poderoso (…) (ARENDT, H. Op. cit., cap. II, p. 27).

O mais violento dos séculos [1] foi portanto o século de uma crise de poder das instituições públicas modernas que foram gradativamente se desorganizando com o desenvolvimento de organizações privadas que afrontavam o poder do Estado – cartéis, multinacionais e crime internacional organizado. Nesse e em vários outros pontos defendidos pela tradição da modernidade, foi o século XX o tempo da confrontação das ideias e de uma recusa dos dogmas desprovidos de uma sustentação real nos interesses vitais de cada um.

Nota

1. Por mais que o linguista estadunidense Steven Pinker tenha razão ao considerar o presente relativamente pacífico, comparado aos períodos passados – graças ao comércio internacional e ao estabelecimento de direitos universais -, em termos absolutos, foi no século XX que surgiram os maiores genocidas e os instrumentos mortais capazes de exterminar a vida humana no planeta. Uma vida não pode ser relativizada. Toda morte é absoluta. Veja PINKER, S. “A History of Violence: Edge Master Class 2011”. Disponível na Internet via https://www.edge.org. Arquivo consultado em 2017.

Referências Bibliográficas

ARENDT, H. Da Violência; trad. Mª Cláudia Dr. Trindade. – Brasília: UnB, 1985.
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia; trad. Desidério Murcho et al.. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos; trad. Marcos Santarrita. – São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
PINKER, S. “A History of Violence: Edge Master Class 2011”. Disponível na Internet via https://www.edge.org. Arquivo consultado em 2017.