CENA muito comum em locais públicos e em particulares acontece quando pessoas beijam e lambem seus animais de estimação. O consumo de carne de caça ou mesmo de animais de corte – como bois, porcos e frangos – preparados de forma rápida, mal assados ou cozidos também ocorre com frequência. Assim como laboratórios elaboram pesquisas que manipulam vários tipos de substâncias biológicas sem pensarem nas consequências resultantes.
A proximidade entre humanos e animais domésticos fatalmente leva a troca de microrganismos entre diferentes espécies. Em culturas que passaram por fomes severas em sua história, costumam incluir em seu cardápio culinário vários animais silvestres cujas doenças são desconhecidas. Não bastasse isso, para exposição humana a novas enfermidades, vários centros de estudos espalhados pelo mundo realizam experiências de manipulação genética com potencial de uso destrutivo em armas químicas e biológicas.
A maioria das doenças tem origem em outros animais. Através da contaminação da água, por mosquitos ou pelo sangue, tratadores, caçadores ou trabalhadores que estão expostos ao ambiente selvagem vivem em contato constante com outras espécies, sujeitos a transmissão de suas moléstias. A Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (conhecida como AIDS) surgiu nas florestas da África Central, mas só foi diagnosticada em 1981 por testes feitos em pessoas no Centro Médico da Universidade da Califórnia. No ano de sua descoberta, mais de 100 mil pessoas foram infectadas de diversas maneiras, em todo mundo. Um novo tipo de malária mortal – desconhecido por todo século XX – é transmitido pelo parasita Plasmodium knowlesi, presente em macacos do sudoeste da Ásia. A Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS), por usa vez, teve sua origem localizada no sudeste asiático. O monitoramento de pessoas expostas aos animais em lugares de alta concentração viral poderia detectar o momento em que tais micróbios atingem a espécie humana, permitindo a prevenção e disseminação de novas pandemias (ver WOLFE, N. “Waiting for ‘The Final Plague'” e “How to Prevent a Pandemic”).
Ao longo de milhares de anos de história, a China passou por vários períodos de fome e peste. O mais recente ocorreu durante a implantação do regime totalitário de Mao Tsé-Tung (1893-1976) pelo Partido Comunista da China (vulgo PCC), entre 1958 e 1962. Ficou conhecido como A Grande Fome. Estima-se que o número de mortes por fome e doenças tenha chegado a 45 milhões de chineses. Os que sobreviveram e não faziam parte da nomenklatura do PCC se alimentavam de insetos, pequenos animais como ratos e sapos, nas condições mais degradantes possíveis. Por conta disso, diversas moléstias se espalharam na população mais pobre, desde diarreia a tifo. A culinária chinesa incorporou muitos pratos com todo tipo desses animais. O Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, em Wuhan, capital da província de Hubei, região central da China, além de peixe, tornou-se famoso por vender carne de animais selvagens e exóticos, graças à demanda por esse tipo de refeição pela cultura chinesa. Mais de 112 itens, incluindo morcegos e cobras, são oferecidos ao publico nesse local. Devido a suas condições insalubres, foi considerado responsável pelos primeiros casos de pneumonia causados pelo vírus SARS-CoV-2, no final de 2019 (ver DIKÖTTER, F. A grande fome de Mao, part. 6, cap. 32 e WIKIPEDIA, Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan).
Enquanto alguns pesquisadores trabalham para formar uma rede mundial de monitoramento de novas doenças, outros cientistas procuram criar novos patógenos passíveis de disseminação. Em 2014, o Laboratório Chave de Patógenos Especiais e Biossegurança, do Instituto de Virologia de Wuhan, colaborou com outros institutos estadunidenses e suíço na criação do primeiro vírus quimérico em laboratório. A transformação foi feita a partir da manipulação do sistema genético do coronavírus SHC014-CoV, encontrado em morcegos-ferradura chineses. Isso resultou em um potente agente infeccioso, resistente à vacina e imunoterapia, em ratos e, potencialmente, em humanos (ver MENACHERY, V.D. et al. “A SARS-like cluster of circulating bat coronaviruses shows potential for human emergence”, p.1508).
Conscientes dos perigos em torno dos coronavirus (CoVs) presentes em morcegos, cientistas chineses do laboratório de Wuhan empreenderam uma pesquisa na qual catalogaram os diversos patógenos existentes nesses animais, na China. Nos últimos 14 anos, pelo menos, duas epidemias de CoVs transmitidas por morcegos causaram grandes estragos na população e economia chinesas.
Figura 1 – Reprodução de mapa de distribuição de CoVs e seus respectivos morcegos hospedeiros, na China, encontrado na resenha “Bat Coronaviruses in China”. A província de Guangdong circundada em vermelho foi onde começaram duas epidemias de SARS e SADS, anteriores a do Covid-19.
(…) A maioria dos CoVs podem ser encontrados na China (…). Além do mais, a maioria dos morcegos hospedeiros de CoVs vive perto de humanos, potencialmente, transmitindo viroses para humanos e pecuária. A cultura alimentar chinesa sustenta que os animais abatidos na hora são mais nutritivos e tal crença pode facilitar a transmissão viral (FAN, Y. et al. “Bat Coronaviruses in China”, § 2.3).
O trabalho, cuja resenha foi publicada em março de 2019, não chegou a localizar o SARS-CoV2, mas identificou 18 espécies de vírus espalhadas em morcegos de várias regiões do país (Fig. 1). No final do ano, a despeito de todas advertências, uma nova pandemia emergiu na capital da província de Hubei, Wuhan, sede do laboratório de onde partiu a pesquisa.
Referências Bibliográficas
DIKÖTTER, F. A Grande Fome de Mao; trad. Ana Mª Mandim. – Rio de Janeiro: Record, 2017.
MENACHERY, V.D.
et al. “A SARS-like cluster of circulating bat coronaviruses shows potential for human emergence”. Revista
Nature Medicine, vol. 21, nº 12, dez. 2015. Disponível na Internet via
https://doi.org/10.1038/nm.3985. Arquivo consultado em 2020.