Um Conceito a Definir

A definição do termo “populista” continua como uma questão aberta pelo simples fato de não haver um objeto concreto a preencher todos os quesitos para formação de um conceito específico. A principal dificuldade dessa tarefa decorre da ausência completa de uma teoria ou mesmo um movimento político ideológico coerente o suficiente, do qual se pudesse extrair alguma orientação correta. Resta, então, observar os casos aos quais se costuma atribuir o “populismo” a uma corrente política determinada ou ao comportamento de uma personalidade tipificada como tal. A partir dos pontos comuns existentes em tais condutas se chegará, por indução, a uma conclusão acerca do que se quer dizer quando se detecta em alguém um caráter “populista”.
Nesse sentido, um artigo do historiador estadunidense Comer Vann Woodward (1908-1999), intitulado “Natureza e Sentido do Populismo” (1981), será útil. Neste texto, Woodward comenta o livro Populism, da cientista política inglesa Margaret Canovan, lançado também em 1981, e traça um panorama a respeito do comportamento populista, desde sua origem, no final do século XIX, até a última década do século XX.
O populismo surgiu na Rússia czarista entre 1860 e 1870 com a formação do partido Narodnik (do Povo). O chamado narodismo concebia uma idealização da vida do campo por parte de intelectuais urbanos inspirados pelo romantismo rousseauniano, quando propunham um governo com base no controle de comunidades agrárias, onde as decisões seriam tomadas por participação direta dos camponeses. Contudo, não encontravam nenhum apoio entre os agricultores. O que levou o movimento ao fracasso em duas décadas de muita propaganda. Não obstante, a falta de apoio entre os camponeses, não impediu que, nas cidades, os bolchevistas, aplicando ideias semelhantes obtivessem êxito entre os operários urbanos, anos depois.
Nos Estados Unidos, o Partido do Povo foi fundado em 1891, com a mesma conotação agrária proposta, dessa vez, por pequenos fazendeiros esquerdistas do oeste e do sul descontentes com banqueiros, industriais e as consequências do capitalismo selvagem da época. Tal como os russos, mas ignorando completamente sua existência, os populistas estadunidenses atacavam as elites e a crescente urbanização. Em 1896, depois de participarem de usa eleições presidenciais, eles se fundiram ao Partido Democrático, o que os levou a um rápido declínio e uma tentativa de retorno em 1904, que durou apenas até 1908.
Embora fossem movimentos agrários contemporâneos em sua origem, o populismo russo e o estadunidense eram independentes entre si, com um desconhecendo o outro. Além disso, os russos compunham-se de uma classe de intelectuais românticos pouco habituados à realidade cotidiana das aldeias. Enquanto, nos EUA, os próprios pequenos fazendeiros do sul e pioneiros do oeste foram os responsáveis pela autocaracterização que se faziam no partido do povo. Ambos, entretanto, tinham posturas anticapitalista e antielitista, ao mesmo tempo em que defendiam uma comunidade rural como uma espécie de democracia direta, sem a necessidade de representantes para votações de assuntos de seus interesses. Todos faziam uma idealização do povo como elemento social puro e regenerador, alheio a pressões externas. Ao passo que duras críticas eram direcionadas às elites econômicas e intelectuais, o chamado não-povo, sujeitas que eram a interesses exóticos, contrários ao da sociedade em geral [1].
Em sua fase inicial, o homem do campo era a figura que simbolizava o povo, devido sua maior proximidade aos elementos naturais e seu contato direto com a terra. Numa segunda etapa, países industrializados, com maior população urbana, tiveram políticos populistas que se voltavam para a massa trabalhadora não sindicalizada e sem especialização das cidades como principais membros do povo, ao qual também se agregavam os “pobres descamisados” e os que dependiam apenas do seu próprio trabalho para sobreviver. Apesar de usar uma retórica agressiva, no entanto, o discurso populista não faz o proselitismo da luta de classe ou revolução cultural, quando apela à dicotomia do povo contra as elites [2].
Durante os anos 1950, o populismo chegou a ser considerado o mais retrógrado comportamento político nos Estados Unidos. Woodward mencionou uma passagem do sociólogo estadunidense Edward Albert Shils (1910-1995) que considerava os populistas uma ameaça à democracia [3]. Uma visão que variou com o tempo, pois na década seguinte houve um retorno às reivindicações por maior participação popular na democracia e ampliação dos direitos civis. Canovan – que não vê o populismo como uma ameaça ao regime democrático, mas como uma sombra que surge nas oscilações da democracia entre pretensões racionais pragmáticas e uma redenção intuitiva das demandas sociais [4] – dividiu as correntes populistas em duas grandes tendências. A primeira foi a agrária e a segunda urbana, composta por diversas tendências políticas e culturais.

A propaganda populista típica do período ditatorial de Getúlio Vargas, no Brasil.

No populismo urbano, podem ser incluídos os ditadores, os reacionários, os democratas demagogos e os políticos fisiológicos, sem ideologia clara e indiferentes aos interesses de grupos sociais específicos. Os ditadores populistas são típicos da América Latina. Juan Domingos Perón (1895-1974) e Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954) são exemplos históricos de liderança carismática que tinham o apoio de grupos sociais atendidos por suas ações demagógicas, enquanto reprimiam com violência seus opositores. Os populistas reacionários – não necessariamente antidemocráticos – apelam para os valores da tradição e preconceitos arraigados na população. Invocam o passado e adotam posturas contra a racionalidade política defendida por acadêmicos liberais – tal como fazia o ex-presidente estadunidense Ronald Wilson Reagan (1911-2004). Os demagogos, por sua vez, dizem-se democratas e, por conta disso, não perdem a oportunidade de postularem uma maior participação direta do povo nas deliberações políticas. Defendem o recurso a referendos e votações populares também para cassação de mandato dos representantes políticos. Uma postura na qual se enquadravam o indiano Mohandas Karamchand “Mahatma” Gandhi (1869-1948), o pastor Martin Luther King Jr. (1889-1968) e o ex-presidente dos Estados Unidos, James Earl “Jimmy” Carter, entre outros. Os políticos fisiológicos possuem um comportamento adesista e ignoram programas partidários coerentes. Não assumem de forma firme os interesses específicos de uma determinada classe e trocam de posição para obtenção de favores. Quando no poder, não raro suas posições ecléticas ou “pragmáticas” se voltam contra os interesses prévios de seus eleitores – exemplos dessa conduta foram dados por vários políticos brasileiros, como o ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva.

Tentativa de Definição

De um modo amplo, todas as variantes populistas se identificam por um forte anti-intelectualismo e uma idealização do povo, como entidade íntegra e purificadora. O populismo prospera quando as democracias falham em atender as demandas das faixas intermediárias da população, composta por trabalhadores não organizados e sem especialização, que sofrem o impacto direto de crises econômicas e com a ineficácia dos serviços públicos [5]. A omissão dos acadêmicos e demais estudiosos, sobre o assunto, abre espaço para que os discursos encantatórios dos populistas encontrem terreno fértil para prosperarem entre aqueles que se sentem desamparados pelo governo.

“A linguagem antielitista – a retórica dos oprimidos e do homem comum – é típica de todos os populismos e provavelmente mais significativa do que acreditam os cientistas políticos” (WOODWARD, C.V. “Natureza e Sentido do Populismo”, p.58).

Diferente das tiranias, regimes totalitários e outras formas de governo que pratiquem o culto da personalidade, no populismo, o líder carismático não desempenha seu papel de forma planejada ou sob a orientação de uma doutrina prévia sem contradições – seja de esquerda ou direita. O governo populista é exercido de forma personalíssima com base na intuição política de um homem forte, em torno do qual é formado. Por essa razão, a aparência amorfa do populismo fica evidente diante outros modelos de organização política, que neste caso se sujeita à inconsistência, contradições, amadorismo e decisões insustentáveis a longo prazo.
O líder populista age por instinto ao atender as demandas imediatas de seus eleitores. Na falta de um projeto político claro, por vezes, suas ações acabam se mostrando inviáveis. Quando isso ocorre, todos os seus erros e imperícia são atribuídos à forças ocultas externas que conspiram contra o governo. Geralmente creditados às elites poderosas e grupos de estrangeiros que morem no país.
Ao contrário de outros regimes autoritários, o populismo não segue um planejamento teórico ao qual se pretenda uma aceitação universal de suas propostas. Por conseguinte, não procura se expandir além das suas fronteiras nacionais. Suas metas, em particular, não são voltadas para outros povos, raças ou classes, nem buscam um domínio regional, muito menos mundial. As práticas populistas limitam-se ao território nacional, independente de uma integração com outras nações. Além disso, distingue-se de movimentos nacionalistas liberais históricos, por não ter uma concepção teórica de nação ou pátria e seu papel no cenário internacional. No populismo, a nação é reduzida ao grupo de pessoas identificado com o processo político vigente dentro de determinadas fronteiras. Não trata, portanto, de pregar a supremacia uma etnia ou camada econômica da sociedade em especial, como ocorre nos regimes totalitários. Embora compartilhem de uma história idealizada e valores comuns vividos em um determinado território o nacionalismo populista serve para propaganda interna criar uma imagem que atenda à autorrepresentação daquilo com que o chamado povo se identifica.
Na maioria dos casos, o populismo não põe a democracia em risco, a ponto de destruí-la, contudo o oportunismo e a tentação de se manter no poder a todo custo engendram golpes de estado – como os exemplos históricos da América Latina. Efetivamente, durante a II Guerra Mundial, governos populistas da região tomaram rumos opostos em suas participações no conflito. O Brasil, depois de flertar com os regimes totalitários do Eixo, acabou aderindo aos incentivos econômicos das forças aliadas. A Argentina, por seu turno, alegou uma neutralidade, que mal disfarçava sua preferência pelo modelo nazifascista. Raras vezes, um movimento populista sobrevive à morte de seu líder carismático. Para continuar a existir, o peronismo, na Argentina, teve de se transformar em partido político, cuja ideologia se resume à figura, cada vez mais desbotada na memória, de seu mentor (Perón).
Disso tudo, conclui-se, então, com base no exame da história, que as características principais do populismo são:
  • primeiro, a divisão dicotômica entre povo e elite;
  • a presença de uma liderança carismática que toma suas decisões por intuição política, em segundo lugar;
  • a ausência de uma orientação teórica ou ideológica (à esquerda ou direita) coerente, em terceiro, o que implica a falta de um projeto político racional e abrangente de longo alcance;
  • quarto, restrição da atuação política aos limites da fronteira nacional;
  • e, por fim, atribuição de todos os fracassos de suas ações às teorias conspiratórias e “forças ocultas” (internas ou externas). Os culpados sempre são os outros.
A forma de governo mais afim ao movimento populista é a democracia direta, conforme vários aspectos do modelo suíço, sem prejuízo dos momentos em que os populistas modelaram ditaduras. Ademais, é importante notar que, apesar do apelo à “força do povo”, como fonte de suas propostas, nem sempre os populistas são eficientes na hora de obter o apoio da maioria dos eleitores. Na sua origem, o partido Narodnik foi incapaz de atrair a participação dos camponeses russos. Seu apogeu ocorreu em 1876, quando organizaram a primeira manifestação pública contra o czar, a 06 de dezembro. Porém, com a radicalização do movimento e a fundação do partido Vontade do Povo (Narodnaia Volia), em 1879, o populismo russo cedeu espaço para outros grupos mais organizados e agressivos [6]. Nos EUA, o Partido do Povo nunca ultrapassou a marca de 10% do voto popular, até vir a se fundir com o Partido Democrata. Populismo não é sinônimo de popularidade. Mesmo nos momentos de crise e vácuo político, nos quais os populistas afloram [7].

Notas

1. Veja WOODWARD, C.V. “Natureza e Sentido do Populismo”, p. 58.
2. Veja INCISA, L. “Populismo”, in BOBBIO, N. Dicionário de Política, p. 961.
3. Veja WOODWARD, C.V. Op.cit., p. 56.
4. Veja CANOVAN, M. “Trust the People! Populism and the Two Face of Democracy”, p. 16.
5. Em Achieving Our Country, o filósofo Richard Rorty (1931-2007) chamou a atenção para esse fato que poderia levar à ascensão de um homem forte à presidência nos EUA – veja RORTY, R. Achieving Our Country, p. 90. Lideranças carismáticas populistas sabem se aproveitar dessas situações para tentarem chegar ao poder com apoio do “cidadão comum”.
6. Veja FIGES, O. A People’s Tragedy, p. 147.
7. Na eleição de 1892, o candidato do partido do povo, James Baird Weaver (1833-1912), recebeu 1.027.329 votos para presidência, cerca de 9% de um total de 11.758.456 de votos populares, obtendo apenas 22 votos dos estados. Em 1896, o candidato populista à vice-presidência, Thomas Edward “Tom” Watson (1856-1922), conseguiu 27 votos eleitorais e a coligação para presidência, com o democrata William Jennings Bryan (1860-1925) na cabeça de chapa, perdeu as eleições para o republicano William McKinley (1843-1901) que venceu com 292 votos, contra os 155 de Bryan. Veja U.S Electoral College: Historical Election Results, in National Archives and Records Administration.

Referências Bibliográficas

BOBBIO, Norberto, Dicionário de política; trad. Carmen C. Varriale et al. – Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1998.
CANOVAN, M. Populism. – New York: Harecourt Brace Jovanich, 1981.
___. “Trust the People! Populism and the Two Face of Democracy”. – Oxford: Political Studies, vol. 47, nº1, pp. 2-16, 1999.
FIGES, O. A People’s Tragedy: Russian Revolution 1891–1924, – Londres: Jonathan Cape, 1996.
RORTY, R. Achieving Our Country: Leftist thought in twentieth-century. – Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1998.
U.S ELECTORAL COLLEGE: Historical Election Results, in National Archives and Records Administration. Disponível na Internet via https://www.archives.gov/federal-register/electoral-college/scores.html#1892. Arquivo consultado em 2017.
WOODWARD, C.V. “Natureza e Sentido do Populismo”; trad. Mário S. Silva. – Rio de Janeiro: Diálogo, vol. 15, nº 2, pp. 56-58, 1982.

Patriotismo de Esquerda

Na mesma época em que o cientista político britânico David Miller lançou seu livro On Nationality (Sobre a Nacionalidade, 1995), o filósofo estadunidense Richard Rorty (1931-2007) criava uma polêmica com a ala esquerda da academia de seu país que culminou com a publicação de Achieving Our Country (Conquistando Nosso País, 1998). Tudo começou com a ideia lançada no artigo “The Unpatriotic Academy” (Academia Impatriótica, 1994) – publicado no jornal The New York Times de 13 de fevereiro de 1994. Neste texto, Rorty difundiu a necessidade da esquerda acadêmica de seu país adotar os valores defendidos por personalidades históricas do porte do filósofo Ralph Waldo Emerson (1803-1882), do político Abraham Lincoln (1809-1865) ou do pastor Martin Luther King (1929-1968).
Embora reconhecesse motivos para se envergonhar dos Estados Unidos, Rorty chamava atenção para a luta por direitos civis e a consciência de uma nação que foi formada por imigrantes cuja pluralidade de valores sociais forjou uma amálgama sólida que caracteriza uma união democrática inclusiva. Ao invés de admitir a existência desse comunidade de comunidades plural, a esquerda acadêmica reivindicaria um multiculturalismo excludente que pregaria o isolamento dos grupos sociais em um mundo sem fronteiras, por mais paradoxal que isso possa soar [1].
As esquerdas atuais não notariam a contradição entre suas concepções multiculturalistas e, ao mesmo tempo, cosmopolitas. E que para conquistarem um país como os EUA, seria preciso entender a identidade nacional arraigada na esperança de construir uma democracia abrangente e duradoura. Só assim, imbuída no espírito utópico que formou a sociedade estadunidense, seria possível reformá-la e torná-la muito mais decente, tolerante e civilizada [2].
De imediato, o ensaio de Rorty recebeu ataques tanto por parte da esquerda universalista, como comunitariana. A fim de tornar sua postura mais clara, o livro de 1998 foi ainda mais enfático em suas críticas às contradições da chamada “Nova Esquerda” – aquela que teria surgido após a guerra do Vietnam (1955-1975), sob a influência de filósofos e literatos franceses e alemães. Foi, por isso, acusado pelo crítico Christopher Lehman-Haupt de praticar “intellectual bullying” (assédio intelectual), em seu alerta aos esquerdistas que ignorariam o declínio econômico dos trabalhadores. Isso faria com que os EUA se tornasse vulnerável à demagogia de um homem forte fascista [3].
Em Achieving Our Country, Rorty continuava reivindicando um retorno aos ideais patrióticos que a dita “Esquerda Reformista” defendia até os anos 1960, quando começou a perder terreno para Nova Esquerda. Naquela época, a antiga esquerda procurava conciliar os valores da constituição com os princípios de universalização dos direitos humanos. Nesse sentido, Rorty tinha em mente os exemplos do poeta Walt Whitman (1819-1852) e do filósofo John Dewey (1859-1952), nas suas concepções utópicas de uma nação de imigrantes unida por sentimentos de cidadania fraternal e amorosa, em uma religião cívil de culto a valores democráticos [4].
O orgulho nacional por seus valores, expressos nas obras de nomes influentes, evitaria que os trabalhadores afetados negativamente pelo processo de globalização ficassem a mercê de propostas demagógicas, chauvinistas e antidemocráticas. Durante 16 anos, essas categorias de pessoas ficaram fora do foco da política estadunidense. E foi só depois das eleições presidenciais de 2016 que surgiu a oportunidade para que a vitória de um homem forte, com tendências autoritárias, se concretizasse.
Rorty não fora o primeiro autor a alertar sobre essa possibilidade – como sugeriu matéria publicada no sítio jornalístico da britânica BBC em 22 de novembro de 2016 [5]. De fato, quando descreveu essa hipótese no terceiro capítulo de Achieving Our Country, ele mencionou o livro The Endangered American Dream (O Sonho Americano em Perigo, 1993), do estrategista Edward Nicolae Luttwak, no qual o autor sugeria que o fascismo poderia ser o futuro dos EUA, caso não se evitasse sua degradação social e econômica, além da perda de mercado mundial. Um processo que, na época, era chamado de “Brazilianization” [6]. Na interpretação de Rorty, o ponto principal era que os membros dos sindicatos, os trabalhadores não organizados e os sem qualificação, “cedo ou tarde perceberão que seu governo nem mesmo tenta prevenir o achatamento salarial ou que os empregos sejam exportados” [7].
Por conseguinte, os eleitores logo entenderiam que o sistema falhou e procurariam por um homem forte para os governar [8]. Os temores de então só vieram a se realizar em 2016, com a eleição do empresário Donald Trump, candidato republicano que soube aproveitar esse discurso para reunir os estadunidenses em torno de suas propostas nacionalistas e de recuperação econômica. Contudo, apesar da visão pessimista daqueles pensadores ter se efetivado, até 1999, os Estados Unidos vinham expandindo sua economia, com taxas reduzidas de desemprego, enquanto fortalecia sua presença no comércio internacional.

Os ideais iluminista fazem parte dos valores patrióticos de uma esquerda cosmopolita, desde 1789.

A crise que veio a culminar com o fechamento de fábricas, quebra do sistema financeiro e empobrecimento da população aconteceu em 2008. O panorama da sociedade estadunidense, entretanto, diferenciava muito do cenário da Alemanha da primeira metade do século XX. A comparação feita por Luttwak e assumida por Rorty não procede por vários aspectos que não vale a pena relatar por tão óbvios que são (basta mencionar a hiperinflação, a miséria extrema, destruição de guerra, regime político etc presentes em uma época, mas não na outra). Além disso, embora as pretensões de uma esquerda reformista – como a que existia nos EUA antes de 1960 – possam parecer válidas, no sentido em que um orgulho nacional em relação aos grandes nomes da história – aqueles que lutaram pela universalização dos direitos e integração dos imigrantes – representam valores justos e defensáveis, nessas circunstâncias, o patriotismo estadunidense se confunde com os ideais revolucionários franceses e iluministas, o que não se repetiria em diversos outros lugares no mundo. No Brasil, por exemplo, os poucos nomes de relevo na história não passam de mistificações criadas pela propaganda política e raramente se alinham à luta pelo direito universal, propriamente dito.
Os princípios defendidos por Whitman ou Dewey são aspirações históricas da sociedade ocidental, de um modo geral, desde a Revolução Francesa, quando surgiu a separação entre esquerda e direita. São as mesmas propostas defendidas pela esquerda cosmopolita fora dos Estados Unidos, até mesmo em países de tradição oriental, onde não cabe se falar em patriotismo ou “valores nacionais” sem contradição com os “valores universais”. Em muitos desses países, o nacionalismo e o patriotismo se aliam com privilégios oligárquicos, regimes teocráticos ou mesmo totalitários, ao invés de democráticos.
Portanto, ainda que a crítica de Rorty fizesse sentido contra a Nova Esquerda estadunidense, no decorrer dos anos 1990 e até nos anos 2010, dificilmente o argumento a favor do “patriotismo” pode ser admitido sem adaptações necessárias em relação à esquerda cosmopolita nos demais países, onde não há casos exemplares para inspirar um nacionalismo digno de ser considerado progressista. Contudo, os ideais da antiga esquerda dos Estados Unidos são os mesmos da esquerda tradicional em qualquer nação, desde 1789, e continuam de pé: liberdade, igualdade e fraternidade.

Notas

1. Veja RORTY, R. “La Academia Antipatriótica”, in NUSSBAUM, M. Cosmopolitas o Patriotas, p. 28;
2. Veja RORTY, R. Op. Cit., p.28;
3. Veja LEHMAN-HAUPT, C. “How the American Left Lost Hope”, in The New York Times, 23 de abril de 1998;
4. Veja WHITMAN, W. Folhas de Relva, p. 35 e DEWEY, J. Reconstrução em Filosofia, cap. VIII, p. 177 e ss.;
5. Veja A ‘profecia’ de filósofo em 1998 que explica vitória de Trump, disponível na Internet via http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37991064;
6. Aumento na desigualdade entre as classes sociais, veja RORTY, R. “Global Utopias, History and Philosophy”, in SOAREZ, L. Cultural Pluralism, Identity and Globalization. -Rio de Janeiro: UNESCO/ISSC/EDUCAM,1996, pp. 457-469;
7. RORTY, R. Achieving Our Country, p. 89;
8. Veja RORTY, R. Op. Cit., p.90.

Referências Bibliográficas

BBC. “A ‘profecia’ de filósofo em 1998 que explica vitória de Trump”. Disponível na Internet via http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37991064. Arquivo consultado em 2017.
DEWEY, J. Reconstrução em Filosofia; trad. Antonio P. Carvalho. – São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1959.
LEHMAN-HAUPT, C. “How the American Left Lost Hope”, in The New York Times, 23 de abril de 1998.
LUTTWAK, E. The Endangered American Dream: How to stop the United States from becoming a third world country and how to win the geo-economic struggle for industrial supremacy. – New York: Simon & Schuster, 1993.
NUSSBAUM, M. et tal. Cosmopolitas o Patriotas; trad. Guillermo Pino. – Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1997.
RORTY, R. Achieving Our Country: Leftist thought in twentieth-century. – Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1998.
SOAREZ, L. Cultural Pluralism, Identity and Globalization. -Rio de Janeiro: UNESCO/ISSC/EDUCAM,1996.
WHITMAN, W. Folhas de Relva; trad, Luciano A. Meira. – São Paulo: Martins Claret, 2005.

Determinismo e Liberdade Humana

Filosofia ContemporâneaUm ensaio de Roderick Milton Chisholm (1916-1999) serve como esquema para organizar a discussão metafísica entre o determinismo e a liberdade de agir, com consequências para ética.
Veja o sumário de “Human Freedom and the Self”, inserido na seção de Metafísica de Filosofia Contemporânea.