A Prova do Mundo Externo de Moore

George E. Moore (1873-1958) foi, ao lado de Bertrand Russel (1872-1970), um dos principais responsáveis pela implantação de uma nova abordagem filosófica na Inglaterra. Antes dele, predominava, entre os ingleses, uma corrente idealista que abafara a tradicional visão cética e empírica, oriunda de autores como Francis Bacon (1561-1626), David Hume e John Locke (1632-1706). Depois de 1903, no entanto, com a publicação de Principia Ethica e do ensaio Refutação do Idealismo, Moore introduziu uma nova maneira realista de tratar os problemas filosóficos.
A principal característica de seu pensamento era uma postura analítica de investigação, voltada para o exame do significado das expressões empregadas na linguagem corrente, em oposição aos enunciados filosóficos de difícil compreensão. Em relação ao uso dado pelo senso comum à linguagem, Moore considerava seus significados verdadeiros e todos poderiam percebê-los claramente. Quanto ao uso filosófico da linguagem, era preciso buscar uma interpretação que tornasse evidente a verdade ou falsidade de suas proposições.
Pelo método de Moore, a clareza dos significados das expressões do senso comum servia como instrumento de elucidação dos significados dos enunciados filosóficos. Apesar das sentenças populares não exigirem provas ou refutações, elas impediriam que as teorias filosóficas caíssem num paradoxo, ao negá-las. O senso comum era, para Moore, um parâmetro útil no intuito de assegurar a verdade filosófica. Em Moore, a análise da linguagem pressupõe que haja no senso comum um universo de significados que se mostra no seu uso cotidiano. Caberia ao filósofo fazer a descrição geral desse universo.

Antecedentes

Por conta disso, para adentrar-se à obra de Moore é preciso estar atento aos antecedentes filosóficos e históricos necessários para a exata compreensão de seu objetivo teórico de esclarecer as expressões da filosofia. No caso do ensaio “Prova de um Mundo Exterior” (1939), a questão em torno da existência do mundo externo remonta a Descartes, George Berkeley (1685-1763) e Kant.
Descartes, em suas Meditações, procurou fundamentar a existência das coisas materiais a partir da noção de Deus – entidade capaz de produzir todas as coisas que se pode conceber com distinção. Nesse sentido, é possível conceber a existência de coisas materiais, uma vez que, como os objetos das demonstrações dos geômetras, elas podem ser reconhecidas clara e distintamente, graças à existência de Deus [1].
Ao contrário de Descartes, Berkeley via uma contradição na noção de matéria ou substância corpórea. Isso porque, todos os corpos que compõe o mundo não subsistem sem um espírito, um ser ativo que os perceba. Sem a percepção atual de algum espírito eterno, nada tem existência ou subsiste na mente. Não é possível separar o ser de um objeto sensível daquilo que nele é percebido. Só há, portanto, uma substância, o espírito percipiente, que percebe. Donde a contradição da existência de uma coisa que não possa perceber, pois ter uma ideia é o mesmo que percebê-la. Não há substância que não seja pensante ou substractum daquelas ideias [2].
Com Kant, é dado o ponto de partida das reflexões de Moore. Kant distinguia duas formas de idealismo material: o idealismo problemático de Descartes e o dogmático de Berkeley. Segundo ele, Descartes admitia como indubitável a asserção: “eu sou, eu existo”; enquanto Berkeley considerava o espaço exterior impossível em si. Contra Berkeley, Kant propôs, na Crítica da Razão Pura (1781), um sentido externo pelo qual se obteria a representação de objetos como exteriores a nós e situados no espaço. Assim, o espaço não representa qualquer propriedade das coisas em si, sendo somente a forma de todos os fenômenos do sentido externo: uma condição subjetiva da sensibilidade.
Contra Descartes, por sua vez, ele procurou mostrar que temos também experiência e não apenas imaginação das coisas exteriores. A experiência interna, que é indubitável, só seria possível mediante o pressuposto da experiência externa. Isso foi feito partindo-se da concepção de tempo como sentido interno. A determinação de algo no tempo pressupõe a sua permanência na percepção. Como representação de algo em mim, esta coisa deve ser distinta das simples representações de coisas fora do sujeito. Logo, a determinação própria no tempo só é possível pela existência de coisas reais, que percebo como externas. A consciência da própria existência, determinada no tempo, é também a consciência imediata da existência de outras coisas exteriores ao sujeito [3].
Kant pensava, então, ter fornecido, com a suposição dos sentidos interno (tempo) e externo (espaço), a única prova possível da existência do mundo exterior. Deste modo, estaria resolvido o escândalo filosófico acerca da existência das coisas exteriores a nós, sem apelar para crença, tendo em vista apenas a maneira pela qual a razão percebe o mundo por aqueles dois sentidos extraídos da forma da sensibilidade.

Prova do Mundo Exterior

No começo de seu ensaio, Moore, que leva a sério a tentativa de Kant resolver essa questão, pensa ser de alguma importância e pertinente à filosofia a discussão sobre o tipo de prova dado em relação à existência da alguma coisa exterior a nós. Ele considera que a prova oferecida por Kant para “a realidade objetiva da intuição exterior” também se aplica à expressão “a existência das coisas exteriores a nós”. Entretanto, a prova kantiana não é considerada satisfatória, pois ela ainda se concentra numa concepção subjetiva do entendimento do mundo. Para Moore, portanto, essa é uma questão que “ainda merece ser discutida” [4].
A partir desse ponto, Moore passa a fazer uma análise da expressão “coisas exteriores a nós”, que pensa ser uma expressão filosófica cujo significado não é perfeitamente claro. Dá preferência à expressão “coisas externas a nossa mente” [5]. É mencionada a ambiguidade apontada por Kant na expressão “exterior a nós”. Haveria um sentido transcendental – no qual uma coisa existiria como coisa em si distinta de nós – e um sentido empírico – de aparência exterior das coisas que devem se encontrar no espaço [6].
A última concepção adotada por Kant caracteriza o tipo de coisa ao qual o modelo da prova deverá se adequar, a saber: os “objetos físicos” ou melhor dizendo “tudo que se pode encontrar no espaço”. Nesse sentido, uma vez que se prove a existência de duas coisas diferentes, seguir-se-á a existência de pelo menos duas “coisas que se deveriam encontrar no espaço”, não importando o tipo desses objetos físicos.
Desse ponto em diante, Moore faz o exame dos objetos que podem ser considerados externos ou não. As imagens provocadas por uma fixação do olhar que permanecem na mente depois de passado algum tempo de observação, embora não fossem algo que pudesse ser encontrado no espaço, poderiam ser objetos de experiências que outras pessoas poderiam realizar. Assim, a expressão “ser encontrado no espaço” quer dizer que outras pessoas também poderiam perceber as coisas que alguém observa e experimenta. Entretanto, as imagens fixas na mente, mesmo que sejam apresentadas no espaço, não são encontradas neste mesmo espaço, nem fora da mente, já que a repetição da experiência não garante que a representação da imagem seja a mesma em cada indivíduo. As ilusões de ótica, provocadas por imagens duplas e as dores corporais são exemplos de coisas apresentadas no espaço que não estão nele e sim dentro da mente humana.
Segundo a concepção kantiana de “coisas encontrada no espaço”, Moore propõe que ela amplie seu significado, abrangendo os objetos de um experiência possível e não apenas da experiência real. A despeito do objeto de uma experiência possível não poder ser considerado como algo que é ou foi “apresentado” de modo absoluto, como acontece com as sombras que estão no espaço, mas nem sempre aparecem à percepção.
Moore não reconhece as imagens mentais, as dores e as alucinações como “coisas exteriores”, fora da mente, pois é necessário que outra pessoa também percebam as mesmas coisas que o sujeito afetado por elas percebem. Ele usa a expressão “coisa que se devem encontrar no espaço” no sentido de que uma vez que existam coisas, então elas devem ser encontradas no espaço [7]. Isto é, se algo exterior existe, ele deve encontrar-se no espaço em meio às coisas percebidas de um modo geral pelas pessoas comuns.
Para tornar isso mais claro, entretanto, Moore pretende abandonar a expressão “coisas que se devem encontrar no espaço” em favor de “coisas exteriores a nossas mentes”. Pois da existência de dois objetos não se segue que estes devam ser encontrados no espaço. Todavia, se é utilizada a frase “coisas exteriores a nossas mentes”, objetos existentes – como estrelas, corpos humanos, sombras – devem ser procurados externamente, ou seja, fora da mente humana. Esses objetos poderiam ter existido antes que o sujeito os percebessem e talvez continuassem a existir depois de serem percebidos [8]. Assim, objetos externos são logicamente independentes da percepção do indivíduo, para poderem existir de fato.
A prova que Moore pretende fornecer de um mundo externo passa pela existência desse tipo de coisas que podem ser encontradas no espaço e existem “fora de nós”. E basta que apenas dois objetos sejam provados, para que todo o resto seja admitido como existente, fora da mente. Destarte, no final de seu ensaio, Moore procede a sua demonstração:

segurando minhas duas mãos e dizendo, à medida que faço um certo gesto com a mão direita, “aqui está uma mão”, e acrescentando, à medida que faço um certo gesto com a esquerda, “aqui está a outra”. E se, fazendo isso, provei ipso facto [a partir do feito] a existência de coisas exteriores, todos nós veremos que posso também fazê-lo de várias outras maneiras: não existe nenhuma necessidade de multiplicar os exemplos (MOORE, G. Op. Cit, in idem, p. 292).

A mão esquerda de Moore segura seu cachimbo. Fonte: Filobotfil [CC BY-SA 3.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)%5D, from Wikimedia Commons.

Eis a prova da existência de um mundo exterior. Uma prova que, para Moore, é a melhor e a mais rigorosa. Ela atende a três condições formais: primeiro, a premissa era diferente da conclusão, pois mostrar as mãos e fazer gestos é diferente de dizer que “duas mãos humanas existem atualmente”; segundo, havia o conhecimento de que a premissa está de acordo com o que pretende demonstrar e é verdadeira; terceiro, a conclusão se segue das premissas. Em suma, “se há uma mão aqui e outra aqui agora, então segue-se que há duas mãos em existência agora” [9].
Posto isso, conclui-se que ao preencher todas as exigências de rigor, a prova apresentada pode afirmar a existência de objetos presentes agora. Para uma prova da existência no passado, basta que se diga que se manteve as mãos sobre algum móvel, num tempo anterior, logo, as duas mãos existiram neste tempo passado. É suficiente que uma pessoa saiba que esse fato tenha ocorrido como diz a premissa. Assim, também é possível, através de um testemunho fidedigno, provar a existência de objetos exteriores no passado, sendo essa prova perfeitamente conclusiva.
Não obstante, essa prova circunstanciada não corresponde à fórmula de um enunciado geral, capaz de provar qualquer proposição desse tipo. Moore não acredita que se possa provar de um modo geral as suas premissas, pois isso exigira a demonstração de todas as evidências relativas ao indivíduo: que ele não está sonhando ou sob o efeito de drogas; que as mãos são suas e não artificiais etc. Essas provas extras não podem ser dadas por esse tipo de prova. Contudo é um tipo de requisito equivocado tentar provar tudo o que se sabe. De acordo com Moore, é possível saber coisas que não se pode provar. A insatisfação contra a solução fornecida não tem bons motivos para ser sustentada.

Notas

1. Veja DESCARTES, R. Meditações, terceira e sexta.
2. Veja BERKELEY, G. Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano, “Dos princípios do conhecimento humano”, §§1 a 7.
3. Veja KANT, I. Crítica da Razão Pura, “Refutação do idealismo”, B 275/6.
4. MOORE, G. “Prova de um Mundo Exterior”, in Escrito Filosófico, p.278.
5. MOORE, G. Op. Cit., idem.
6. MOORE, G. Idem, ibdem, p.279.
7. MOORE, G. Ibdem, ibdem, p.285.
8. MOORE, G. Ibdem, ibdem, p.285/290.
9. MOORE, G. Ibdem, ibdem, p. 292.

Referências Bibliográficas

BERKELEY, G. Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano; trad. Antônio Sérgio. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
DESCARTES, R. Meditações; trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
KANT, I. Crítica da Razão Pura; trad. Manuela P. Dos Santos e Alexandre F. Morujão. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
MOORE, G. Escritos Filosóficos; trad. Paulo R. Mariconda. – São Paulo: Nova Cultural, 1989.

A Educação Social defendida por Vygotsky

Lev Semyonovich Vygotsky (1896-1934) foi o principal psicólogo da breve história da antiga União Soviética. Sua curta existência e a qualidade de sua obra permitiu que ele fosse comparado ao compositor austríaco Mozart. Apesar da influência marcante de suas ideias pedagógicas entre os antigos países por detrás da “cortina de ferro”, seus textos só passaram a ser conhecidos no ocidente graças ao interesse do psicólogo estadunidense Jerome S. Bruner e pela divulgação feita pelo seu discípulo Alexander Romanovitch Luria em congressos internacionais, a partir de 1962.
Vygotsky foi o primeiro autor a chamar atenção da importância do envolvimento ambiental no desenvolvimento da criança e no processo de formação da mente. De sua bibliografia, destaca-se o livro Pensamento e Linguagem (1934), onde desenvolve sua teoria sobre a evolução do significado durante o crescimento da criança com a mudança do pensamento em suas diversas etapas de interação social. Com isso, o processo de formação mental passou a ser encarado de um modo a comprometer o pedagogo com a observação empírica dos pontos críticos de transformação dos indivíduos em pessoas maduras. Sua metodologia não abria mão da relação entre teoria e prática, no que diz respeito ao entendimento empírico da psicologia humana.
Para a ciência cognitiva, suas teses são relevantes por irem além das simplificações behavioristas -cujo principal papel no processo de maturação cabe ao ambiente e não ao indivíduo- e por complementarem as etapas do desenvolvimento intelectual, meramente genético, sugeridas pelo suíço Jean Piaget. Em Vygotsky, a participação da criança e do instrutor no processo de aprendizagem apontava para importância de inserção social do indivíduo, nos momentos adequados, em suas diversas fases de crescimento, mostrando que a mente depende constitutivamente do contato estreito com uma comunidade para sua efetiva maturação.

 

A Formação Social da Mente

O ensaio “Interação entre Aprendizado e Desenvolvimento”, incluído na coletânea norte-americana A Formação Social da Mente, antecipa as concepções desenvolvidas em detalhes em Pensamento e Linguagem. Para Vygotsky, o entendimento da relação entre aprendizado e desenvolvimento ajudaria à aplicação correta das teorias educacionais. Nesse sentido, ele procurou confrontar as três principais teorias existente até então, enquanto preparava o terreno para colocação de suas ideias.
Primeiro, ele atacou as teses iniciais de Piaget, nas quais o desenvolvimento é concebido independente da aprendizagem. Segundo essa perspectiva, o domínio do pensamento formal e lógico ocorreria por si mesmo, sem a interferência do ensino. Tudo que fosse aprendido dependeria, em primeiro lugar, do desenvolvimento requerido para aquisição do conhecimento. Por conseguinte, o aprendizado não poderia alterar as diversas etapas de formação.
Outra hipótese criticada é a de William James, sobre a equivalência da aprendizagem com o desenvolvimento. Por essa teoria, ambos poderiam ser subsumidos a um processo de formação por hábitos. Ao invés de assumir o inatismo de Piaget, James conceberia a educação como uma atividade organizadora dos hábitos de conduta e tendências adquiridos. Assim, aprendizagem e desenvolvimento ocorreriam ao mesmo tempo e do mesmo modo.
Por último, também é rejeitada a tentativa de descrever o aprendizado e o desenvolvimento como processos separados, mas que se influenciam mutuamente. De acordo com essa tendência, defendida pelo alemão naturalizado estadunidense Kurt Koffka (1886-1941), a maturação prepara a possibilidade da aprendizagem que, por sua vez, estimula o crescimento. Entretanto, não ficaria clara a maneira pela qual essa interação ocorreria.
Muitos autores que defendiam o ponto de vista do hábito, por outro lado, rebateram a suposição de que o ensino de uma disciplina formal clássica específica pudesse ajudar o incremento de todo raciocínio. Contudo, o desenvolvimento do uso preciso das palavras, da sagacidade, da memória e do poder de concentração não são atributos exclusivos de uma única matéria. Pois a especialização não contribui em nada para a formação geral da mente. Já naquela época, algumas pesquisas mostravam que a mente não se resumia a uma rede complexa de capacidades gerais, mas pelo contrário, era um sistema de funções específicas que se desenvolviam independentes umas das outras. O aprendizado, portanto, não deveria ser focalizado numa área apenas, ao contrário, ele precisa proporcionar a aquisição de diversas capacidades particulares. Uma disciplina só afetaria e contribuiria para o desenvolvimento de uma outra à medida que tivesse algum ponto em comum entre elas.
Desse modo, presumia-se que o desenvolvimento fosse equivalente à obtenção de várias habilidades e hábitos, o que a teoria de Koffka rejeitava. Para este, o processo de desenvolvimento, na interpretação de Vygotsky, seria maior que o de aprendizado, isto é, para cada tema novo aprendido, a capacidade de desenvolver-se ampliaria o dobro [1].

 

Desenvolvimento Proximal

Vygotsky considerou que todas essas teorias psicológicas do ensino não satisfaziam a compreensão da relação entre aprendizado e desenvolvimento. A seu ver, a solução desse problema deveria ser encarada sob dois aspectos: geral e particular. Primeiro, seria necessário sempre ter em vista que o aprendizado não começa na escola, porém vem desde o nascimento da criança. A partir daí, aprendizado e desenvolvimento encontram-se interligados.
A diferença entre o ensino anterior e posterior à escola concentra-se na sistematização que ocorre quando a criança é deixada sob a tutela de uma instituição e que o desenvolvimento passa a se desenrolar em dois níveis distinto: o real e o potencial. O primeiro nível é aquele em que a criança consegue resolver por si mesma os problemas que lhe são propostos, enquanto, no segundo aspecto, elas só são capazes de alcançar uma resposta com a ajuda do instrutor. Entre esses dois patamares, haveria uma zona de desenvolvimento proximal que indicaria até onde o aprendiz pode chegar na sua etapa atual de crescimento.
De acordo com Vygotsky, a zona proximal corresponde às funções que estão em maturação no indivíduo. O desenvolvimento real, no qual a criança faz suas coisas com independência, retrata o amadurecimento consolidado, ao passo que aquelas tarefas realizadas com ajuda dos outros apontam para o desenvolvimento mental que pode ser adquirido. A zona proximal revelaria a dinâmica do processo de desenvolvimento, prevendo o resultado a ser obtido quando o conhecimento foi assimilado. Ela revela o desenvolvimento real futuro, aquilo que uma criança será capaz de fazer sozinha, depois de internalizar o aprendizado. Destarte, é possível prever o desenvolvimento de uma pessoa ao observar essa diferença entre o que ela faz e o que pode fazer.
A imitação e a brincadeira indicam um nível de compreensão a ser trabalhado. Diferente dos animais, que também podem imitar os gestos humanos, o aprendizado da criança é fomentado pela natureza social de sua espécie. Um processo pelo qual elas são inseridas na vida intelectual da comunidade. A atividade coletiva e o aprendizado social permite que se ultrapasse os limites do desenvolvimento real, até se alcançar a plena maturidade. O que explica também como os conceitos abstratos podem ser adquiridos pela experiência concreta do cotidiano. Nas palavras de Vygotsky, “o concreto passa agora a ser visto somente como um ponto de apoio necessário e inevitável para o desenvolvimento do pensamento abstrato -como um meio, e não como um fim em si mesmo” [2].

Esportes coletivos e brincadeiras, como o jogo de bola, no desenvolvimento da plena maturidade. Fonte: Pixabay, por joshdick75.

Ao observar a zona proximal, o educador pode orientar o aprendizado no sentido de adiantar o desenvolvimento potencial de uma criança, tornando-o real. Nesse ínterim, o ensino deve passar do grupo para o indivíduo. Em outras palavras, o ambiente influenciaria a internalização das atividades cognitivas no indivíduo, de modo que, o aprendizado gere o desenvolvimento. Portanto, o desenvolvimento mental só pode realizar-se por intermédio do aprendizado.
Resta saber, como esse conhecimento externo é internalizado pelas crianças. O objetivo da análise psicológica e educacional é revelar como os processos de desenvolvimento podem ser estimulados pelo ensino. Em todo caso, depois de Vygotsky, foi possível afirmar que se trata de uma interação dinâmica e complexa entre os dois processos, revelando que o desenvolvimento mental deve ser entendido sob o aspecto global que somente pesquisas empíricas puderam demonstrar com base no conceito de zona de desenvolvimento proximal [3].

 

Notas

1. Veja VYGOTSKY, L.S. “Interação entre Aprendizado e Desenvolvimento”, in A Formação Social da Mente, cap. 6, pp. 103-109.
2. VYGOTSKY, L.S. Op. Cit., idem, p. 116.
3.Veja VYGOTSKY, L.S. Idem, ibdem, pp. 109-119.

 

Referências Bibliográficas

VYGOTSKY, L.S. A Formação Social da Mente; trad. José Cipolla Nt. – São Paulo: Martins Fontes, 1994.
______. Pensamento e Linguagem; trad. M. Resende. – Lisboa: Antídoto, 1979.

A Imaginação Moral de Mark Johnson

O papel da imaginação é talvez a maior descoberta de Kant na Crítica da Razão Pura. (…) [A] mesma faculdade que provê esquemas para a cognição, provê exemplos para o juízo, a imaginação (ARENDT, H. “Da Imaginação”, in Lições Sobre a Filosofia Política de Kant, p. 102).

O confronto de diversos tipos de bens dificulta fortemente a tomada de decisão. Diante dos dilemas morais, a incerteza sobre o que fazer impede o recurso a uma listagem de princípios hierarquizados sob uma fundamentação última. Nesse sentido, a necessidade de uma justificação razoável para ação esbarra na impossibilidade de decidir-se sobre “a coisa certa a fazer”. Quando isso acontece, o melhor mesmo é apelar para a Imaginação Moral, livro que o filósofo estadunidense Mark Johnson lançou em 1993. Através dela, seria possível imaginar as várias alternativas de ação. Uma racionalidade imaginativa iluminada, crítica, exploradora e transformadora deve ser a base das deliberações morais, do auto-entendimento e do desenvolvimento moral [1].
Uma teoria da moralidade desse tipo, ao contrário da pretensão de uma moral que visasse a formulação de leis, não seria prescritiva, mas descreveria a natureza do problema moral, apontando os padrões de justificação e as diferentes tradições históricas de tal modo que se revelaria a estrutura imaginativa dos conceitos e argumentos morais. Essa descoberta implicaria numa melhor compreensão da situação em que surgem os problemas morais, permitindo a construção de soluções, sem o fornecimento de regras para ação [2].

Elementos Básicos da Imaginação Moral

Para entender como a imaginação moral afeta as boas ações, é preciso conhecer seus elementos básicos: a estrutura prototípica dos conceitos morais; o enquadramento das situações; o uso de metáforas; e as narrativas. Os conceitos básicos da moralidade têm uma estrutura prototípica que não podem ser reduzidos aos critérios de necessidade e suficiência da teoria da lei moral. Por se ater só aos aspectos centrais das categorias a teoria da lei moral não dá conta dos casos periféricos, onde só os recursos imaginativos são capazes de alargar os limites definidos.
Seis aspectos da estruturas prototípicas são relevantes para a deliberação moral. Primeiro, na socialização que envolve o corpo do agente na aprendizagem das situações morais protótipos. Nesse envolvimento pessoal, em segundo lugar, emoções são geradas, marcando as motivações adequadas para a ação. Ao longo do tempo, uma série de extensões imaginativas mudam o significado dos protótipos, caracterizando sua flexibilidade. Contextos narrativos constituem o quarto aspecto importante, pois ajudam a determinar o significado de cada protótipo, segundo uma situação particular respectiva. Em quinto, os protótipos são a base dos princípios morais, cujas leis são abstrações que deixam de lado as circunstâncias culturais. Por último, as estruturas prototípicas estão sujeitas a transformações imaginativas graduais que permitem que os conceitos sejam aplicados a situações novas [3].
O enquadramento das situações é feito pela estrutura imaginativa sem a preocupação de fornecer um espelho objetivo da realidade. Os preconceitos existentes podem ser esclarecidos pela compreensão dos quadros semânticos, segundo sua natureza particular, que proporciona a formação de muitos quadros sobre a mesma situação [4].
O uso de metáforas constitui o cerne da dimensão imaginativa da moral. Tal afirmação, no entanto, exige uma série de reformulações no entendimento da razão moral. Conhecer os detalhes de uma estrutura metafórica permite um melhor autoentendimento do sujeito, esclarecendo seus valores, propósitos e sua vinculação às ações. A análise metafórica indica quais são os conceitos universais na base da experiência humana que pervade todas as culturas. Não obstante essa característica universal varia de cultura para cultura. Os princípios gerais estão situados num modelo cultural e narrativo que especificam os modos corretos de agir. Para evitar as mudanças catastróficas das promovidas pelas transformações das metáforas, é necessária uma avaliação dos custos do alargamento dos conceitos morais mais profundos. A metáfora serve para fazer a ampliação da estrutura prototípica dos conceitos morais básicos, introduzindo novas entidades que surgem nos casos em que não foram previstas anteriormente. Sem a habilidade de raciocinar por metáforas, a aprendizagem dos conceitos morais não é possível. Elas podem compor, também, um sistema complexo de metáforas, no qual muitas podem estar ocultas, enquanto outras aparentes. A reflexão autocrítica das metáforas permite não só o autoentendimento, bem como o conhecimento de alternativas possíveis de ação.
Em suma, o profundo conhecimento reflexivo da natureza da metáfora é essencial para o conhecimento moral. As metáforas não são arbitrárias, nem desmotivadas. Algumas restrições impedem que as metáforas caiam no extremo subjetivismo ou relativismo. No primeiro caso, o subjetivismo é evitado por serem as metáforas partilhadas socialmente, ao passo que o relativismo é superado pelo reconhecimento dos fundamentos universais das experiências corporais [5].
Para Johnson, a vida tem ainda uma estrutura narrativa que torna possível a antecipação das consequências das decisões tomadas e compromissos estabelecidos, em suas condições concreta e particular. A comparação entre os resultados de diversas histórias é importante para o conhecimento moral e para educação. A ficção é um laboratório que explora as implicações do caráter das pessoas. Nesse contexto, o raciocínio moral é semelhante ao exame das narrativas pessoais, que são inerentes às culturas e às circunstâncias particulares que constituem a vida de cada um [6].

A Diferença da Imaginação Moral

O entendimento moral é, portanto, estruturado pela imaginação. Contudo, para entender como isso ocorre, são necessárias regras particulares e adequação destas às situações de fato. Deve-se aprender como aplicar leis morais, segundo a percepção do caráter, das situações e pelo uso de uma imaginação empática em relação aos outros. Essa tarefa é um guia que parte do entendimento moral e do autoconhecimento [7].
Assim, a imaginação empática assume um papel decisivo nessa investigação moral. Pois, ela é uma habilidade que as pessoas têm de imaginar situações diferentes no passado e no futuro, colocando-se no lugar do outro. Essa é a mais importante atividade da imaginação. Ao tomar decisões morais, é preciso conviver no mundo do outro e imaginar seus sentimentos e expressões. Pessoas moralmente sensíveis são capazes de realizar essa imaginação empática, uma passionata, onde a relação com o outro não é instrumentalizada. Só desse modo é que se pode conhecer algo em si, ou seja, usando a imaginação e a experiência dos sentimentos, metas e esperanças partilhados com a experiência com os outros. Esse tipo de imaginação não é meramente pessoal ou subjetiva, pois ela utiliza seu caráter transformador e comunitário, inserindo o sujeito num mundo mais ou menos comum aos outros. Por isso, a imaginação moral é pública e partilhada. Ela é o meio primário pelo qual as relações sociais são constituídas reciprocamente, delineando a possibilidade de qualquer moralidade que não recorra apenas à aplicação de regras [8].
A ação moral requer a realização de fins. A boa vontade não existe por si mesma. Ela depende da ação para ser realizada. Além da vontade, é preciso agir para promover o bem estar de todos. A imaginação permite antever as várias possibilidades de ação suas vantagens e prejuízos, em cada situação. A antevisão das alternativas oferecidas precisa de uma imaginação moral que abra novas formas de organização social. A reorganização permanente de parte das metáforas, proporciona a superação da identidade e contextos atuais. Sem opções imaginativas, nenhuma pessoa pode ser moral [9].
Todavia, a abertura do raciocínio, proporcionada pela imaginação moral, provoca alguns problemas de indeterminação que exige uma restrição às alternativas apresentadas. Tais limitações são fornecidas pela preexistência de quadros e valores, emboras estes também não sejam determinantes. Faz-se necessária uma certa habilidade para raciocinar sob um esquema imaginativo partilhado e transformar uma concepção metafórica em outra, através de um mapeamento metafórico. O raciocínio moral usa estruturas e conteúdos imaginativos dados pelas culturas e articulados pela experiência pessoal, visando explorar novas possibilidades de significados e formas de agir. O raciocínio moral pode ser restringido por outros conteúdos e estruturas metafóricos da comunidade, ao mesmo tempo em que está autoriza a transformação do entendimento moral. Como nos exemplos jurídicos, onde novas metáforas são criadas para possibilitar a ampliação dos direitos e deveres de alguém. Sem isso, a vida, diz Johnson, ficaria mais pobre [10].

A Dimensão Estética da Moral

Na visão de Johnson, a tradição iluminista considera a concepção de imaginação moral uma justaposição de dois termos contrários, já que as leis morais são fruto da razão e a transgressão a elas é provocada pelo uso criativo da razão. Para os iluministas, a imaginação seria meramente estética. Os juízos morais sobre casos particulares recairiam em conceitos particulares regidos por uma regra moral específica. A razão seria, por conta disso, capaz de aplicar a lei a casos concretos tendo por base conceitos morais partilhados. Ainda sob esse prisma, os juízos estéticos não envolveriam conceitos gerais, não sendo produto da razão, pois estariam ligados a sentimentos e à imaginação. Portanto, estética e moral seriam radicalmente diferentes.
Contra tudo isso, Johnson defende a hipótese de que a estética pervade todos os aspectos da vida. Ela considera as estruturas imaginativas, as atitudes, orientações e transformações que tornam coerente encontrar algum sentido na experiência. Nesse sentido, a moralidade emprega a imaginação, a fim de explorar as possibilidades de ordenação dos problemas, de melhoria dos critérios comunitários e o amadurecimento pessoal. Destarte, a imaginação é o meio pelo qual se transcende à experiência pessoal, visando sua transformação e encaminhamento das situações problemáticas. A dimensão estética da experiência fornece o significado desta e vislumbra a possibilidade de sua melhoria [11].
O que se quer com essa nova metáfora da moral como arte é investigar o papel da criação estética nas considerações da lei moral, revelando a natureza do raciocínio moral. Nem todas facetas da estética fazem parte desse tipo de raciocínio. As mais relevantes são o discernimento, a pesquisa, a criatividade, a técnica e a expressão.
O discernimento, através da observação atenta e sensível de uma situação, abre novas dimensões do mundo, permitindo prever o que fazer diante das circunstâncias. Algumas restrições dessa forma de percepção limitam a visão imaginativa das coisas, por meio de princípios gerais, hábitos, compromissos internalizados, segundo a natureza do corpo que observa, da sociedade e da cultura, não obstante o fato de inexistir um método algorítmico predeterminado. A pesquisa artística procura investigar as formas, os materiais, a linguagem expressiva, os relacionamentos e as instituições, no intuito de imitar a natureza das coisas. Sob o aspecto moral, uma investigação precisa esclarecer o melhor modo de agir, formar leis relacionadas com o entendimento das situações, à luz de vários projetos de ação e planos de curso.
A criatividade pode, de posse desse conhecimento, perceber e reagir a uma situação, propondo novas formas de relações; transformando o caráter, os problemas e acontecimentos; além de apresentar novas realidades. O fator histórico e evolutivo da experiência humana, exige uma contínua experimentação e, a despeito dos possíveis equívocos, novas formas evoluídas de relacionamento podem surgir. As pessoas criativas ultrapassam as práticas canônicas e mostram novos modos de pensar, relacionar e agir, como por exemplo, Nero, Van Gogh, André Breton, Hitler e Martir Luther King Jr. Porém, para que tudo isso aconteça, é preciso uma certa técnica de utilização dos materiais para torná-los objetos de arte. Na moralidade, essa técnica não pode ser fixada por procedimentos mecânicos que se apliquem ao contexto, mas ela permite que o conhecimento adquirido “componha” a situação e “arranje” novos relacionamentos. Por fim, a partir dessas qualidades expostas, a expressão artística manifestaria a compreensão que o sujeito tem de si mesmo e, em moral, o caráter e a identidade da pessoa revelar-se-iam em suas tomadas de decisão e ações.
Sem procurar abranger todo domínio da arte, a metáfora da moral artística é considerada apropriada para o reconhecimento do modelo de juízo moral que pervade a moralidade de modo imaginativo sob muitos aspectos. Logo, a separação tradicional entre estética e moral seria falsa [12].

Conclusão

O raciocínio moral apoia-se em vários tipos de estruturas imaginativas que exigem, primeiro, a compreensão da cognição humana, do ponto de vista moral, como amplamente ligada à imaginação e, em segundo lugar, o cultivo de uma imaginação moral que envolva os indivíduos uns com os outros. A teoria proposta por Johnson não estabelece leis morais. Sua intenção é apenas de servir como guia para a vida, desde um conhecimento de si e dos outros. Aqueles que se atém a regras são pessoas medrosas quanto às contingências da vida ou obtusas ou ambas as coisas.
A teoria ingênua da lei moral não consegue resolver satisfatoriamente os dilemas morais. Contingências imprevisíveis podem ser determinantes na escolha da melhor estratégia. De fato, tais acontecimentos não solucionam um dilema ou mostram a “coisa certa a fazer”, isso tudo requer discernimento, ponderação, previsão, investigação e uma imaginação “muito fértil” [13].
Obra da Imaginação

A imaginação de um artista representando a obra de outro: O Incêndio de Roma de Hubert Robert (1733-1808). Fonte: http://www.kunst-fuer-alle.de/index.php?mid=77&lid=1&blink=76&stext=caesar&cmstitle=Bilder,-Kunstdrucke,-Poster:-Caesar&start=80, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=6606073

O argumento de Johnson, em Moral Imagination, é no capítulo oito apresentado na íntegra. Ele parte da premissa que uma suposta teoria ingênua da lei moral seria incapaz de resolver os problemas morais por estar restrita a regras estreitas de casos protótipos, que, por sua vez impediria, a sua aplicação em situações periféricas e particulares. Para encontrar a melhor maneira de agir, o raciocínio moral recorreria a recursos da imaginação que estenderiam os limites dos conceitos morais aos contextos não previstos pela lei. Portanto, seria preciso uma imaginação moral adequada para esclarecer a natureza desse raciocínio específico e servir como guia de resolução dos casos problemáticos de situações concretas do cotidiano das pessoas.
A teoria da imaginação moral assume, então, a tarefa de explicar como o pensamento imaginativo pode auxiliar a escolha da ação moral apropriada, sem cair num subjetivismo e relativismo indesejável às considerações morais. A fim de evitar o primeiro, afirma-se que as estruturas imaginativas são partilhadas pelo conjunto da sociedade e pela respectiva cultura a qual se está inserido. Além disso, os conceitos e metáforas usados pela imaginação moral são aqueles que fazem parte da natureza corporal, social e cultural da espécie humana, o que, por outro lado, afastaria uma interpretação relativista.
Nesse sentido, defende-se que a moralidade não pode ser concebida de outra forma que não a imaginativa. Esse tipo de moral seria muito mais rico do que todas teorias da lei moral, sendo também hábil para envolver não só o sujeito da ação moral, bem como outros indivíduos concernidos. Isso porque, a imaginação teria recursos narrativos e criativos suficientes para incluir o relacionamento entre os indivíduos em circunstâncias simuladas imaginativamente, proporcionando a previsão da reação dos outros às ações preferidas pelo agente. Na construção desse cenário fictício, a ativação de algumas funções estéticas é feita no intuito de enriquecer as alternativas possíveis e propor novos tipos de realidades e modos de agir cooperativos. Eis, em poucas palavras, o argumento de Johnson.
Todavia, há alguns problemas em toda essa argumentação “inovadora”. A influência da imaginação na formação do entendimento humano não chega a ser uma novidade para a filosofia moderna. Desde Thomas Hobbes, pelo menos, a imaginação foi considerada um capítulo importante no processo de raciocínio [14]. Por seu turno, Hannah Arendt nos fez lembrar que na obra de Immanuel Kant a imaginação era uma faculdade fundamental para o estabelecimento de esquemas que conectassem a sensibilidade ao entendimento. Assim, na Crítica da Razão Pura, a imaginação é uma faculdade sintética pura que produz o esquema necessário para compreensão de um conceito sensível puro, como os da geometria [15]. Ao passo que na Crítica do Juízo, o entendimento está a serviço da imaginação, na tarefa de encontrar a validade de um exemplo, sob princípios que aspirem a uma adesão universal, como se fora um conceito objetivo [16].
Ora, se Kant -alvo principal das críticas de Johnson- admite um papel essencial para a imaginação na formação das leis naturais e juízos estéticos, deve haver um bom motivo para sua exclusão no caso da moralidade. E há! Na Crítica da Razão Prática, apenas o entendimento e não a imaginação pode fornecer um tipo de lei próprio da moral, porque só desse modo se poderia preservar contra a transformação de esquemas imaginativos em símbolos místicos da razão prática e contra o empirismo que coloca os interesses particulares no lugar das disposições morais que constituiriam, segundo Kant, o alto valor da humanidade [17].
A teoria da lei moral em Kant é bem mais complexa que a versão ingênua apresentada por Johnson. Quem viu o documentário de Peter Cohen, Arquitetura da Destruição (1991) e tem o mínimo de informação sobre a história do ocidente sabe que não se pode deixar ao cargo de artistas frustrados ou pseudos artistas o governo de um estado. Pois acontece o que ocorreu em Roma, no tempo de Nero e do circo romano, ou na Alemanha, à época do terceiro Reich. “Tudo isso é história”, dirão alguns, mas há um exemplo próximo e caro aos brasileiros: a nefasta metáfora da malandragem, esperteza e do famigerado “jeitinho” -divulgada ostensivamente pelos meios de comunicação- gerou uma das sociedades mais corruptas, das existentes, e a nação comprovadamente mais injusta do mundo atual.
A imaginação por si só não é capaz de encontrar seus limites, as diversas teorias da vanguarda estética, no século XX, acabaram por dissolver completamente o conceito de arte. Sem um critério racional, argumentativo e discursivo, não é possível compreender como a imaginação constituirá um guia lúcido para ação que possa ser considerado correto ou errado, bom ou mal. Que a imaginação exista e influencie o pensamento, ninguém nega, mas que ela sirva de parâmetro de moralidade é algo que precisa ser defendido racionalmente e aceito por todos envolvidos na criação moral imaginativa. Adotar os métodos estéticos em moral é o primeiro passo para o rompimento do que resta da concepção moral contemporânea.

Notas

1. Veja JOHNSON, M. Moral Imagination, cap. 8, pp. 185-187.
2. Veja JOHNSON, M. Op. Cit, idem, pp. 187-189.
3. Veja JOHNSON, M. Idem, ibdem, pp. 189-192.
4. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, p.192.
5. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 193-196.
6. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 196-198.
7. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 198-199.
8. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 199-202.
9. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 202-203.
10. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 202-207.
11. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 207-209.
12. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 210-215.
13. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 215-216.
14. Veja HOBBES, Th. “Da Imaginação”, in Leviatã, cap. 2.
15. Veja KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 178-180.
16. Veja KANT, I. Critique de la Faculté de Juger, § 22.
17.Veja KANT, I. Crítica da Razão Prática, A 121-126.

Referências Bibliográficas

ARENDT, H. Lições Sobre a Filosofia Política de Kant; trad. André D. De Macedo. – Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
HOBBES, Th. Leviatã; trad. João P. Monteiro e Mª Beatriz N. Da Silva. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
JOHNSON, M. Moral Imagination. – Chicago: The University of Chicago Press, 1993.
KANT, I. Crítica da Razão Pura; trad. Alexandre F. Morujão e Manuela P. Dos Santos. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
____. Crítica da Razão Prática; trad. Artur Morão. – Lisboa: Edições 70, 1986.
____. Critique de la Faculté de Juger; trad. Alexandre J.-L. Delamarre et al. – Paris: Gallimard, 1985.

A Vitória do Consumidor contra o Monopólio

O sucesso surpreendente da greve de caminhoneiros autônomos, no final de maio de 2018, marcou a história dos movimentos de trabalhadores no Brasil. Seus resultados foram diretamente proporcionais ao completo fracasso da política de valorização das rodovias e da cadeia industrial dos combustíveis fósseis do país. Os manifestantes obtiveram êxitos em todas as suas reivindicações econômicas e ainda avançaram vários pontos em sua pauta política. Contou com apoio maciço da população, dos seus patrões, motoristas de veículos coletivos, motociclistas e explícito de agentes de polícia federal, bem como do consentimento tácito das forças armadas.
Nos seus vários aspectos econômicos, o movimento dos caminhoneiros revelou os erros históricos do abandono de alternativas sustentáveis para o transporte de cargas e passageiros, seja por ferrovias ou vias aquáticas – marítimas ou fluviais. Mostrou também os equívocos em se insistir na concentração de recursos no monopólio estatal da produção de combustíveis fósseis, sem investimentos significativos na pesquisa tecnológica por outras fontes de energia limpa e em veículos elétricos. Na contramão de países desenvolvidos mais a China, que já produzem carros elétricos com autonomia superior a 300 quilômetros, no Brasil não há qualquer esforço público ou privado nesse sentido, enquanto, na Europa, Alemanha, Reino Unido e França já programam o banimento de veículos poluentes para as próximas duas décadas.
A origem do problema energético, no Brasil, não está, entretanto, apenas no preço dos combustíveis, mas no monopólio estatal que distorce todo setor de transporte e energia. A empresa responsável pela produção nacional não vende só essa mercadoria energética essencial, mas sobretudo impostos travestidos em gasolina, diesel e álcool, para cobrir os rombos criados por má administração e corrupção no governo, seu principal controlador. Diante do achaque diário praticado pelo monopólio, os caminhoneiros, como principal grupo de consumidores, reagiram da maneira que podiam: simplesmente pararam. Sem concorrência de preços e alternativa para o produto, não há que se falar em mercado livre. Vence a disputa por preço quem tiver maior poder de pressão.
No âmbito político, a grande greve de maio de 2018 pôs na lona uma quadrilha formada de políticos corruPTos – continuação do governo anterior, composto por uma organização criminosa, que foi deposto em 2016. Escancarou o arrocho cometido pela política de preços de um monopólio estatal que serve para cobrir o rombo fiscal provocado pelos interesses escusos de seus administradores indicados por partidos políticos, responsáveis pela corrupção generalizada nas empresas públicas. Na esteira da greve, o governo vigente só não foi derrubado, graças à proximidade das eleições marcadas para o final de 2018.

Imprensa: desenho de Calixto Cordeiro (1877-1957).

O movimento serviu ainda para destacar a rápida mobilização da população feita através de mecanismos de comunicação móveis. Com a ajuda de programas de troca de mensagens dos dispositivos móveis, os caminhoneiros puderam se comunicar com colegas e familiares, a fim de se atualizarem sobre a situação e obterem recursos para manutenção da greve. O uso dessa tecnologia avançada desorientou os meios de comunicação tradicionais e a própria rede mundial de computadores que permaneceram desinformados sobre como era feita toda mobilização. Por conta disso, a divulgação de notícias falsas sobre a paralisação, com intuito de desmoralizá-la, revelou a forma como esses meios são empregados para manipulação da opinião pública. Porém, a comunicação direta dos manifestantes com a população permitiu desmascarar a trama fantasiosa de um jornalismo arcaico que ainda se acha capaz de influenciar o pensamento dos outros, como faziam os antigos oligopólios de comunicação antes do advento da INTERNET.
Todo tipo de especulação foi lançado pelos pseudointelectuais e comentaristas desinformados, expondo seu despreparo em contraste com a eficácia da manifestação dos caminhoneiros autônomos, em escala continental. A imprensa marrom e seus supostos especialistas caíram mais uma vez em descrédito. Acostumados que estavam em apenas reproduzir comunicados de assessorias de imprensas de políticos e seus patrocinadores, sem o contraditório direto das partes envolvidas.

David com a cabeça de Golias (1610), Michelangelo da Caravaggio (1571-1610).

A vitória do movimento dos caminhoneiros autônomos serviu, por fim, para demonstrar, no plano teórico, a superioridade do individualismo metodológico sobre o método sociológico. Sem o controle de sindicato, de patrão ou de um líder heroico, cada um dos caminhoneiros provou que foram seus interesses individuais e não os coletivos de um grupo que motivaram sua mobilização. Foram o custo do frete de cada um e seus prejuízos individuais que os levaram à greve, não a vontade de uma entidade classista imposta de cima para baixo.
A paralisação foi, portanto, uma resposta dos principais consumidores de combustíveis ao achaque diário, ao qual vinham sendo submetidos pela política de preços imposta pelo monopólio estatal. A demonstração de que os indivíduos organizados conseguem vencer qualquer grupo monopolista, por maior que este seja.