O Poder e a Magia na Arte

OS mais antigos objetos artificiais foram feitos pelas espécies humanas pioneiras, Homo habilis e Homo erectus, há cerca de 2,5 milhões de anos atrás. Eram lascas de pedras talhadas para produção de utensílios empregados em diversas tarefas: cortar carne, madeira, vegetais comestíveis etc. Também haviam ferramentas maiores rudimentares como martelos, cutelos, raspadores e pontas de lanças para caça e defesa de ataques de outros animais ou mesmo humanos. Tais artefatos compunham as chamadas “indústrias olduvaniana e achaulense”, por terem sido encontrados nas gargantas Olduvai, no centro-leste da África, e em Saint Acheul, no norte da França [1].
Muito tempo passou até que os humanos começassem a fabricar artefatos mais delicados e de melhor acabamento. O que aconteceu por volta de 40 mil anos atrás, na Europa, com os instrumentos inventados pelos Homo sapiens. Ossos e chifres foram acrescentados às matérias primas empregadas na produção de objetos com mais de cem tipos diferentes de formato e utilidade. Ferramentas eram usadas também na confecção de roupa de pele, na gravação de figuras, pequenas esculturas, instrumentos musicais e pinturas em paredes de cavernas, além das armas já conhecidas feitas em pedra e madeira. Algumas peças – como contas e pingentes – indicavam o uso de objetos de adorno e distinção pessoal, típicos da mentalidade humana atual [2].

As representações figurativas de animais e humanos já apareciam na época Aurignaciana (Paleolítico Superior, cc. 40 mil anos atrás) em estatuetas, gravações e pinturas encontradas em cavernas localizadas nos lugares habitados pelos seres humanos, do velho continente à Oceania, menos nas Américas – que ainda não tinham sido ocupadas antes de 12 mil anos. A exatidão e beleza das imagens revelam um apuro estético e habilidade técnica elevada na reprodução de detalhes e efeitos tridimensionais [3].

Função Mágica

Além de finalidades utilitárias, decorativas, defensivas e de caça, as peças pré-históricas descobertas no Paleolítico Superior (de cerca de 40 a 10 mil anos atrás) sugerem um novo uso, mágico ou religioso, até então desconhecido, dependendo da interpretação mais provável das imagens pintadas, gravadas e esculpidas achadas nas cavernas. Por analogia com os aborígenes e caçadores-coletores modernos, tais figuras pré-históricas seriam parte de rituais mágicos e xamânicos dedicados à melhoria do desempenho nas atividades perigosas que os caçadores teriam de exercer [4]. Instrumentos musicais e a acústicas de algumas cavernas reforçam a ideia de que os rituais eram acompanhados por música, canto e dança. Nesses locais, uma população moradora na região ou mesmo de outros sítios mais afastados poderia se reunir ali, para eventos espirituais e religiosos [5].
Ao lado das ilustrações realistas dos animais caçados, símbolos abstratos representavam as visões obtidas pelos autores em seus transes ou uso de drogas ritualísticas de cultos xamânicos. Formas geométricas, espirais e pontos foram reproduzidas da lembrança de estados alterados de suas mentes em rituais que eram estampados nas paredes das cavernas. Algumas figuras quiméricas ou antropomórficas mesclaram homens e animais. Paisagens arquétipas de montanhas, campos e florestas faziam fundo para os personagens e animais em primeiro plano. Desse modo, muito simbolismo, abstrações e figurativismo já vinham sendo os estilos praticados de forma estética ou espiritual, desde a pré-história com função mágica.

As artes, enquanto criam ordem e sentido a partir do aparente caos da existência diária, também alimentam nossa ânsia pelo místico. Somos atraídos pelas formas sombrias que fluem para dentro e fora do subconsciente. Sonhamos com o insolúvel, com lugares e épocas inacessivelmente distantes (WILSON, E.O. Consiliência, cap.10, p.222).

O desenvolvimento das funções puramente artísticas foi gradual, desde o paleolítico. Acompanhou a evolução da linguagem e moldou a mentalidade humana atual no paleolítico superior. Os artefatos e costumes ampliaram os usos dos objetos fabricados e incluíram uma concepção mágica nas coisas, em sua relação com o mundo. Não obstante, o propósito e a finalidade última dos objetos construídos não mascaravam seu objetivo utilitário. Mesmo quando a arte paleolítica ganhou uma aura mágica, o encantamento produzido visava alcançar um resultado que fosse útil materialmente nas atividades essenciais para a sobrevivência humana, seja na caça, fertilidade do solo ou das mulheres, por exemplo.
A arte xamânica adquiria maior respeitabilidade e temor à medida que as habilidades dos caçadores e coletores fossem bem-sucedidas, após cada culto. Os conselhos dos xamãs e a arte transformavam-se, assim, em fonte de poder. A mente primitiva, desconhecedora das relações físicas na matéria, ficava então conectada ao mistério que a arte da magia procurava revelar. O medo do desconhecido, as sensações místicas e estéticas ficaram, desse modo, entrelaçados, desde as manifestações artísticas mais remotas [6].

O medo ancestral das forças naturais esculpido e divinisado em marfim de mamute e em pedra nas figuras antropomórficas do homem-leão e da mulher-leoa, em uma caverna de Stadel (Alemanha) e no Egito antigo. Há 40 mil anos, como há dois mil anos e agora.

O avanço das técnicas de caça e dos armamentos empregados tornavam-se mais eficazes e a crença no poder místico do xamã e seus amuletos encantados também crescia. Com o passar do tempo, os antigos xamãs assumiram os postos de sacerdotes e conselheiros dos líderes das caçadas, enquanto seus adornos mágicos eram vistos como obras sacras.

Para os caçadores-coletores de Kalaari e outros caçadores-coletores contemporâneos, a experiência da vida diária mescla-se, imperceptivelmente, com suas adjacências mágicas. Espíritos habitam árvores e rochas, animais pensam e o pensamento humano se projeta para fora do corpo com uma força física (…) [P]odemos (…) habitar as produções da arte com a mesma sensação de beleza e mistério que nos arrebatou no início. Nenhuma barreira se ergue entre o mundo material da ciência e a sensibilidade do caçador e do poeta (WILSON, E.O. Op.Cit., cap. 10, pp.225 e 227).

Magia e Poder

Enquanto o conhecimento limitado da natureza permitir, sempre haverá espaço para se aproveitar da ignorância humana. Assim, o charlatanismo, a demagogia e os usurpadores assumiram papel de destaque na sociedade, por conta do medo do desconhecido e das leis da física. A arte prosseguiu, portanto, a serviço do misticismo e da política, onde foi empregada como meio de propaganda e alienação da população.
A partir do momento em que as crenças em poderes mágicos foram atribuídas aos amuletos, pinturas e estatuetas ungidos pelos xamãs, a arte ganhou uma função ou aura (nos termos do filósofo e crítico marxista Walter Benjamin, 1892-1940) transcendental que vai acompanhá-la através dos tempos. Magia e poder foram incorporados às artes, por conta da fantasia criada em torno do carisma de artesãos, sacerdotes ou impostores que prometiam efeitos extraordinários e moldavam a mente humana sempre que estivessem correlacionadas à maior eficácia nas atividades humanas.
No início do século XX, Benjamin foi um dos primeiros a apontar – mesmo nos objetos produzidos em larga escala – a capacidade das obras de arte mudar o comportamento do público, em relação ao que lhe é oferecido [7]. Em sua análise sobre o movimento surrealista, que se iniciava naquela época, acreditava ser possível conduzir o êxtase provocado pela apreciação artística para a transformação revolucionária da sociedade [8].
Contudo, para Benjamin, a produção em massa levaria a função estética da arte e o culto a beleza a cederem lugar a novos valores políticos.

Por essa espécie de divertimento, pelo qual ela tem o objetivo de nos instigar, a arte nos confirma tacitamente que nosso modo de percepção está hoje apto a responder a novas tarefas. E como, não obstante, o indivíduo alimenta a tentação de recusar essas tarefas, a arte se entrega àquelas que são mais difíceis e importantes, desde que possa mobilizar as massas (BENJAMIN, W. “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução” §XV, p.26).

Assim, a reprodução em massa poderia, nessa acepção, transformar o modo como as artes seriam cultuadas na modernidade. A “aura” mística que exercia um papel fundamental nos antigos cultos seria transformada, na política da era moderna. Enquanto regimes fascistas, na interpretação de Benjamin, procurariam estetizar a política, alçando seus líderes a condições de heróis, santos ou semideuses, algo para ser cultuado, os comunistas, procurariam politizar a arte [9].
Entretanto, a despeito do que pensava Benjamin, o culto à personalidade não era uma exclusividade do populismo ou fascismo, mas uma característica de todo regime totalitarista, incluindo o comunismo. Fascistas e comunistas estetizavam a política, enquanto tentavam politizar a arte, através do culto à personalidade de seus líderes, por meio da propaganda e de estilos que impunham uma imagem a ser cultivada pelas massas em torno de seus governantes. Benjamin, não sobreviveu para ver a ascensão do culto à personalidade dos líderes comunistas e seus regimes totalitários. Suicidou-se em 1940, depois de seu visto ter sido negado na fronteira entre a Espanha e a França, logo após a ocupação nazista.
Theodor Wiesengrund-Adorno (1903-1969) conseguira fugir para os Estados Unidos – cuja sociedade burguesa e capitalista criticava – dois antes da tentativa frustrada de Benjamin. Pode então sobreviver o suficiente para testemunhar a regressão estética provocada que o realismo socialista promovia na produção artística soviética. A polarização ideológica que os protestos esquerdistas, por sua vez, faziam na politização absoluta da arte “uma cópia lamentável e autoritária da realidade” (ADORNO, Th. Teoria Estética, p.262). O realismo socialista conduziria, segundo Adorno, ao desaparecimento completo da arte livre e autônoma. Um processo de troca no qual a arte se acomoda às condições da indústria cultural , do mesmo modo que o kitsch no modelo capitalista [10]. A perda da espontaneidade da obra retoma a reificação fetichista dos rituais mágicos ancestrais, expurgadas as personalidade e inspiração do autor.
A despeito de toda manipulação ideológica dos regimes totalitaristas, os vestígios da função mágica na arte nunca puderam desaparecer de todo, nas intenções dos artistas e seu público. Para outro crítico da arte marxista – expulso do partido comunista austríaco, em 1948 -, Ernst Fischer (1899-1972): “a arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente” (FISCHER, E. A Necessidade da Arte, cap. 1, p.20).
Ao imaginar a possibilidade de mudar as coisas por meios mágicos, o artista assumiria, a princípio, poderes mágicos. A descoberta da força das ferramentas em transformar as coisas abre a imaginação humana para concepçções mágicas que estavam na origem da arte. Ao transformar a forma bruta da matéria em uma forma idealizada na mente, vislumbravam-se os aspectos mágicos que distinguiriam o artista dos demais semelhantes.

A função decisiva da arte nos seus primórdios foi, inequivocamente, a de conferir poder: sobre a natureza, sobre os inimigos, sobre o parceiro de relações sexuais, sobre a realidade (…) [A] arte pouco tinha a ver com a “beleza” e nada coma contemplação estética (…). [E]ra um instrumento mágico, uma arma da coletividade humana em sua luta pela sobrevivência (FISCHER, E. A Necessidade da Arte, cap.2, p.45).

Charlatanismo Totalitário

O poder transformador das artes permaneceu unido à ilusão da magia, mesmo após o advento da indústria cultural dominar as técnicas de reprodução em massa dos objetos fabricados para o consumo imediato. A propaganda consumista e a ideologia populista trataram de alimentar o culto às celebridades e aos políticos demagogos que sufocaram o debate crítico e toda tentativa de impedir a regressão no gosto e a infantilização do público.
O consumo doentio foi insuflado pelo fetichismo aos objetos colecionáveis, criando os acumuladores compulsivos e a obesidade mórbida. A permanência desse feitiço nas artes dá-se pelo fracasso da promessa emancipatória do modernismo e de seu apelo racional e a luta pela libertação dos indivíduos do fanatismo ideológico e teológico.

A idolatria que prevalece nas religiões politeístas – como hinduísmo e candomblé – e nas monoteístas – catolicismo e ortodoxia cristã, com seus santinhos e ícones – fazem dos seus seguidores, alvos fáceis do charlatanismo religioso e sua extensão política, nas ditaduras e autocracias que sustentam a fé cega dos eleitores ou fiéis enfeitiçados pela crença na magia e no sobrenatural que o conhecimento iluminista não foi capaz de iluminar. A arte, por si só, não pode libertar a espécie humana de sua estupidez servil e do medo ancestral pelo desconhecido.

Notas

1.Veja LEAKEY, R. A Origem da Espécie Humana, cap. 2, pp. 46 a 50.
2.Veja LEAKEY, R. Op.Cit, cap. 5, p. 95.
3.Veja WILSON, E.O.Consiliência, cap.10, p. 216.
4.Veja LEAKEY, R. Idem, cap.6, p. 108 e WILSON, E.O. Op.Cit., cap.10, pp. 223 a 225
5.Veja LEAKEY, R. Ibdem, cap. 6, pp.110 e 111
6.Veja, WILSON. E.O. Idem, cap.10, pp. 218 a 227.
7.Veja BENJAMIN, W. “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução”, §XII, p.21.
8.Veja BENJAMIN, W. “O Surrealismo”, pp. 83 e 84.
9.Veja BENJAMIN, W. Op.Cit., “Epílogo”, p.28.

10.Veja ADORNO, Th. Op.Cit., p.59.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Th.W. Teoria Estética. – Lisboa: Edições 70, 2006.
BENJAMIN, W. Textos Escolhidos. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
FISCHER, E. A Necessidade da Arte. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
LEAKEY, R.E. A Origem da Espécie Humana. – Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
WILSON, E.O. Consiliência. – Rio de Janeiro: Campus, 1999.