O conceito de
imagens mentais (ou representações) está longe de ter uma simples e pacífica definição filosófica. Ao longo da história da filosofia, vários autores debateram o assunto sem que se chegasse a um acordo. E essa é uma boa oportunidade de se passar em revista os principais tópicos sobre o assunto.
Quem primeiro pôs a visão em lugar de destaque foi Platão (cc.427-347 a.C.). Seguindo a tradição pitagórica, na qual a verdade só seria revelada pela contemplação de um mundo superior, Platão elaborou a famosa teoria das formas. Nessa teoria, o conceito chave de ideia era concebido a partir de uma capacidade de identificar a unidade existente em todas as coisas, apesar da aparente multiplicidade percebida. Todo mundo teria ideias das coisas, embora uns tivessem uma compreensão mais completa do que outros, devido a atenção dada à convivência com elas, pelas almas, em um mundo ulterior. Ideia seria então
a reminiscência do que nossa alma viu quando andava na companhia da divindade e, desdenhando tudo o que atribuímos realidade na presente existência, alçava a vista para o verdadeiro ser (PLATÃO, Fedro, 249 c).
Isso quer dizer que haveria um mundo das ideias, do qual as almas teriam vindo com a lembrança do que teriam visto por lá. Portanto, a nitidez da memória visual e as imagens guardadas seriam fundamentais para compreensão da verdade no mundo terreno. Os mais sábios seriam aqueles que viram as ideias melhor e o tirano seria o que nada vira com atenção. As teses platônicas da existência de ideias inatas foi radicalizada, já na era moderna, pelo bispo irlandês George Berkeley (1685-1753), que escreveu um Ensaio sobre uma Nova Teoria da Visão (1709) e, no Tratado sobre o Conhecimento Humano (1710), reafirmava “que os objetos da vista não existem fora do espírito, nem são imagens das coisas externas”. Em uma passagem pouco antes dessa, havia dito com todas as letras que “um cego de nascença, adquirida a vista, não poderia a princípio pensar se as coisas que via estariam fora de seu espírito ou colocadas a alguma distância” (BERKELEY, G. Tratado sobre o Conhecimento Humano, §§ 44 e 43, respectivamente).
Tais afirmações chocavam-se diretamente com o empirismo defendido por John Locke (1632-1704). Locke, que era médico inglês, dizia categoricamente que não haveria ideias inatas e se faltasse algum dos cinco sentidos
as qualidades que constituiriam os objetos do quinto sentido ficariam tão distantes da nossa observação, imaginação e concepção, como deve estar no momento algo pertencente ao sexto, sétimo, ou oitavo sentido (LOCKE, J. Ensaio sobre o Entendimento Humano, liv. II, cap. II, § 32).
Ou seja, um cego de nascença, não saberia nada a respeito da visão ou imagens de objetos externos, da mesma forma que os humanos que veem normalmente não sabem nada acerca da visão infravermelha e ultravioleta.
Uma tentativa pioneira de resolver essa polêmica foi feita pelo enciclopedista francês Denis Diderot (1713-1784). Diderot, a partir de uma entrevista que fizera a um cego de nascença, operado de catarata, concluiu que
não podendo colorir, nem por conseguinte figurar como nós o entendemos, só tem memória das sensações apreendidas pelo tato, que ele refere a diferentes pontos, lugares ou distâncias, e com os quais compõem figuras (DIDEROT, D. Carta sobre os Cegos, p.9).
A filosofia contemporânea, até metade do século XX, muito por influência da corrente analítica da linguagem, principalmente o austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), negava que houvesse algum conhecimento inato que servisse de base para formulação de argumentos e juízos verdadeiros. Nenhum objeto imaginado ou linguagem privada – aquela que o próprio sujeito teria acesso privilegiado – seria possível sem o apoio de uma gramática, cujas regras suportam uma linguagem comum adquirida de fora para dentro. Assim,
o conceito de “imagem interior” é enganador, pois o modelo para esse conceito é a “imagem exterior“; e no entanto, os empregos dessas palavras conceituais não se assemelham mais uns aos outros do que os de “algarismo” e “número” (WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas, II part. seç. XI, p. 191).
Ou seja, a compreensão de uma imagem dependeria de um uso adequado de conceitos estabelecidos por uma linguagem partilhada por todos os falantes. Assim, casos descritos pelo neurologista inglês Oliver Sacks, em Um Antropólogo em Marte (1995), indicariam que “cegos de nascença” precisariam aprender a ver o mundo, depois de recobrada a visão, como quem aprende uma nova linguagem, com todos os problemas de um adulto que tem de aprender um idioma estrangeiro (Veja SACKS, O. “Ver e Não Ver”, in Um Antropólogo em Marte, pp. 134 e ss).
Neurologistas e filósofos da mente, ou cientistas cognitivos de um modo geral, têm renovado o interesse pela visão e outros sentidos, seja para entender como o cérebro capta e forma imagens, bem como uma máquina ou computador poderia enxergar como humanos. Pesquisas recentes tem sido realizadas ou comentadas por nomes como António R. Damásio, Paul M. Churchland, Steven Pinker, entre outros. Vale a pena ler o capítulo 5 de O Erro de Descartes, de António Damásio; o capítulo 6 de Matéria e Consciência, Paul Churchland; e o abrangente capítulo quatro de Como a Mente Funciona, de Pinker.
Além desses autores um nome importante que vem se destacando é o do neurocientista indiano Vilayanur S. Ramachandran, com pesquisas sobre o conceito de qualia – experiências sensoriais internas -, sinestesia e fantasmas sensoriais. No seu livro Fantasmas no Cérebro (1998), Ramachandran descreve, no capítulo quatro, casos de lesões cerebrais em áreas específicas do cérebro em que pessoas deixam de enxergar as cores, linhas ou formas de figuras quaisquer. Lá, o autor descarta a ideia de imagens no cérebro e passa a trabalhar com a definição de descrições simbólicas de objetos e acontecimentos externos.
(…) O cérebro humano contém múltiplas áreas para processar imagens, cada uma das quais é composta de uma emaranhada rede de neurônios especializada em extrair da imagem certos tipos de informação. Qualquer objeto evoca uma forma de atividade – única para cada objeto – entre um subconjunto destas áreas. (…) Os padrões de atividade simbolizam ou representam objetos visuais da mesma forma que os rabiscos de tinta no papel simbolizam ou representam seu quarto de dormir [ou qualquer cena descrita verbalmente]. Como cientistas tentando entender os processo visuais, nosso objetivo é decifrar o código usado pelo cérebro para criar essas descrições simbólicas, da mesma forma que um criptógrafo tenta decifrar uma estranha mensagem escrita em código (RAMACHANDRAN, V.S. Fantasmas no Cérebro, cap. 4, p. 101).
Imagens do Corpo
Antropocentrismo, o homem como a medida de todas as coisas. Fonte: Marco VITRÚVIO Pollio, Da Arquitetura, liv III.
Em todos os aspectos, não apenas os relacionados à visão, a imagem que se tem do corpo humano está vinculada a uma concepção filosófica do homem. Desde o início da história da medicina ocidental, a especialização e o tratamento total do corpo e da alma estiveram em confronto. De um lado os pitagóricos que, como Platão (429-347 a.C.) do
Cármides, consideravam a cura de uma enfermidade possível apenas pela cura de um mal que afligia conjuntamente o corpo e alma e só com o trato desta ela seria atingida. Doutro os hipocráticos, que primeiro medicavam a parte doente para depois examinar todo o corpo. Externamente, os antigos helenos levaram o estudo das proporções anatômicas a sua compreensão máxima. O homem tornou-se, literalmente, a medida de todas as coisas. Os romanos com o arquiteto Vitruvius (70 a.C.- ?) e o médico greco-romano Galeno (c.130-210) levaram a arquitetura e a medicina grega adiante.
Com a Idade Média, no entanto, a concepção religiosa de que o corpo era uma prisão e castigo para a alma ganhou força, enquanto o humanismo cedia lugar ao fanatismo cristão. Qualquer forma de prática científica estava ameaçada de condenação por heresia e o médico italiano Pedro d’Abano (1250-1316), que procurou conciliar as escolas grega e árabe, não escapou de morrer no calabouço. O Renascimento, através das obras de outro italiano Mondino Luzzi (1275-1326), no início, e do anatomista flamengo Andreas Versalius (1514-1564), mais tarde, trouxe de volta o interesse pelo corpo humano. Especulações sobre o cérebro como sede da alma impuseram-se contra a tese aristotélica em favor do coração. De fundamental importância foi a interpretação do médico inglês William Harvey (1578-1657) acerca da circulação sanguínea. René Descartes (1596-1650) escreveu As Paixões d’Alma (1649) criticando as ideias de seus contemporâneos à luz de sua teoria dualista da relação corpo/mente. Em 1748, Julien de La Mettrie (1701-1751) difundiu a concepção materialista radical do “homem máquina”. Ainda hoje, esse é um tema caro para a fenomenologia, a epistemologia, filosofia da mente, ética etc. A história da medicina e da filosofia sempre andaram lado a lado e diversas enciclopédias podem ser editadas sobre o assunto.
Um exemplo de visão filosófica do corpo encontrar-se no principal livro de Michel Foucault (1926—1984) a tratar do conceito de corpo, Vigiar e Punir (1975), onde se aborda o tema a partir dos corpos dos condenados ao suplício e dos corpos dóceis submetidos à disciplina nas prisões modernas. Na entrevista Microfísica do Poder, deste mesmo autor, a questão surge na vinculação entre corpos e poder. Mas há também um capítulo de O Nascimento da Clínica que tem intuições interessantes de Foucault acerca da pesquisa médica com cadáveres, o domínio da ciência sobre o conhecimento da fisiologia humana. O corpo visto como campo de disputa entre poderes políticos e estéticos, no mais amplo sentido.
Referências Bibliográficas
BERKELEY, G. Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano. – São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os Pensadores).
CHURCHLAND, P. M. Matéria e Consciência. – São Paulo: Unesp, 2004.
DAMÁSIO, A. R. O Erro de Descartes. – São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
____. O Mistério da Consciência. – São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
DESCARTES, R. As Paixões da Alma. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
DIDEROT, D. Carta sobre os Cegos. – São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).
FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica. – Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1980.
____. Vigiar e Punir. – Vozes, 1977.
____. Microfísica do Poder. – Rio de Janeiro: Graal, 1979.
LOCKE, J. Ensaio acerca do Entendimento Humano. – São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).
MERLEAU-PONTY. M. Fenomenologia da Percepção. -São Paulo: Martins Fontes.
NAGEL, Th. Una Visión de Ningún Lugar. – México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1998.
PINKER, S. Como a Mente Funciona. – São Paulo: Cia.das Letras, 1998.
PLATÃO. Fedro. – Belém: UFPA, 1975.
____. Cármides. – Belém: Universidade Federal do Pará, 1975.
RAMACHANDRAN, V.S. Fantasmas no Cérebro. – Rio de Janeiro: Record, 2004.
SACKS, O. Um Antropólogo em Marte. – São Paulo: Cia. da Letras, 1995.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. – São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Os Pensadores).