A Ciência Vista por Niels Bohr

As descobertas da física contemporânea relacionadas com o conhecimento das partículas atômicas geraram uma nova interpretação do mundo que não era possível dentro da perspectiva determinista da física clássica. A impossibilidade de se medir, ao mesmo tempo, a posição e a velocidade dos componentes do mundo atômico trouxe maiores limitações para o entendimento humano. Uma vez que tudo na natureza era composto por essas micropartículas, o desconhecimento de seu comportamento produziu uma incerteza quanto à extensão das conclusões da física quântica aos aglomerados macrocósmicos que por elas são formados.
A física quântica – também conhecida por mecânica quântica – teve origem na teoria dos quanta, apresentada por Max Planck, em 1900, onde a energia não era mais concebida como um fluxo contínuo, mas sim, como pequenos “pacotes” isolados (quantum) transmitidos em porções mínimas, abaixo das quais não era possível a sua divisão – o número exato dessa energia mínima pode ser expressa pela constante de Planck: h= 6,625 . 10-27 erg/seg. Isso implicava numa troca de energia entre as micropartículas feita através da aquisição ou perda de quanta que provocavam súbitas mudanças nas suas posições. O simples fato de se observar essas unidades fundamentais da matéria poderia interferir no resultado da medição, já que os fótons – partículas luminosas -, ou qualquer outra forma de radiação utilizada na sua localização, também portariam quanta que interagiriam com o objeto da observação, impedindo a determinação rigorosa de sua posição e velocidade. Seria impossível, então, na prática saber exatamente o que acontece na escala subatômica.
Em consequência, apesar de toda matéria existente no universo ser formada por essas minúsculas substâncias, a física clássica e a física quântica não poderiam cumprir as pretensões reducionistas de explicarem todos os fenômenos na natureza – incluindo a vida na terra e a mente humana -, por mais precisas que fossem suas experiências e seus cálculos, pois só por aproximação estatística é que suas leis poderiam, agora, serem formuladas. A limitação da linguagem empregada pela física clássica tinha de ser complementada pelo rigor das formulações matemáticas introduzidas pelos teóricos da mecânica quântica, ao lidar com os eventos do microcosmo. Fora desse domínio, a explicação da vida teria de se valer ainda dos conceitos de evolução e finalidade, que o vocabulário da física, de um modo geral, não possui. Enquanto a liberdade humana, estudada pelas ciências sociais, exigiria uma concepção desses fenômenos diferenciada tanto das teorias físicas como biológicas.

Física Atômica e Conhecimento Humano

Imagem: Niels Bohr; fonte, The Bettmann Archive.

Niels Henrik David Bohr (1885-1962) foi diretor do Instituto de Física Teórica da Universidade de Copenhague (Dinamarca). Coube a ele a adaptação do modelo atômico, segundo as novas descobertas da mecânica quântica, corrigindo e completando a imagem anterior proposta por Rutherford. Para Bohr, os elétrons descreveriam órbitas circulares ao redor do núcleo, numa “nuvem de probabilidades”, das quais algumas são estacionárias e viáveis. Nas órbitas estacionárias, não haveria emissão de energia e o elétron passaria de uma órbita para outra, absorvendo ou emitindo pacotes de energia equivalentes à diferença das energias das órbitas entre as quais ocorre a transição quântica. Por causa da descrição desse modelo do átomo, feita em 1913, Bohr recebeu o Prêmio Nobel de Física de 1922.
Mas Niels Bohr não se dedicava apenas às questões imanentes da física. Ele ajudou a divulgar os novos conceitos da física contemporânea, enquanto procurava explorar as consequências cognitivas para todo conhecimento humano das novas descobertas. Nesse sentido, ele tentava argumentar em favor de uma nova concepção de mundo e ciência, na qual os objetos não fossem separados dos pesquisadores. De acordo com sua visão, o amplo entendimento da realidade dependeria da admissão da influência do observador, qualquer que fosse a experiência, e sua interação com o que está sendo pesquisado.
Além disso, a melhor compreensão da estrutura atômica teve como produto direto a construção das bombas atômicas e dos reatores nucleares, cujo impacto ambiental não permitiria mais a omissão dos cientistas quanto ao uso indiscriminado dos resultados de suas pesquisas. Bohr teve participação direta na decisão política de se construir a primeira bomba atômica, antes que os alemães a produzissem, em meio a Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, ele sempre procurou o diálogo interdisciplinar entre a física e as outras ciências como a biologia. Seu princípio de complementaridade – que exigia que os conceitos da física clássica fossem complementados pelas fórmulas matemáticas da mecânica quântica – o próprio Bohr fazia questão de estendê-lo aos campos da biologia e do conhecimento humano. Para ele, só a totalidade das descrições da experiência natural, segundo a ótica de cada disciplina – física, biologia e psicologia – poderia esgotar e unir o conhecimento sobre um fenômeno qualquer. Isto é, ao fazer a descrição de uma experiência, o cientista escolheria uma determinada “linguagem”, ao passo que outras diferentes “linguagens” seriam complementares e necessárias para o entendimento global da realidade. Assim, um único ponto de vista não seria capaz de descrever, de modo geral, todos os aspectos relevantes do fenômeno natural.

A Unidade do Conhecimento

Os principais ensaios de Bohr, dedicados à questão do conhecimento, foram reunidos na coletânea Física Atômica e Conhecimento Humano (1958). No ensaio “A Unidade do Conhecimento”, Bohr começa por colocar a linguagem como um instrumento da comunicação científica. O maior problema no emprego da linguagem seria preservar a objetividade da teoria no momento em que as experiências ultrapassam os fatos da vida de cada um, saindo do âmbito do que pode ser imaginado pictonicamente.
As limitações dos modelos conceituais obrigaram que as pesquisas científicas, por vezes, ampliassem ou reconstruíssem seus modelos, abrangendo áreas de conhecimentos distintos, com o intuito de tornar cada vez mais precisa a descrição objetiva do mundo. Toda essa descrição segue as exigências de univocidade (para cada conceito um único objeto) da lógica formal, como um aperfeiçoamento da linguagem geral, tornando-a precisa e clara. O desenvolvimento da física partiu do conhecimento amplo de toda natureza em direção ao estudo das leis básicas da matéria inorgânica, sempre em função de uma construção lógica generalizante. Atualmente, os conceitos elementares da física têm implicação com outras disciplinas além dela mesma (1).
O aperfeiçoamento do sistema newtoniano, em relação às ideias de Galileu, possibilitou a previsão de eventos, segundo uma concepção determinista e mecânica da natureza, sem levar em consideração como o conhecimento foi obtido. De certo modo, a descrição proposta pela mecânica clássica coincidia com as noções que a maioria das pessoas tinham em seu dia-a-dia, sem a exigência de muita abstração. Com os estudos do eletromagnetismo e da ótica, a perspectiva do observador passou a ser relevante em diversos momentos da experiência. A teoria da relatividade proposta por Einstein, mostrou que a posição do observador era importante para a exata compreensão da trajetória da luz, introduzindo abstrações matemáticas, até então, pouco conhecidas que aumentaram o domínio da descrição objetiva.
Simultaneamente, o desenvolvimento das teorias atomísticas, por sua vez, proporcionou uma melhor explicação dos fenômenos químicos e da interação entre os átomos e as moléculas. A teoria atômica contemporânea revelou a possibilidade de produção de uma quantidade enorme de energia armazenada nos núcleos atômicos. Com a descoberta do quantum ficou evidente a idealização das teorias físicas clássicas, que desprezavam a sua influência nos fenômenos de larga escala, enquanto que, nas dimensões do átomo, se desafiava a imagem determinista preconcebida. Uma descrição coerente desses fenômenos só foi realizada com o formalismo das abstrações matemáticas, de caráter estatístico, que não correspondiam aos padrões clássicos. Isso proporcionou o esclarecimento dos dados experimentais, afastando a ideia do determinismo. Para tanto, foi preciso que a interação entre os objetos e instrumentos de medição tivesse uma explicação clara apoiada numa terminologia física adequada.
O princípio de indeterminação, proposto por Werner Heisenberg, mostrou a incerteza na determinação das variáveis de velocidade e posição, indispensáveis para definição do estado de um sistema físico. Ou seja, a determinação do curso de um fenômeno só seria possível por meio da probabilidade relativa aos desdobramentos de cada experiência em circunstâncias particulares. Para serem concebidos nos moldes da física clássica, tais fenômenos deveriam ser auxiliados por termos complementares que levassem em conta a influência dos instrumentos de medida nos sistemas físicos, chamando atenção para as condições da observação, que nunca é imparcial na natureza. Ao contrário de ignorar esse envolvimento do observador com o objeto, a mecânica quântica restabelece o rigor da lógica de investigação esquecido pela física clássica (2).
Para Bohr, as consequências epistêmicas dessas novas abordagens da física iam além do domínio desta ciência específica. As características deterministas e reducionistas da física clássica esbarrariam em diversas dificuldades, em face das novas descobertas. A primeira dificuldade estaria na classificação dos organismos vivos como fenômenos naturais. As ciências clássicas tinham uma descrição inteiramente mecânica da natureza. Só nos anos 1950, a relação entre o funcionamento dos organismos e as regularidades quânticas pôde ser feita. Descobriu-se que as moléculas orgânicas, base da vida, seguem as regularidades apontadas pelas leis estatísticas da física quântica. A atenção voltada para complexidade desses sistemas forneceu uma explicação mais objetiva sobre a autorregulação dos organismos vivos.
Bohr acreditava que as demandas explicativas sobre a origem da vida podem ser atendidas pela descrição complementar aplicada à pesquisa biológica, tendo como apoio a física, a química, ao lado da noção de integridade dos organismos vivos que levam em conta conceitos não fornecidos por essas disciplinas, tais como finalidade, evolução, adaptação, função etc. Ao tratar de comportamentos de organismos tão complexos, palavras como instinto e razão indicam uma interpretação que vai além da mera descrição fisiológica. Para obter-se uma explicação complementar desses fenômenos, é preciso que se utilize diferentes conceitos elementares, relativos a cada tipo de interpretação. A dificuldade de se alcançar uma imagem que caracterize conceitos psíquicos e biológicos, como consciência e desejos, são análogas à impossibilidade de interpretação pictórica do formalismo quântico, baseada numa concepção não determinista da natureza. Quanto mais aumentam os problemas e a complexidade, os conceitos simples da física perdem sua aplicação, sendo maior ainda as dificuldades ligadas à explicação das características dos seres vivos e do funcionamento da mente.
No caso do livre arbítrio, a postura determinista exclui a possibilidade da ideia de liberdade. Todavia, os seres vivos têm a capacidade de adaptar-se ao meio ambiente, o que induz uma concepção de escolha dos meios adequados para um fim qualquer. Até hoje, a física nada acrescentou de esclarecedor sobre esses assuntos. Na prática, não é ilógico falar de livre arbítrio para que se possa dar conta de temas como responsabilidade e esperança que são fundamentais para a comunicação humana (3).
Mesmo no âmbito das artes, um paralelo pode ser traçado com a nova postura científica em relação à unidade do conhecimento. Os artistas lembram que a análise sistemática de um fenômeno pode deixar de lado harmonias que estão fora de seu alcance. O modo de expressão artístico vai além da comunicação humana, dando margem a uma liberdade de manifestação, enquanto relaciona as diversas situações mutáveis observadas e une “emocionalmente múltiplos aspectos do conhecimento humano” (4). Para Bohr, a ciência procura construir um conjunto sistemático de conceitos apropriados ao entendimento, visando aumentar a gama de experiências. Já a arte procede de um esforço intuitivo e individual para abranger toda situação observada, através da exposição dos sentimentos. Nestes, como em outros campos do saber humano – incluindo a religião e a política -, a dupla função de ator e espectador faz do ser humano um ser que precisa lhe dar com exigências de imparcialidade e envolvimento, por parte da comunidade, cuja descrição complementar apresenta os limites flexíveis na avaliação da conduta e do conhecimento.
Para concluir, Bohr faz um apelo não reducionista de compreensão da natureza:

(…) essa atitude pode ser resumida pelo empenho em adquirir uma compreensão harmoniosa de aspectos cada vez mais amplos de nossa situação, reconhecendo que nenhuma experiência é definível sem um arcabouço lógico, e que qualquer aparente desarmonia só pode ser eliminada por uma ampliação apropriada do quadro conceitual (BOHR, N. Ibdem, ibdem, p. 104).

Notas

1. Veja, BOHR, N. “A Unidade do Conhecimento”, in Física Atômica e Conhecimento Humano, p.85/87.
2. Veja BOHR, N. Op. Cit, idem, p. 87/95.
3. Veja BOHR, N. Idem, ibdem, p. 93/100.
4. BOHR, N. Ibdem, ibdem, p. 101.

Referências Bibliográficas

ASIMOV, I. Gênios da Humanidade. – Rio de Janeiro: Bloch, 1974.
BOHR, N. Física Atômica e Conhecimento Humano; trad. Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1995.
HEISENBERG, W. A Parte e o Todo; trad. Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
PENROSE, R. O Grande, O Pequeno e a Mente Humana; trad. Roberto L. Ferreira. – São Paulo: UNESP/Cambridge, 1998.
PLANCK, M. Scienza, Filosofia e Religione; trad. Filippo Selvaggi. – Milão: Fratelli Fabbri, 1973.

Computação e Evolução na Mente de Pinker

A ficção científica, na literatura, cinema e televisão, está repleta de robôs, cujas características humanoides os permitem executar com precisão qualquer tipo de tarefa. Por vezes, esses famosos robôs superam a eficiência ou inteligência humana. O estudo da mente humana, entretanto, tem mostrado não ser nada fácil construir tais máquinas inteligentes. O máximo que se conseguiu até hoje foi que robôs realizassem trabalhos rotineiros de uma linha de montagem industrial.
Diferente da inteligência artificial (IA), que procura simular um modelo de mente voltado para solução de problemas cognitivos considerados “superiores” -os teoremas lógicos e matemáticos, por exemplo- a natureza procurou formar a mente humana de modo que pudesse resolver não só os problemas linguísticos, mas também as dificuldades “inferiores” relacionadas com a percepção, locomoção e compreensão do contexto em que o corpo vive.
Tudo isso é obtido sem, no entanto, estar apoiado num princípio único capaz de gerar a inteligência numa matéria inanimada, seja ele o sopro divino, a alma, a cultura, a linguagem ou a complexidade de uma rede neural. O desafio tecnológico a ser enfrentado pela IA consiste no entendimento das atividades mentais em suas funções rotineiras, que permitem ao organismo superar os obstáculos impostos pelo meio ambiente competitivo, com relativo sucesso (1).

Um Simples Problema

Steven Pinker – ex-diretor do Centro de Neurologia Cognitiva do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), atualmente trabalha na Universidade Harvard -, em sem volumoso livro Como a Mente Funciona (1997), deixa de lado os problemas matemáticos considerados superiores para focalizar aquelas habilidades simples que os seres humanos demonstram no seu dia-a-dia, isto é: ver, andar, pegar um objeto, reconhecer coisas e pessoas, além de projetar o tipo de vida que lhe seja mais adequado.
Eventualmente, para fazer com que máquinas enxerguem o mundo, uma teoria da visão artificial empregará métodos estranhos à concepção natural de percepção. Não obstante, para que um robô seja capaz de ver, a visão precisa ser entendida como um processamento de informação pelo qual qualquer sistema visual -artificial ou natural- pode delimitar os objetos ante o fundo e estar apto a interpretar seus arranjos diferentes, mas possíveis, em diversos cenários. Para tanto, a mente deve aprender a inferir um mundo tridimensional a partir de dados bidimensionais obtidos pelo órgão da visão, bem como a incidência da luz sobre um objeto específico. A quantidade de luz pode fazer com que uma coisa escura pareça mais clara que outra, dependendo da luminosidade do ambiente e da fonte luminosa. Para não ser enganado toda vez que haja mudança na luz, o sistema visual deve poder identificar uma imagem nas mais diferentes condições.
Além disso, a profundidade é outro problema a ser superado. Um objeto mais próximo parece maior que um outro posto a distância sem o ser deveras. O reconhecimento da forma de uma figura também precisa ser bem definido, a fim de que um elemento seja destacado do conjunto no qual se misturam outros, num contexto real. De alguma maneira, o cérebro humano consegue reconhecer rostos e coisas diversas nas mais diferentes situações em que são apresentadas, embora nem todas.
Contudo, não só na percepção visual o cérebro tem de superar desafios. A locomoção sobre duas pernas obriga o enfrentamento de obstáculos naturais que desafiam o cérebro a encontrar o equilíbrio perfeito para cada tipo de terreno. Entre os difíceis cálculos exigidos para a locomoção, a mente procura manter o movimento harmônico, dentro da área definida pelos pés, evitando que o corpo caia, ao mesmo tempo em que otimiza a movimentação, no intuito de diminuir o desperdício de energia e esforço dos músculos e articulações ao caminhar. A precisão dos gestos, também é algo que precisa ser controlado pelo cérebro e toda essa versatilidade na locomoção foi obtida através de um processo evolutivo natural, ainda ininteligível em seus detalhes à compreensão dos pesquisadores.
Fazer com que uma máquina consiga executar todas operações intelectuais enquanto se move e percebe o mundo, passa a ser um embaraço que não admite soluções miraculosas passíveis de ser reduzidas à uma porção mágica expressa por uma fórmula específica. A própria formação de conceitos em categorias distintas impõe empecilhos a definições precisas nos casos limites, entre categorias adjacentes. O bom senso na delimitação de um objeto conceitual ainda não está de todo esclarecido a ponto de ser reproduzido em outro mecanismo que não o humano.
A escolha das características fundamentais que constituirão a definição de um conceito e, por conseguinte, as regras de aplicação de tais conceituação não foram, ao longo de mais de dois mil anos de debates filosóficos, passíveis de um consenso. Os efeitos colaterais dessas decisões e os vários fatores a serem considerados tornam o próprio raciocínio resistente a qualquer determinação programática. Saber distinguir, num contexto específico, de todos eventos possíveis, aquele que seja o mais relevante é outro aspecto da cognição que ainda não foi bem caracterizado.
Tudo isso revela que não só os problemas tecnológicos são obstáculos à construção de robôs, como os da ficção, mas mostra também o quanto será trabalhoso esclarecer como as pessoas normalmente são hábeis em enquadrar um conceito, numa circunstância correspondente. Por outro lado, ao efetuarem um raciocínio, as pessoas são estimuladas por interesses particulares que motivam a tomada de decisão por agir bem ou mal, segundo regras de comportamento ético.
Para ser inteligente como um ser humano, os robôs deverão ter interesse pela auto-preservação, por obedecer às leis e evitar o mal. Tal como estão, as máquinas inteligentes são incapazes de reconhecer qualquer maldade ou de realizá-las. Todo o mal que elas possam fazer deve ser, necessariamente, incorporado ao programa pelo programador humano. Este sim, habilitado a conhecer o bem e o mal; o certo e o errado. Pois ter iniciativa própria, ser agressivo ou não, só depende dos motivos instalados na mente. A noção de altruísmo exige um cálculo, cuja equação nenhum matemático soube até agora como proceder (2). Duplicar a bondade, tal como a maldade e o amor exige um programa ainda não de todo entendido em suas linhas de comando indispensáveis.
Muitos fatores intervêm na formação da mente. Um mecanismo complexo está por detrás da montagem da inteligência e a IA tem demonstrado isso nas séries de dificuldades que são exigidas toda vez em que se tenta construir uma máquina que imite a cognição humana. Os casos neurológicos têm mostrado, paralelamente, as especializações de cada área do cérebro e as sequelas de quando se sofre uma lesão qualquer.
Sobre outro aspecto, o comportamento humano parece ser determinado geneticamente, sendo pouco flexível à influência do meio. Apesar disso, tudo indica que os padrões mentais são capazes de se moldarem em estruturas diversas, o que diferenciaria mesmo os gêmeos idênticos uns dos outros (3).

Engenharia Reversa

Diante dessa complexa estrutura da mente, Pinker tenta defender a concepção de um sistema de órgãos computacionais, projetados pela seleção natural para resolver os problemas de sobrevivência e reprodução, impostos por um ambiente competitivo. A cognição seria, então, uma atividade cerebral na qual são processados informações de modo computacional. Vários módulos ou órgãos mentais estariam destinados a enfrentar problemas específicos de interação com o mundo. Para isso, um programa genético seria montado com o objetivo de maximizar o número de genes copiados que seriam transmitidos às futuras gerações.
No entanto, o método apropriado para esclarecer essa perspectiva evolucionista e computacional da mente seria praticado pela engenharia reversa. Isto é, através da compreensão das funções de cada peça de um produto acabado, procura-se entender o projeto pelo qual ele veio ser constituído. A mente humana seria o resultado dessa história evolutiva que apenas uma visão retrospectiva ajudaria a explicar como ela acabou por ser construída, até atingir o estágio em que se encontra no presente.
Toda história das descobertas biológicas e das ciências naturais, em geral, tem seguido, intuitivamente, esse tipo de estratégia. A partir da observação do estado atual da matéria, procura-se decompô-la nas diversas partes que compõem o objeto estudado, a fim de delinear a trajetória que permitiu a sua existência como tal. Daí a necessidade de investigar a mente por meio de uma teoria evolutiva.
No estudo da mente, o cérebro tem um papel essencial, embora toda essa atenção se deva ao que ele faz e não propriamente a sua constituição física. A rigor, o processamento de informações, em suas relações lógicas, independem do meio operante. Um programa de computador pode rodar em diversos aparelhos diferentes. A teoria computacional veio explicar como causas imateriais podem provocar eventos físicos. As informações são expressas por símbolos que estão relacionados a estados físicos da matéria, como nos componentes do computador ou neurônios cerebrais. Crenças e desejos podem, então, ser interpretados como informações processadas pelo cérebro, que age segundo padrões conectivos diferenciados. A disposição e configuração neural representa o padrão programático a ser empreendido pelo cérebro. Entretanto, há diferenças inerentes à matéria que permitem certos programas serem operados de uma maneira em circuitos neurais e de outra em silício. Apesar dessas diferenças óbvias, os princípios que explicam a inteligência nas máquinas e nos organismos vivos são os mesmos. A teoria computacional tenta mostrar como a evolução da mente, pela seleção natural, permitiu montar um programa tão complexo como o comportamento humano.
A mente não é um órgão único -afirma Pinker. Ela é um mecanismo funcional dedicado aos assuntos humanos formado por vários sistemas especializados. De fato, nem todas as tarefas podem ser solucionadas pela mente. Esta esteve ocupada em resolver os problemas de percepção, locomoção, deliberação e motivação enfrentados pela espécie humana, durante sua evolução. Seu programa teve de ser construído pela compreensão dos desafios que lhe eram apresentados. Nessa tarefa de engenharia reversa, o processamento de informação foi repartido em diversos módulos especialistas que tratavam de interpretar retrospectivamente o obstáculo a ser superado.
Assim, uma regularidade na natureza proporcionou o estabelecimento de padrões que, na maioria dos casos era eficaz, embora fosse vulnerável a situações não previstas. Cada módulo especializado dedicou-se a um função respectiva. Tudo isso, no intuito de promover a reprodução segura dos genes individuais. Esses módulos apoiam-se num hábito que não se sustenta, logicamente, pois toda essa especialização ocorre devido às informações contingentes disponíveis na natureza. Tais informações, não necessariamente constituem a disposição definitiva do mundo.
Em suma, cada órgão mental forma uma estrutura especializada para uma função específica. A interação entre eles não permite o estabelecimento de fronteiras nítidas. Todavia, eles indicam que a mente humana não é uma massa homogênea nem informe. Ao contrário, ela possui uma configuração heterogênea com muitas atividades localizadas em áreas especiais do cérebro (4).
O código genético é responsável pela anatomia do corpo humano. O cérebro faz parte dessa constituição física e, como tal, seus órgãos mentais também são definidos pelo genoma humano. Para construir um robô que venha a reproduzir as atividades cognitivas se faz necessário um sistema computacional desenvolvido no intuito de resolver diversos problemas, do mesmo modo pelo qual o programa genético veio a ser formado na natureza.
Isto quer dizer que o programa desenhado pela seleção natural formou a base universal que tornou possível a criação dos diversos tipos de cultura existentes. Ou seja, todas sociedades e maneiras de viver humanas possuem uma estrutura inata. Portanto, a distinção entre processos de aprendizagem social e desenvolvimento mental, na concepção de Steven Pinker, é uma falsa dicotomia. Afinal de contas, a mente consiste numa estrutura tão rica e flexível que a suposta interação entre o mecanismo físico e social não faz sentido.
Contra uma equivocada noção de “tábula rasa”, deve-se admitir que os seres humanos são dotados de um mecanismo inato capaz de aprender tudo que lhe for pertinente. Todo esforço explicativo, nesse contexto, está voltado para o entendimento de como a mente funciona ou o que a faz funcionar melhor. Nesse último caso, a atenção volta-se para a relação causal implicada na qualidade das ações resultantes de uma deliberação.
Entretanto, ainda que algumas atividades mentais possam ser realizadas melhor por algumas pessoas e não todas, existe um modo básico que todas as mentes normalmente montadas conseguem exercer sem muita dificuldade. Vários genes concorrem para que uma tarefa seja adequadamente estruturada, embora a má formação de apenas um deles possa prejudicar todo o comportamento do organismo. Para o bom funcionamento do cérebro, é preciso que todas informações necessárias estejam disponíveis. Os genes operam com objetivo de montar o equipamento adequado para lidar com elas e mais tarde essas informações internas, junto com as externas, permitirão ao cérebro terminar seu processo de construção sozinho, ao mesmo tempo em que um programa é desenvolvido. Assim, cada cérebro pode forma-se individualmente com as informações básicas vindo ligar as conexões indispensáveis para o funcionamento dos módulos mentais, nos momentos críticos.
Tudo isso é fruto da seleção natural que delineou um projeto específico com as soluções bem sucedidas que ocorreram durante a história da espécie e foram registradas no código genético. Por tentativa e erro, ou pelo método “gera-testa”, as funções específicas e as gerais puderam chegar ao estágio no qual a mente se encontra hoje. Por isso, toda interpretação, sobre o funcionamento cognitivo, só pode ser oferecida a posteriori. Mas o seu acerto reside na melhor explicação do porque do processo evolutivo ter ocorrido de um modo e não de outro. Muitas vezes, a melhor teoria adaptacionista tem de recorrer a especialistas fora do domínio da psicologia. As especializações precisam ser testadas com o propósito de comprovar a possibilidade da mente humana ter de fato sido desenvolvida da maneira que se descreve. Assim, pode-se entender todas as reações mentais típicas da espécie, como enjoos na gravidez ou durante deslocamentos em veículos, por exemplo.
A evolução permitiu que os seres humanos se diferenciassem das outras espécies assemelhadas, graças à elaboração de um programa diferente e fácil de adaptar-se às mudanças ambientais. Enquanto o corpo humano manteve uma anatomia próxima à dos primatas, sua mente pôde ser mais facilmente alterada, a fim de equipar a espécie com habilidade específicas que a permitisse ocupar um espaço adequado para sua sobrevivência, na natureza. A especialização do cérebro humano foi que tornou o homo sapiens uma espécie “especial”.
Todavia, isso não significa que a seleção natural seja a responsável por todo tipo de comportamento do indivíduo. Se o controle dos genes fosse absoluto, não seria possível a cada um fazer escolhas não adaptativas. Tudo indica que, apesar da anatomia ter sido toda formada a partir do genoma, o comportamento seja resultante do confronto de disposições internas dos órgãos mentais com as diversas opções que lhe são apresentadas pelo meio externo. A luta entre a vontade e a determinação mostra que o genoma não pode definir todas atribuições do indivíduo, pois, se assim fosse, a própria adaptação estaria comprometida toda vez que uma mudança abrupta na natureza envolvesse um organismo pronto e acabado, inflexível às novas exigências do meio.
Na explicação retrospectiva da mente, é preciso apontar qual seu principal objetivo. A seleção natural induz a meta da replicação do gene, isto é, o cérebro seria constituído de tal maneira, a fim de promover a reprodução da espécie. Do ponto de vista genético, o fim último seria a reprodução: a sobrevivência do gene. Por outro lado, para que isso aconteça primeiro o indivíduo deve sobreviver. Em consequência disso, algumas concessões tiveram de ser feitas pela espécie aos seus membros. Estes, entretanto, conforme as circunstâncias, podem assumir interesses particulares, nem sempre concordantes com os objetivos gerais dos genes. Tal fato, explica os conflitos que surgem pela possibilidade do livre-arbítrio, atributo peculiar dos homo sapiens. É o preço que a seleção natural paga pela geração de um programa flexível e aberto na espécie humana (5).

A Disputa Teórica

O monopólio sobre a melhor teoria da mente levou filósofos, psicólogos, sociólogos e biólogos a travarem uma luta acadêmica extremada -por vezes, física-, para que suas perspectivas particulares prevalecessem. Quando os biólogos passaram, desde Charles Darwin, a mobilizarem a teoria evolutiva, como base explicativa da ciência cognitiva, os cientistas sociais reagiram de modo veemente, provocando um debate ideológico pouco esclarecedor.
Os interesses envolvidos provocaram até mesmo alterações fraudulentas, no resultado de pesquisas; pedidos de censura e agressões por parte dos sociólogos. Devido a concepções equivocadas sobre a origem das espécies, tais como a vinculação da estrutura inata a posturas discriminatórias de regimes totalitários; ou a predestinação de comportamentos que seriam imutáveis por estarem associados aos genes e, por conseguinte, tornarem os indivíduos sem responsabilidade moral. Tal crítica mostrou-se vazia quando as questões morais e científicas foram encaradas com seriedade, o que permitiu o entendimento adequado dos acontecimentos biológicos.
Costuma-se atribuir uma postura política conservadora aos defensores do inatismo e uma progressista aos teóricos da “tábula rasa”. Porém, de ambos os lados ideológicos, pode-se encontrar políticas insustentáveis moralmente e cientificamente, pois a distorção que fazem da natureza humana leva a afirmações a favor da discriminação tanto por parte da direita como da esquerda no espectro político. Ao lado de Hitler, podem ser listados Stalin, Pol Pot e Mao Tse-Tung (6).
A observação da natureza humana mostra que nenhuma característica genética isolada é suficiente para justificar a discriminação, pois não há diferença relevante que possa ser detectada no projeto do organismo. As variações existentes decorrem do processo de montagem, ao longo das histórias da vida de cada um. A estrutura universal da mente é algo que pode ser comprovada pela experiência. A despeito das diferenças percebidas na anatomia dos diversos grupos étnicos e comportamentais, o funcionamento da mente é idêntico a todos, de acordo com a habilidade de cada órgão mental inerente à espécie humana. As diferenças orgânicas quanto ao sexo, por exemplo, dizem respeito apenas ao comportamento voltado à reprodução de um modo geral e não às funções cognitivas propriamente dita. Toda diferença recai sobre as informações externas que moldam o cérebro dos indivíduos em vida. Tais modificações são passíveis de uma análise moral.
Doutro ponto de vista, os defensores de uma natureza humana homogênea concordam que não há nada de moral em sua constituição fisiológica. Pois com adverte a falácia naturalista, revelada pelo filósofo inglês George Moore, no início do século XX, o fato de ser assim não implica que algo deva ser assim. Não há moral na natureza. A anatomia da mente humana não é boa nem ruim. O que a teoria evolutiva faz é enfocar como o comportamento humano pode ser compreendido à luz de sua história natural. Ao conceber a mente como uma estrutura natural complexa, a explicação evolucionista abre espaço para o debate ético que possa reverter uma possível tendência indesejável nos seres humanos. A natureza permite que haja o livre-arbítrio, com objetivo de que os indivíduos escolham a melhor maneira de sobreviver e, se possível, manter a espécie, replicando seus genes (7). Como Pinker argumenta, “(…) felicidade e virtude nada têm a ver com o que a seleção natural nos projetou para realizar no meio natural. Cabe a nós determiná-las” (8).

Entender e Perdoar

O fato de saber-se que os genes podem de algum modo influenciar o comportamento humano não é o bastante para desculpar todas as condutas consideradas imorais. Afinal, o que a teoria evolutiva faz é apenas explicar uma atitude e não a justificar. Em outras palavras, os genes, a configuração do cérebro, suas substâncias químicas, o processo de socialização e os interesses de cada indivíduo fazem parte de uma complexa interação que muitas vezes são mobilizados na defesa de práticas equivocadas, como exemplificam as várias argumentações empregadas em casos jurídicos em favor do réu, baseadas nas ciências biológicas e sociais.
A despeito de qual seja a causa de uma ação, a teoria moral deve encontrar uma maneira de atribuir responsabilidade às pessoas sem ter a vontade livre constantemente ameaçada pelas descobertas científicas. Ciência e ética tratam o mesmo problema de perspectivas diferentes. Enquanto a primeira está preocupada com as relações causais do comportamento, através do estudo da matéria, a segunda procura avaliar as ações e suas consequências sem recorrer a instâncias físicas. A ética parte de idealizações que possibilitam a compreensão do valor moral de sua conduta. Essas idealizações, para serem inteligíveis, precisam estar aproximadas com o que acontece no mundo. Apesar de diferentes, ciência e ética não podem ser excludentes. Apelar à ciência para explicar comportamentos morais pode resultar em efeitos contrários ao que se pretende, pois as hipóteses científicas estão sempre sujeitas à falsificação por outra experiência. As discussões morais devem ser sustentadas em argumentos legítimos e justos, ao invés, de teses científicas. Conforme o objetivo de cada pesquisa, os seres humanos podem ser concebidos seja como máquinas, seja como agente livre e independente.
A falsa dicotomia entre natureza e sociedade tem levado os extremados a negarem a realidade no mundo, esquecendo que a constituição complexa da mente foi moldada para reagir com o meio que a cerca. Faltam, aos cientistas sociais, provas empíricas que apoiem suas teorias, se querem enfrentar a questão natural. Suas afirmações estão baseadas apenas em modelos científicos ultrapassados pelas pesquisas atuais. Essas interpretações simplistas refletem, afinal, a confusão mental de quem as propõem. Conclusão: para Pinker, a melhor explicação psicológica sobre a cognição humana é a que esteja fundamentada nas diversas funções computacionais projetadas pela seleção natural, cujo livro Como a Mente Funciona visa, então, apresentar (9).

Notas

1. Veja PINKER, S. Como a Mente Funciona, 1, pp. 13-15.
2. Exceto John Mc Carthy que pensa ter encontrado o programa adequado para permitir aos robôs terem livre-arbítrio. Veja MC CARTHY, J. Free Will -Even for robots. Disponível na Internet via: http://www-formal.stanford.edu/jmc/.
3. Veja PINKER, S. Op. Cit., 1, pp.15-32.
4. Veja PINKER, S. Idem, 1, pp.32-42.
5. Veja PINKER, S. Como a Mente Funciona, cap. 1, pp. 42-56.
6. Em tempo, as questões políticas inerentes ao posicionamento epistemológico acerca do conceito de mente aparecem apenas no primeiro capítulo de Como A Mente Funciona. No restante do livro, esse ponto cai para o pano de fundo, que serve de cenário a sua postura cientificista, quase reducionista. Essa discussão política, entretanto, retorna em sua obra posterior Tábula Rasa, onde o debate contra sociólogos, antropólogos e relativistas, em geral, ascende ao primeiro plano.
7. Veja PINKER, S. Op. Cit, idem, pp.56-63.
8. PINKER, S. Idem, ibdem, p. 63.
9. Veja PINKER, S. Ibdem, ibdem, pp. 64-69.

Referências Bibliográficas

MCCARTHY, J. Free Will: Even for robots. Disponível na Internet via: http://www-formal.stanford.edu/jmc/, Arquivo consultado em 1999.
PINKER, S. Como a Mente Funciona; trad. Laura T. Motta. – São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
______. Tábula Rasa. – São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Correções

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Sobre Apolo e Asclépio

O comportamento incoerente e imprevisível dos deuses descrito pelos poetas e dramaturgos era motivo de crítica entre os próprios helenos. Xenófanes de Cólofon (cc. 580-460 a.C.) atacava diretamente Homero e Hesíodo por “atribuírem aos deuses tudo o que para os homens é opróbrio e vergonha” (XENÓFANES, Fragmento 11). Platão (429-347 a.C.) propunha, na sua república ideal, o afastamento dos autores mentirosos (PLATÃO. República, liv. II, 377a-383c).
Asklepio de Epidauro

Estátua helena de Asklepios exposta no museu antigo do Teatro de Epidauro. Foto de Michael F. Mehnert.

Os registros remanescentes a respeito de Apolo (Febo ou Hélios, o Sol) e Asclépio (Esculápio) são fantasiosos ao extremo. Sobre ambos, dizem terem sido cultuados como deuses da medicina, embora Apolo também fosse patrono da beleza, das artes, dos rebanhos etc. Apolo era pai de Asclépio, cuja mãe era a ninfa Corônis, filha de Flégias, rei da Tessália. Acusada de adultério, Corônis foi morta por Apolo, num ataque de ciúmes. Ao saber que ela estava grávida de Asclépio, Apolo o arrancou de seu ventre, antes que fosse cremado. Entregou-o ao centauro Quíron, para que este o educasse. Asclépio aprendeu a usar as plantas medicinais, curar os ferimentos e doenças. Com esses conhecimentos, Asclépio ressuscitou Hipólito, provocando a ira de Hades (Plutão), deus do Inferno, que reclamou um castigo a Zeus (Júpiter). Este fulminou Asclépio e, por causa disso, Apolo flechou os Ciclopes que haviam forjado o raio. Tal vingança contrariou a vontade de Zeus que, então, sentenciou a expulsão de Apolo do Olimpo. Mais tarde, porém, Apolo seria restituído de seus poderes e designado a espalhar a luz por todo universo.
Asclépio continuou sendo honrado como um deus, principalmente em Epidauro, cidade do Peloponeso, onde nascera. Por vezes, ele aparecia em sonhos como um homem barbado com um cajado. D’outro modo, transformava-se em serpente, sendo por isso representado como uma cobra enrolada num bastão, origem do símbolo da medicina.
Quando Apolo era associado a Hélios, podia proporcionar tanto a saúde como a doença entre os mortais, já que o aquecimento do Sol na natureza pode fortificar todos os seres, como causar seca e muitos malefícios. Além disso, Apolo era responsável pela transmissão das profecias, através dos oráculos proferidos em Delfos. Semelhante aos outros deuses mitológicos, sua fúria poderia impor muitos males aos homens. N’As Metamorfoses, livro VII, Ovídio (42 a.C.-18) conta de uma peste provocada pela ira de Hera (Juno). Enquanto Hesíodo (séc. VII a.C.), em Os Trabalhos e os Dias (v. 90 e ss.) atribui a origem das doenças (nouson) ao descuido de Pandora, que as deixara escapar do pote de barro, presente de Zeus a Prometeu, criador dos homens.

Referências Bibliográficas

BORNHEIM, G. A. (org.). Os Filósofos Pré-Socráticos. – São Paulo: Cultrix, 1989.
COMMELIN, P. Mitologia Grega e Romana. – São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. – São Paulo: Iluminuras, 1991
OVÍDIO. As Metamorfoses. – Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1983
PLATÃO. A República. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.