A história do século XX, tal como a de toda modernidade – do século XVI em diante -, pode ser contada através de suas sucessivas guerras. Esses conflitos representam o somatório final dos debates de ideias que foram levadas às suas últimas consequências, desde que foram lançadas pelo Renascimento. Rivalidades entre casas dinásticas transnacionais, colonialismo, nacionalismo, socialismo, vontade de poder, corridas tecnológicas (armamentista e espacial), expansão do mercado e a luta pelo direito são os ingredientes filosóficos que radicalizaram os gostos extremados no chamado período contemporâneo.
O primeiro ano dos novecentos começa com uma reviravolta na Guerra dos Boeres (1899-1902), entre Inglaterra e suas colônias na África do Sul, que depois de assinado um cessar fogo, entra em uma fase de guerrilha que dura por mais 12 meses. Em 1903, os Estados Unidos apoiam a independência da província colombiana do Panamá, com o envio de uma frota que garantiu a construção do canal por empresas estadunidenses. Em 1904, o domínio russo sobre a Manchúria, nordeste da China, e o japonês sobre a Coreia, no extremo oriente, levam a deflagração da Guerra Russo-Japonesa (1904-1905). A vitória do Japão, depois de uma manobra naval surpreendente, alçou este país ao cenário das grandes potências bélicas do início do século. A derrota para o Japão foi um dos motivos principais a provocar a primeira Revolução Russa, em 1905, que foi sufocada pelo czar Nicolau II (1868-1918). Em 1906, ocorre em Cuba uma revolta esmagada pelas tropas estadunidenses que ainda se mantinham na ilha, mesmo depois de quatro anos da proclamação da independência daquele país. 1907 é o ano da revolta de camponeses na Romênia, incentivada por comunistas e anarquistas russos. Na Turquia, ocorre em 1908, a Revolução dos Jovens Turcos que impuseram eleições livres e um parlamento, mas não contiveram o desfecho do Império Otomano, um dos mais longos da história – fundado por Otman I (1258-1326) em 1300 e reduzido às fronteiras turcas em 1923. Aproveitando-se da fragilidade otomana, Áustria-Hungria anexa, em 1908, a região da Bósnia e Herzegóvina. Áustria-Hungria já estava envolvida nessa época com uma estranha Guerra dos Porcos (1906-1911) contra a Sérvia, o que provocou atritos diplomáticos com a Rússia. De 1910 a 1920, explode no México a Revolução que derruba a ditadura de Porfirio Díaz (1830-1915) e implanta pela primeira vez os ideais socialistas no solo americano através de Emiliano Zapata (1879-1919), líder dos peões camponeses e indígenas do sul. Na Ásia, a Revolução Chinesa começa em 1911 com o nacionalista Sun Yat Sen (1866-1825) e termina em 1949, com o comunista Mao Tse Tung (1893-1976). Na Europa, a Guerra dos Balcãs (1912 e 1913) reuniu Montenegro, Bulgária, Sérvia e Grécia contra a Turquia, no primeiro momento, mas depois houve uma disputa entre antigos aliados – Bulgária, Grécia, Sérvia – e Áustria pela posse da Macedônia.
Esses conflitos regionais, sobretudo os que envolveram países da Europa, serviram de preparação para a I Grande Guerra (1914-1918) a obrigar a participação de todas as potências mundiais em um mesmo combate. Ato contínuo, por causa de suas perdas aí, a Rússia viu detonar sua segunda Revolução em 1917, que se seguiu a uma Guerra Civil que durou até 1929, quando Stalin (Ossip Vissarionovitch Dzhugashvili, 1879-1953) tomou o poder e implantou o comunismo de uma só nação. Em consequência da Grande Depressão econômica de 1929, o liberalismo do laissez-faire (deixe fazer) sofre baixas sucessivas em vários países que lutavam contra o colonialismo e nas nações que fazem revoluções pela via militar, como o Brasil de 1930. Em 1922, os “camisas pretas” de Benito Mussolini (1883-1945) já haviam dado o golpe fascista em Roma. Com o rearmamento da Alemanha, 1933, foi a vez de Adolf Hitler (1889-1945) tomar o poder junto dos “camisas castanhas”. Entre 1936 e 1939, a Guerra Civil Espanhola pôs frente a frente anarquistas, socialistas, liberais e fascistas em uma prévia da II Guerra Mundial, que começa em 1939 e termina em 1945. Os soviéticos são os primeiros a chegar em Berlim (maio de 1945), mas a guerra no Pacífico só teve fim depois da detonação de duas bombas atômicas estadunidenses sobre Hiroshima (6 de agosto de 1945) e Nagasaki (9 de agosto de 1945). O fim da II Guerra Mundial dividiu o globo terrestre em dois grande blocos políticos que sustentaram uma Guerra Fria até 1989. Nesse ínterim, diversas outras guerras regionais esquentaram as relações entre a União Soviética e os Estados Unidos, como a Guerra da Indochina (1946-1954), a Guerra da Coreia (1950-1953), a Revolução Cubana de 59, a Guerra do Vietnã (1961-1975) e as intermitentes guerras árabe-israelenses (1948-1973), além da derradeira Guerra do Afeganistão (1979-1989).
O historiador britânico Eric John Ernest Hobsbawm (1917-2012) relacionou em sua obra Era dos Extremos (1994) vários depoimentos de pessoas que viveram esses períodos de mudanças abruptas, sobre as circunstâncias históricas testemunhadas por eles. Dessas declarações destacam-se três. A do filósofo político inglês Isaiah Berlim (1909-1997):
vivi a maior parte do século XX, devo acrescentar que não sofri provações pessoais. Lembro-o apenas como o século mais terrível da história;
do escritor britânico William Gerald Golding (1911-1993), prêmio Nobel de literatura de 1983:
não posso deixar de pensar que este foi o século mais violento da história humana;
e do violinista estadunidense-suíço-britânico Yehudi Menuhin (1916-1999):
se eu tivesse de resumir o século XX, diria que despertou as maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu todas as ilusões e ideais (apud, HOBSBAWM, E. Era dos Extremos, pp. 11 e 12).
A sucessão ininterrupta de conflitos e o número de baixas não deixam dúvidas. Cerca de 120 milhões de pessoas – civis e militares – perderam suas vidas de forma violenta. A II Guerra Mundial ceifou a maior parte dessas vítimas, 50 milhões de mortos. Mas foi a I Grande Guerra que iniciou a era dos massacres, eliminando aproximadamente 10 milhões de soldados. A Revolução de 1917 e a Guerra Civil Russa mataram mais seis milhões de pessoas. Na Coreia, 5 milhões e 300 mil morreram em combates diretos, de fome, epidemias ou bombardeios. As transformações das estratégias de guerras e o extermínio em massa de grandes populações estiveram estritamente ligados às mudanças de valores filosóficos decorrentes das ideias românticas do século XIX. Por outro lado, o desenvolvimento científico permitiu o incremento dos bens de consumo que permitiram a sustentação de uma população cada vez maior. A tecnologia de armamento e comunicações cresceram ao lado das pesquisas que ampliaram o conhecimento biológico e de produção de remédios que salvaram uma quantidade ainda maior de pessoas.
Ideologicamente, a primeira metade do século XX foi uma prestação de contas ao nacionalismo, ao socialismo e ao liberalismo econômico defendidos pelas gerações anteriores. Pouco a pouco, a fé na razão e no progresso da história foram sendo desmistificados. Chegou-se mesmo a falar de uma filosofia pós-moderna, na segunda metade da era contemporânea. Aqueles que defendiam uma postura racional frente aos céticos e relativistas tiveram de admitir um falibilismo em uma revisão das ideias iluministas, sob novas exigências de justificação, nem dogmáticas, nem metafísicas.
Principais Tendências Contemporâneas
Entre as correntes de pensamento mais importantes desse período, o Pragmatismo antecipou-se à crítica pós-moderna na concepção de uma razão que pode falhar na sustentação da verdade. Essa vertente filosófica colocou os pensadores estadunidenses na vanguarda do debate contemporâneo que fizeram dos Estados Unidos a principal área de concentração dos centros de excelência em pesquisa acadêmica, no final do século.
Remanescentes de um dogmatismo metafísico concentraram-se na filosofia analítica da linguagem que sucedeu ao Círculo de Viena, na mesma época em que duas vertentes existencialistas disputavam a melhor interpretação da essência humana: seja a partir de uma fenomenologia fundada por Edmund Gustav Albert Husserl (1859-1938), que teve em Martin Heidegger (1889-1976) seu principal expoente; seja do mal estar detectado por Jean-Paul Sartre (1905-1980), em sua obra sobre a condição humana.
Do ponto de vista político, a Escola de Frankfurt procurou fazer uma crítica da sociedade desde uma perspectiva marxista, sem no entanto, comprometer-se com uma utópica realização de um projeto revolucionário. A partir dos anos 1970, uma nova concepção teórica da justiça propôs uma interpretação da sociedade ocidental livre de um sentido metafísico nos textos de John Rawls (1921-2002). Porém, coube a Hannah Arendt (1906-1975) fazer um exame preciso do conceito de violência, característico de sua época.
A violência, que marcou a passagem do século XX, é o instrumento que os seres humanos possuem para realizarem um fim e que se justifica e orienta por este. Sua aplicação eficaz depende do poder que a sustenta, isto é, da obediência aos comandos da autoridade que representa a unidade de um grupo político constituído. Assim, o uso da violência sem uma sustentação legítima reduz o seu alcance apenas aos efeitos sobre uma situação momentânea que para serem prolongados precisam de um rápido reestabelecimento do apoio indispensável de um grupo social.
(…) O poder e a violência se opõem: onde um domina de forma absoluta, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em perigo, mas se se deixar que percorra o seu curso natural, o resultado será o desaparecimento do poder. Tal coisa significa que não é correto pensar na não-violência como oposto da violência; falar de poder não-violento é realmente uma redundância. A violência pode destruir o poder, mas é incapaz de criá-lo (ARENDT, H. Da Violência, cap. II, pp. 30 e 31).
A disseminação da violência na era contemporânea resultou não apenas da produção de instrumentos de morte em massa, mas sobretudo da crescente perda da autoridade dos governos constituídos. Com a perda do poder legítimo, os Estados perderam também o monopólio do uso da força por meios violentos. Por conseguinte, o avanço tecnológico dos armamentos foi apenas um item secundário na “democratização” da violência, permitindo o acesso de indivíduos às armas de fogo mais destrutivas. Isso tudo aconteceu por diversos fatores, entre os quais o fato da autoridade constituída não ter mais o consentimento daqueles que estavam à margem da lei – no banditismo, na guerrilha política, ou na crescente multidão de excluídos – e por não poder ampliar o acesso aos bens gerados e mal distribuídos pela sociedade.
Nesse sentido, a vitória do Vietnã sobre os Estados Unidos simboliza a superioridade da organização de quem tem poucos recursos diante da mais avançada máquina de guerra atual.
Bombardeios químicos destruíram plantações e florestas no Vietnam.
(…) Mesmo a dominação mais despótica de que temos conhecimento, o domínio do senhor sobre os escravos, que sempre o excederam em número, não repousa em instrumentos de coerção superiores como tais, mas em uma organização do poder mais aperfeiçoada – isto é, na solidariedade organizada dos senhores. Homens isolados sem outros que os apoiem nunca têm poder suficiente para fazer uso da violência de maneira bem-sucedida. Assim, nas questões internas, a violência funciona como último recurso do poder contra os criminosos ou rebeldes – isto é, contra indivíduos isolados que, pode-se dizer, recusam-se a ser dominados pelo consenso da maioria. E quanto aos combates propriamente ditos, vimos no Vietnã como pode uma imensa superioridade no que diz respeito aos instrumentos da violência tornar-se impotente se confrontada por um inimigo mal-equipado, mas bem-organizado e muito mais poderoso (…) (ARENDT, H. Op. cit., cap. II, p. 27).
O mais violento dos séculos [
1] foi portanto o século de uma crise de poder das instituições públicas modernas que foram gradativamente se desorganizando com o desenvolvimento de organizações privadas que afrontavam o poder do Estado – cartéis, multinacionais e crime internacional organizado. Nesse e em vários outros pontos defendidos pela tradição da modernidade, foi o século XX o tempo da confrontação das ideias e de uma recusa dos dogmas desprovidos de uma sustentação real nos interesses vitais de cada um.
Nota
1. Por mais que o linguista estadunidense Steven Pinker tenha razão ao considerar o presente relativamente pacífico, comparado aos períodos passados – graças ao comércio internacional e ao estabelecimento de direitos universais -, em termos absolutos, foi no século XX que surgiram os maiores genocidas e os instrumentos mortais capazes de exterminar a vida humana no planeta. Uma vida não pode ser relativizada. Toda morte é absoluta. Veja PINKER, S.
“A History of Violence: Edge Master Class 2011”. Disponível na Internet via
https://www.edge.org. Arquivo consultado em 2017.
Referências Bibliográficas
ARENDT, H. Da Violência; trad. Mª Cláudia Dr. Trindade. – Brasília: UnB, 1985.
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia; trad. Desidério Murcho et al.. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos; trad. Marcos Santarrita. – São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
PINKER, S.
“A History of Violence: Edge Master Class 2011”. Disponível na Internet via
https://www.edge.org. Arquivo consultado em 2017.