Gravura de monumento dedicado a Rousseu por sua obra “Emílio” (1757)
O romantismo inerente ao texto de Emílio (1757) não tira o mérito, nem o pioneirismo de seu autor Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que nesta obra inaugura a pedagogia moderna. Antes de Emílio, as crianças eram vistas como pequenos adultos que deveriam ter a instrução que interessasse à instituição formadora. Dessa forma, os estudantes eram preparados para substituir, quando crescessem, os membros de suas classes sociais ou de um setor específico da sociedade em que viviam. Depois desse romance, que tem por conteúdo um importante ensaio pedagógico, chamou-se a atenção para as características naturais da criança que precisavam ser observadas e estimuladas no que tivessem dos melhores valores humanos.
A crítica de Rousseau recaía sobretudo nos refinamentos fúteis, na hipocrisia e pedantismo de sua sociedade corrompida pelo Antigo Regime. Valorizava, por outro lado, o livre pensamento, as conquistas das ciências e as obras de arte duradouras que não se deixavam levar por modismos de ocasião. Desse modo, Rousseau alcançou lugar de destaque entre os principais reformadores da educação infantil[
1].
Outros nomes, depois de Rousseau, mereceram o título de transformadores da pedagogia. Entre eles o soviético Lev Semyonovitch Vygotsky (1896-1934), nascido na bielo-rússia, e o suíço Jean Piaget (1896-1980), conterrâneo de Rousseau. Vygotsky elaborou suas teorias pedagógicas em paralelo ao trabalho de Piaget, independente das conclusões deste. Entretanto partilhou muitos pontos em comum com a
epistemologia genética lançada pelo pedagogo suíço. No início do século XX, quando o cenário da educação infantil estava dominado por uma interpretação cientificista dos processos psicológicos, tanto no plano dos fenômenos naturais internos à espécie – darwinismo social -, como na influência excessiva do meio externo imposta à criança por parte do behaviorismo[
2].
Vygotsky e Piaget divergiram desses radicalismos ao chamarem atenção para o papel fundamental que a interação do indivíduo com a sociedade exercia no seu desenvolvimento cognitivo, apesar de enfatizarem reciprocamente lados opostos de “uma mesma moeda”. Vygotsky considerava como sua principal divergência a questão crucial do discurso egocêntrico da criança em sua fase pré-escolar (dos 3 aos 7 anos). Para o bielo-russo, “o discurso egocêntrico da criança é um estágio na evolução do discurso vocal para o discurso interior”[
3] que permanecia com as mesmas estruturas mentais da criança na etapa em que é interiorizado[
4].
Na leitura que fazia de Piaget, Vygotsky lhe imputava a crença no desenvolvimento completo do primeiro discurso egocêntrico. Contudo se Piaget defendesse que esse tipo de discurso precederia inteiramente ao socializado, então o discurso interior também seria anterior à socialização, o que entraria em contradição com o pressuposto da teoria genética do próprio Piaget, cuja sequência iria do pensamento autista (interiorizado) para o socializado, através do discurso egocêntrico explícito. Na concepção de Vygotsky, ao contrário, o pensamento socializado e comunicativo da pré-escola seria anterior ao individual internalizado da escola[
5].
Daí a famosa tese de Vygotsky defender a formação social da mente. O desenvolvimento da linguagem seguiria, portanto, o mesmo curso das operações mentais que usam signos, cálculos e memorização, em quatro etapas. Na primeira, ocorreria o discurso pré-verbal natural correspondente do comportamento primitivo. Em seguida, a criança passaria a experimentar o mundo e seu próprio corpo, fazendo uso até de instrumentos no exercício prático de sua inteligência infantil. No terceiro estágio, ela já conseguiria distinguir sinais externos, fazendo contas nos dedos e conversando consigo mesma em voz alta. Por fim, as operações mentais, apresentadas explicitamente antes, são agora interiorizadas. Os cálculos são feitos mentalmente, bem como o discurso egocêntrico que passa a ser silencioso e interno. Pensamento e linguagem seriam, então, na visão vygotskiana dois domínios preexistentes que se sobrepõem para formar o pensamento verbal[
6].
Uma vez assumida essa ordem como válida, chega-se à conclusão de que o desenvolvimento intelectual da criança depende do seu desenvolvimento linguístico, o que para Vygotsky teria o mesmo significado de contexto social. Nessa perspectiva, o aprendizado deveria atuar na promoção do desenvolvimento mental, estimulando o avanço das fases de amadurecimento da criança. O educador, assim, exerceria o papel de estruturador das funções psicológicas ordenadas pela cultura humana[
7].
Epistemologia Genética
Apesar de acusar as influências de Rousseau na obra de Piaget, Vygotsky concordava com ambos na rejeição da ideia ultrapassada de que a criança seria um adulto em miniatura e sua mente uma redução do cérebro de uma pessoa madura. Até certo ponto, as teses de Vygotsky representavam a contrapartida socialista para a epistemologia genética piagetiana, sendo portanto um herdeiro da pedagogia de Rousseau.
De fato, Piaget começou a trabalhar suas concepções sobre educação quando ingressou, em 1921, no Instituto Jean-Jacques Rousseau, de Genebra. Lá, ele lançou seu conceito de “egocentrismo”, uma peça chave de sua
epistemologia genética. Com a associação do termo genética à epistemologia, Piaget queria enfatizar a necessidade de se compreender todas as fases de construção do conhecimento e não privilegiar uma forma reducionista de teoria do conhecimento centrada na biologia genética ou qualquer outra disciplina específica. Para entender o processo de conhecimento pelo qual a criança passa, Piaget tinha a consciência de que se tratava de uma tarefa multidisciplinar[
8].
Segundo Piaget, o conhecimento resulta da interação entre o corpo do sujeito que aprende e dos objetos em sua volta. No início da atividade representativa, que vai desde o nascimento até o segundo ano de vida, as reações sensório-motoras do bebê consistiriam em descentralizar suas percepções dos objetos em relação ao próprio corpo, colocando os objetos a mercê de sua movimentação no mundo e iniciando a função representacional. Do segundo ao quarto ano, permanece o primeiro período pré-operatório das funções lógicas e matemáticas. Aqui, tudo está para ser constituído, os conceitos e suas relações ainda estão completamente indefinidos. Do quinto ao sexto ano, algumas “funções constituintes”; permitem o surgimento de ligações objetivas[
9].
Através desses primeiros estágios, o egocentrismo passa do foco corporal para o plano superior da coordenação progressiva das funções conceituais em torno de objetos. Agora, as relações causais começam a fazer algum sentido quanto mais perto chegam do terceiro nível de desenvolvimento. Isto já anuncia as operações concretas que começam a ser executadas dos sete aos oito anos de idade. Dos 9 aos 10 anos, as operações racionais de transitividade, igualdade e as básicas da matemática – soma, subtração, divisão e multiplicação -; já são estabelecidas claramente. Doravante, as operações concretas são refinadas até se transformarem em operações formais depois dos 10 anos[
10].
Novas Abordagens Pedagógicas
As divergências de cunho pedagógico entre Piaget e Vygotsky não foram suficientes para diminuir a importância das descobertas acerca do desenvolvimento mental humano. O etologista Konrad Lorenz (1903-1989), nobel de medicina de 1973, com base em suas pesquisas sobre o comportamento animal, alertou sobre os riscos que a civilização consumista estava correndo e os possíveis desastres sociais que poderiam provocar, ao ignorar as primeiras fases desse desenvolvimento.
Lorenz criticou as necessidades criadas por um tipo de sociedade que não permitia mais aos pais prestarem os cuidados vitais de seus filhos na primeira infância. A política de crescimento econômico a todo custo acabaria por levar ao confinamento das crianças em creches, para que os pais pudessem continuar produzindo sem interrupção, a linha de montagem massacrante da indústria de um modo geral. A agravante acontecia do quinto ao oitavo mês de vida do bebê, época em que se começa a estabelecer elos emocionais e afetivos por uma determinada pessoa de seu relacionamento – que nas condições naturais é a mãe -, discriminando as demais. Se nesse período, a criança é posta em uma cheche, ela pode vir a perder essa capacidade de vínculo afetivo, devido à troca constante de suas atendentes, durante o horário em que fica afastada dos pais.
O desenvolvimento do afeto à mãe – lembrava Lorenz -; é fundamental para o posterior contato social maduro. Esse amadurecimento exigiria que fossem solicitadas imediatamente muitas outras estruturas do sistema nervoso humano, a fim de evitar sua atrofia ou plasticidade – ou seja, ocupação dos neurônios inativos por outras funções periféricas. As relações afetivas da criança estão ligadas ainda ao desenvolvimento da curiosidade e do comportamento exploratório do mundo, além de diminuir sua agressividade[
11].
Em estudo apresentado no livro
Freakonomics (2005), o economista Steven D. Levitt e o jornalista Stephen J. Dubner comprovaram as consequências previstas por Lorenz. Levitt e Dubner relatam que a falta de afetividade na infância é um fator correlato ao aumento da criminalidade[
12]. O que demonstra a importância de se ater ao fato de que o desenvolvimento natural da cognição humana depende de fatores inerentes ao indivíduo, bem como da sociedade em que se vai crescer.[
13]
Segundo Lorenz, “a melhor escola para o jovem aprender que o mundo tem sentido é o trato imediato com a própria natureza, a convivência com ela” [
14]. Certamente, o contato com a natureza, uma família estruturada e amorosa são importante como base de sustentação de um futuro amadurecimento equilibrado da criança. Mas uma boa escola exige que haja também a participação dos pais; a dedicação do corpo docente e o interesse da comunidade no seu bom desempenho. O psicólogo e pedagogo estadunidense Howard Gardner, autor de
O Verdadeiro, o Belo e o Bom (1999), adverte, no entanto, que uma educação eficiente pode assumir muitas formas diferentes. Ela dependeria de uma visão clara dos objetivos do funcionamento de suas classes; das especialidades em que vão formar seus alunos e da correção dos métodos, quando os objetivos não forem alcançados são fatores também essenciais[
15].
Gardner privilegia a formação de papéis que valorizem a competência notacional, capacidade de redação; conhecimento disciplinar; domínio da matéria e o “entendimento do verdadeiro, do belo e do bom”, desde a primeira infância Entretanto, ressalta que o êxito da prosperidade de uma escola depende da duração do apoio do sistema cultural em que estivesse inserida.
Notas
1Ver CHAUÍ, M. De S. “Rousseau: Vida e obra”, in Rousseau: Os pensadores, pp. xv e xvi.
2O behaviorismo é uma teoria do comportamento (behaviour, em inglês) desenvolvida a partir das pesquisas do fisiologista russo Ivan P. Pavlov (1849-1936) e que foi divulgada pelo psicólogo estadunidense John B. Watson (1878-1958), que rejeitava todo tipo de introspecção em favor do condicionamento e observação externa das suas causas e efeitos. Burrhus F. Skinner (1904-1990) foi o principal continuador dessa corrente pedagógica.
3Ver VYGOTSKY, L.S. Pensamento e Linguagem, cap.2, II, p.31.
4Ver VYGOTSKY. Op. Cit., cap. 2, II, p.32.
5Ver VYGOTSKY. Idem, p. 34.
6Ver VYGOTSKY. Ibidem, pp 67-73.
7Ver VYGOTSKY. “Implicações Educacionais”, in A Formação Social da Mente, p. 119.
8Ver PIAGET, J. A Epistemologia Genética, intr., p. 14.
9Ver PIAGET, J. Op. Cit, seç. I-III, cap. 1, pp. 7-15.
10Ver PIAGET. Idem, cap. 1, seç III e VI, pp. 15-30.
11Ver LORENTZ, K. A Demolição do Homem, IV part., p. 167.
12Ver LEVITT, S.D & DUBNER, S.J. Freakonomics, 4, p. 141.
13Ver LORENZ, K. Op.cit., p. 189.
14Ver GARDNER, H. O Verdadeiro, o Belo e o Bom, cap. 5, p. 133.
15Ver GARDNER, H. Op. Cit, cap. 5, p. 134.
Referências Bibliográficas
CHAUÍ, M. De S. “Rousseau: Vida e obra”, in Rousseau: Os pensadores. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
GARDNER, H. O Verdadeiro, o Belo e o Bom; trad. Álvaro Cabral. – Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
LEVITT, S.D. & DUBNER, S.J. Freakonomics; trad. Regina Lyra. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
LORENZ, K. A Demolição do Homem; trad. Horst Wertig. – São Paulo: Brasiliense, 1986.
PIAGET, J. A Epistemologia Genética; trad. Nathanael C. Carneiro. – São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores).
VYGOTSKY, L.S. Pensamento e Linguagem; trad. M. Resende. – Lisboa: Antídoto, 1979.
____. A Formação Social da Mente; trad. José Cipolla Nt et al. – São Paulo: Martins Fontes, 1994.