Os Pitagóricos

Friedrich Nietzsche*

A filosofia dos pitagóricos deve ser mencionada, de acordo com o esquema organizado por Aristóteles, no final do período que debateu as ideias sobre a causa original e antes da teoria platônica das Ideias. A Metafísica. de Aristóteles, demonstra o desenvolvimento extraordinariamente diverso de suas ideias fundamentais e seu poder de influenciar cada novo sistema [1]. Neste contexto, a sua ascensão é talvez um pouco mais tardia que a do atomismo: basta dizer que nem Empédocles [2], nem os atomistas sabiam alguma coisa sobre eles. O primeiro a tornar-se conhecido, Filolau, provavelmente foi notado por causa da sua obra em três volumes, Da Natureza (Peri Physeos), designada mais tarde pelo nome místico Bacchai [de Baco]. É originário de Tarento e veio a finar na última década do século V a.C. em Tebas, sendo contemporâneo próximo de Lísis e Timeu, tendo Eurito como seu aluno. Segundo Aristoxeno [3], que até certo ponto ainda os via, a escola científica termina com os alunos de Filolau e Eurito: Xenófilos, Fânton, Equécrates, Diocles, e Polimnestos – destes Equécrates é um que aparece no Fédon. Existem duas gerações deles. [August] Boeckh [apresenta] as doutrinas pitagóricas de Filolau ao lado dos principais pontos de suas obras [4].
Para compreender seus princípios fundamentais, é preciso partir do eleatismo. Como é possível uma pluralidade? Pelo fato de o não-ser ter um ser. Portanto, identificam o não-ser ao Apeiron de Anaximandro, ao absolutamente Indeterminado, àquilo que não tem nenhuma qualidade; a isso opõe-se o absolutamente Determinado, o Peras. Mas ambos compõem o Uno, do qual se pode dizer que é ímpar, delimitado e ilimitado, inqualificável e qualificado. Dizem, pois, contra o eleatismo, que, se o Uno existe, foi em todo caso formado por dois princípios, pois, nesse caso, há também uma pluralidade; da unidade procede a série dos números aritméticos (monádicos), depois os números geométricos ou grandezas (formas espaciais). Portanto, a Unidade veio a ser; e, há também uma pluralidade. Desde que se têm o ponto, a linha, as superfícies e os corpos, têm-se também os objetos materiais; o número é a essência própria das coisas. Os eleatas dizem: “Não há não-ser, logo, tudo é uma unidade”. Os pitagóricos: “A própria unidade é o resultado de um ser e de um não-ser, portanto há, em todo caso, não-ser e também uma pluralidade”.
A primeira vista, é uma especulação totalmente insólita. O ponto de partida me parece ser a apologia da ciência matemática contra o eleatismo. Lembramo-nos da dialética de Parmênides. Nela, é dito da Unidade (supondo que não existe pluralidade): 1) que ela não tem partes e não é um todo; 2) que tampouco tem limites; 3) portanto, que não está em parte nenhuma; 4) que não pode nem mover-se nem estar em repouso etc. Mas, por outro lado, o Ser e a Unidade dão a Unidade existente, portanto a diversidade, e as partes múltiplas, e o número, e a pluralidade do ser, e a delimitação etc. É um procedimento análogo: ataca-se o conceito da Unidade existente porque comporta os predicados contraditórios e é, portanto, um conceito contraditório, impossível. Os matemáticos pitagóricos acreditavam na realidade das leis que haviam descoberto; bastava-lhes que fosse afirmada a existência da Unidade para deduzir dela também a pluralidade. E acreditavam discernir a essência verdadeira das coisas em suas relações numéricas. Portanto, não há qualidades, não há nada além de quantidades, não quantidades de elementos (água, fogo etc.), mas delimitações do ilimitado, do Apeiron; este é análogo ao ser potencial da hyle de Aristóteles. Assim, toda coisa nasce de dois fatores opostos. De novo, aqui, o dualismo. No notável quadro estabelecido por Aristóteles [5]:
limitado – ilimitado
ímpar – par
uno – múltiplo
direita – esquerda
masculino – feminino
imóvel – movimento
reto – curvo
luz – trevas
bom – mau
quadrado – oblongo
De um lado, têm-se, portanto: delimitado, ímpar, uno, direita, masculino, imóvel, reto, luz, bom, quadrado. De outro lado, ilimitado, par, múltiplo, esquerda, feminino, móvel, curvo, trevas, mau, oblongo. Isso lembra o quadro-modelo de Parmênides. O ser é luz e, portanto, sutil, quente, ativo; o não-ser é noite e, portanto, denso, frio, passivo. O ponto de partida que permite afirmar que tudo o que é qualitativo é quantitativo encontra-se na acústica. Tomando duas cordas de igual comprimento e espessura e esticando ambas uma ao lado da outra com pesos diferentes, observamos que os sons podem ser reduzidos a relações numéricas definidas. Em seguida, prendemos uma ponte móvel (magadion) sob uma das várias cordas apertadas e pressionamos a mesma em dois pontos diferentes: ela [a ponte] divide as cordas em duas partes iguais, dando, a cada metade, uma oitava mais alta que a corda não dividida. Quando prendemos ambas numa proporção de 2:3 (logos hemiolios), ouvimos a quinta (dia pente); como 3:4 (epitritos), a quarta (dia tessaron). O instrumento foi chamado de cânone (kanon). Pitágoras dividiu a corda em doze comprimentos sob sua superfície e, ao fazê-lo, atribuiu os números 6, 8, 9 e 12 à oitava, quarta, quinta e [principal] como padrão dos comprimentos da corda. Como a quinta é cerca de um tom inteiro mais alto que a quarta, Pitágoras observou em seu cânone, além disso, a relação numérica do tom inteiro (tonos): a proporção 8:9 (epogdoos logos). Então os números sagrados são derivados aqui desta forma: os números 1, 2, 3 e 4 contêm os intervalos consonantais (simphona) – a saber, 1:2, a oitava; 2:3, a quinta; e 3:4, a quarta. Juntos eles constituem a tetraktys. Se somarmos as unidades deles, a dekas é criada. Adicionar esses números aos números 8 e 9, que incluem o intervalo de tom inteiro, resulta em 1 + 2 + 3 + 4 + 8 + 9 = 27. O número de parcelas individuais produz o número sagrado 7. Platão parte do número 7 na sua construção do espírito do mundo no Timeu [6].
A música, com efeito, é o melhor exemplo do que queriam dizer os pitagóricos. A música, como tal, só existe [vorhande] em nossos nervos auditivos e em nosso cérebro; fora de nós, ou em si mesma (no sentido de Locke), compõe-se somente de relações numéricas quanto ao ritmo, se se trata de sua quantidade, e quanto à tonalidade, se se trata de sua qualidade, conforme se considere o elemento harmônico ou o elemento rítmico. No mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o ser do universo, do qual a música é, pelo menos em certo sentido, a imagem [Abbild], exclusivamente com o auxílio de números. E tal é, estritamente, o domínio da química e das ciências naturais. Trata-se de encontrar fórmulas matemáticas para as forças [Kräfte] absolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido, pitagórica [7]! Na química, temos uma mistura de atomismo e de pitagorismo, para a qual Ecphantus na Antiguidade passa por ter aberto o caminho.
A contribuição original dos pitagóricos é, pois, uma invenção extremamente importante: a significação do número e, portanto, a possibilidade de uma investigação exata em física. Nos outros sistemas de física, tratava-se sempre de elementos e de sua combinação. As qualidades nasciam por combinação ou por dissociação; agora, enfim, afirma-se que as qualidades residem na diversidade das proporções. Mas esse pressentimento estava ainda longe da aplicação exata. Contentou-se, provisoriamente, com analogias fantasiosas.
Aristóteles descreve assim: nas ciências matemáticas,

posto que nelas os primeiros princípios são os números, por natureza, acreditavam [os pitagóricos] ver nisto – mais do que no fogo, na terra e na água (múltiplas semelhanças com as coisas que são e as que se geram, por exemplo, que tal propriedade dos números é a Justiça, e tal outra é a Alma e o Entendimento, e tal outra a Oportunidade e, analogamente, o mesmo nos demais casos), e além disso, viam nos números as propriedades e proporções das harmonias musicais – ; posto que as demais coisas na sua natureza toda pareciam assemelhar-se aos números, e os números pareciam ser os primeiros de toda a natureza, supuseram que os elementos dos números são elementos de todas as coisas que são, e que o firmamento inteiro é harmonia e número (ARISTÓTELES. Metafísica, 985b 25 a 986a 3).

Como, por exemplo, consideravam o número 10 perfeito e o epítome de toda a essência do número, sustentavam também que havia dez corpos movendo-se nos céus; porque apenas nove eram visíveis, no entanto, eles transformaram a anti-terra no décimo. Eles consideram como elementos do número o par e o ímpar, e destes [eles sustentam] que [o par] é ilimitado e [o ímpar é] limitado, enquanto a unidade consiste em ambos (porque é par e ao mesmo tempo ímpar). Dessa unidade origina-se o número, e o universo consiste em números.
Todos os números são divididos em números pares (hartios) e ímpares, e qualquer número é resolvido parcialmente em par e parcialmente em ímpar (perissos) elementos. Aqui, eles concluíram que par e ímpar são as condições gerais de existência das coisas. Pois bem, eles equiparavam o ímpar ao Limitado e o par ao Ilimitado, porque o primeiro estabelece um limite para a divisão; o outro, não. Assim, todas as coisas originam-se do Limitado e do Ilimitado. Os limitados e os ímpares são considerados perfeitos (observe o significado popular dos números ímpares). Eles chamavam esses ímpares de “gnomones” também: um gnomone é um número que corresponde a um número quadrado, produzindo outro número quadrado; isto, porém, é uma propriedade de todos os números ímpares.
12 + 3 = 22
22 + 5 = 32
32 + 7 = 42
Bem, adicionar os números ímpares à unidade produz apenas números quadráticos e, portanto, números de uma forma simples (etc.), contra a qual obtemos de qualquer outro modo – [por exemplo,] somando os pares à unidade ou somando pares e ímpares – números dos mais diversos tipos. Bem, sempre que os pitagóricos percebiam qualidades opostas, eles consideravam o superior limitado e ímpar e o inferior ilimitado e par. Se as condições de existência das coisas são de composição oposta, era necessário um vínculo para que algo surgisse delas. Isto é, segundo Filolau, harmonia [afinação]: “A harmonia é a unificação de muitos (elementos) mistos que são conflitantes e uma concordância dos discordantes” [8]. [Isto é] unidade de diversidade e concordância em duas opiniões divididas. Se a oposição entre os elementos está em todas as coisas, então a harmonia também está em tudo. Tudo é número, tudo é harmonia, porque todo número definido é uma harmonia do par e do ímpar. Harmonia é caracterizada como uma oitava, no entanto. Temos na oitava a relação 1:2, que resolve a oposição principal em harmonia. Nesta noção notamos a influência de Heráclito.
Mencionamos, ao caracterizar o seu método de equações, que a justiça consiste em multiplicação de iguais como – em outras palavras, de números quadrados; por esta razão [o número] 4, ou especialmente 9 (o primeiro número quadrado ímpar), foi denominado justiça. O número 5 (a união do primeiro número masculino e primeiro feminino) é chamado de casamento, a unidade de razão, porque é imutável. Duplicidade [é chamada] opinião, porque é alterável e indefinida. Este ou aquele conceito tem o seu lugar no mundo nesta e naquela região. Por exemplo, a opinião [tem o seu lugar] na região da Terra (porque a Terra ocupa a segunda posição na série dos corpos celestes); momento oportuno (kairos), na região solar (ambos expressos pelo número 7). Os cantos do quadrado são dedicados a Rhea, Demeter, Hestia, e as divindades da terra, porque o quadrado forma os limites da superfície do cubo, mas de acordo com Filolau, o cubo é considerado a forma fundamental da terra. Os ângulos do triângulo são consagrados às divindades da destruição – Hades, Dioniso, Ares, e Cronos – porque a forma fundamental do fogo é a tetraktys formada por quatro triângulos equiláteros [9].
O sistema da década é especialmente importante: já que para eles [os pitagóricos] todos os números depois de dez parecem ser apenas repetições dos dez primeiros, parecia que todas as potências do número estavam contidas nas dekas; que significa grandeza, onipotência, a conclusão de todas as coisas, início e guia feminino para a vida divina e terrena. É a perfeição: por isso [encontramos] enumerações de dez partes onde se diz que a totalidade da realidade é descrita (tabela de opostos, sistema de corpos celestes). Eles dizem da tetraktys, “que contém a fonte e a raiz da inesgotável natureza” [10]. Juramentos foram feitos [tais como] “Não, por aquele nos deu a tetraktys” [11]. Eles (e.g Thrasyllus) adorava organizar as coisas em séries de quatro partes. A unidade é a primeira de onde se originam todos os números, e é por isso que se diz que as qualidades opostas são unificadas: “Pois se você somá-la a um número par produz um ímpar, e se você somar a um número ímpar produz um par; o que não seria capaz de fazer a menos que partilhasse de ambas as naturezas” [12].
No caso da dedução das dimensões geométricas, eles equiparam a unidade ao ponto, a duplicidade à linha, a trindade à superfície e o número 4 ao sólido. Com a figura, porém, acreditavam ter deduzido o próprio corpóreo. Bem, diz-se que sua composição elementar depende da forma do corpo. Dos cinco sólidos regulares, ele [Filolau, 13] atribuiu o cubo à terra, o tetraedro ao fogo, o octaedro ao ar, o triângulo isósceles [do isocaedro] à água e os dodecaedros [ao éter e] a todos os elementos restantes; ou seja, ele assumiu que as menores partes existentes desses vários materiais teriam a forma dada. O fato de o número de materiais fundamentais ser cinco pressupõe um período posterior a Empédocles, o que significa a influência de Empédocles sobre Filolau. Eles tinham em mente a Cosmogonia: no começo o fogo surge no centro do universo (chamado de Um ou de Monas, o senhor do universo, a torre de vigia de Zeus). A partir daqui, diz-se que as partes circundantes do Ilimitado são atraídas por ele e assim se tornam limitadas e definidas (lembra-me do conceito de Ilimitado de Anaximandro). Este efeito continua até a construção do universo chegar ao fim (o fogo heraclitiano é empregado para produzir um mundo definido a partir do Ilimitado de Anaximandro).
O mundo é construído como uma esfera (Empédocles ou Parmênides) no ponto médio [da qual está] o fogo central, em torno do qual dez corpos celestes desenvolvem de oeste para leste, sua dança circular [ocorrendo] na maior distância do céu de estrelas fixas; depois disso [vêm] os cinco planetas (Saturno, Jupiter, Marte, Vênus, Mercúrio); a isto [são acrescentados] o Sol, a Lua, a Terra e a anti-terra como o décimo; o limite mais externo é formado pelo fogo da circunferência. Ao redor do fogo central move-se a Terra, e entre os dois [move-se] a anti-terra, de tal forma que a terra está sempre com a mesma face voltada para o fogo central e anti-terra, e consequentemente, nós que estamos do outro lado podemos perceber os raios do fogo central não diretamente, mas a princípio indiretamente por meio do sol. Os pitagóricos consideravam a forma da Terra como esférica – um avanço astronômico extremamente significativo. Considerando que anteriormente a fixidez da Terra era pressuposta e a mudança dos dias era inferida a partir do movimento do Sol, aqui temos uma tentativa de explicá-la a partir do movimento da Terra. Se apenas o fogo central fosse abandonado e a anti-terra fosse unificada com a Terra, então a Terra se moveria em torno de seu próprio eixo. Diz-se que Copérnico herdou sua ideia diretamente de Cícero e Plutarco, por causa de Filolau [14].
Uma consequência do movimento dos astros é a doutrina da harmonia das esferas. Todo sólido que se move rapidamente emite um som. As estrelas constroem juntas uma oitava, ou, o que dá no mesmo, uma harmonia – portanto, não uma harmonia no nosso sentido, mas sim a corda afinada do antigo heptacorde [um instrumento musical grego]. Mais precisamente, quando todas as notas da oitava soam juntas, não há “harmonia”. Por nós não o ouvimos eles esclarecem da seguinte forma: chega até nós como uma forja aos seus ocupantes: desde o nascimento ouvimos o mesmo ruído; na sua presença, nunca chegamos a notar a quietude por contraste. Essa noção originalmente se referia apenas aos planetas, pois, caso contrário, dez sons teriam sido produzidos, embora a harmonia exija sete, à maneira do heptacorde. O que os olhos veem ao observar as estrelas é o que os ouvidos ouvem nos sons dos tons.
O fogo da circunferência tinha a missão de manter o mundo unido: por isso chamaram-no de necessidade (anagke). [August] Boeckh provou que isso significa a Via Láctea. Além do fogo circunferencial encontra-se o Ilimitado. Arquitas perguntou se um homem poderia esticar o braço ou um galho na beira do mundo; se isso puder ser feito, então deve haver algo além [do mundo], ou seja, o corpo ilimitado (soma apeiron) e localizado (topos), que vem a ser a mesma coisa. Uma segunda razão: se se dissesse que um movimento ocorreu, então, pelo corpo em movimento criar espaço sobre o qual outros cruzariam os limites do universo, o mundo acabaria por fervilhar (kymanei to holon, überwallen).
É entre os pitagóricos que, pela primeira vez, a noção de altos e baixos no mundo, ou melhor, de maior ou menor distância do centro, é abandonada. Eles chamam aquilo que está mais próximo do meio de direita e o mais distante de esquerda; o movimento dos corpos celestes ocorre de oeste para leste: o meio ocupa o lugar de honra à direita dos corpos cósmicos. Eles consideravam a parte superior do mundo mais perfeita. :Eles distinguem o círculo de fogo externo do círculo de estrelas, e estes dos que estão acima e abaixo da lua: Olympus, a circunferência mais externa; Cosmos, as estrelas do céu; e Uranos, a região inferior. Em um [Olympus], [temos] os elementos em toda a sua pureza (a saber, o limitado e o ilimitado); o segundo [Cosmos] é o lugar do movimento ordenado; e o terceiro [Uranos], o do Devir e do Desaparecer. Sempre que as estrelas voltam a atingir a mesma posição, não apenas as mesmas pessoas, mas também o mesmo comportamento ocorrerão novamente [15].

DIGGES, Th. Caelestiall Orbis, 1576.

[Os pitagóricos tinham] pouco a dizer sobre questões psicológicas ou epistemológicas. Seria relevante, se Filolau tivesse reduzido a composição física ao número 5; animação ao número 6; razão, saúde e aquilo “que ele chama de luz” [16], o 7; e amor, amizade, inteligência e criatividade para 8. Então [há] a famosa proposição de que a alma é uma harmonia, ou seja, a harmonia do seu corpo. A razão está situada no cérebro; [têm as suas] vida e sensação no coração; enraizamento (rizozis) e germinação (anaphisis) [o têm] no umbigo; a procriação [ocorre] nas partes reprodutivas. No primeiro, está o cerne da humanidade; no segundo, o dos animais; no terceiro, está o das plantas; e no quarto, o de todos os seres. Sem número o conhecimento é impossível. Nisso, não se admite inverdades; só isso torna cognoscível a relação das coisas. Tudo deve ser limitado, ilimitado ou ambos; sem fronteiras, entretanto, nada seria cognoscível.
Caso se pergunte a que se pode vincular a filosofia pitagórica, encontra-se, inicialmente, o primeiro sistema de Parmênides, que fazia nascer todas as coisas de uma dualidade; depois, o Apeiron de Anaximandro, delimitado e movido pelo fogo de Heráclito. Mas estes são apenas, evidentemente, problemas secundários; na origem há a descoberta das analogias numéricas no universo, ponto de vista inteiramente novo. Para defender essa ideia contra a doutrina unitária dos eleatas, tiveram de erigir a noção de número, foi preciso que também a Unidade tivesse vindo a ser; retomaram então a ideia heraclitiana do polemos, pai de todas as coisas, e da Harmonia que une as qualidades opostas (a essa força, Parmênides chamava Aphrodite) [17]. Simbolizava a gênese de todas as coisas a partir da oitava. Decompuseram os dois elementos de que nasce o número em par e ímpar. Identificaram essas noções com termos filosóficos já usuais. Chamar o Apeiron de Par é sua grande inovação; isso porque os ímpares, os gnomones, davam nascimento a uma série limitada de números, os números quadrados.

Com isso, queimam uma ponte a Anaximandro, que reaparece aqui pela última vez. Mas identificam esse limite com o fogo de Heráclito, cuja tarefa é, agora, dissolver o indeterminado em tantas relações numéricas determinadas; é essencialmente uma força calculadora [eine rechnende Kraft]. Se houvessem tomado emprestado de Heráclito a palavra Logos, teriam entendido por ela a proporção (aquilo que fixa as proporções, como o Peras fixa o limite). Sua ideia fundamental é esta: a matéria, que é representada inteiramente destituída de qualidade, somente por relações numéricas adquire tal ou tal qualidade determinada. Essa é a resposta dada ao problema de Anaximandro. O vir-a-ser é um cálculo. Isso lembra a palavra de Leibniz, ao dizer que a música é exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi [18]. Os pitagóricos teriam podido dizer o mesmo do universo, mas sem poder dizer quem faz o cálculo.

Notas

*. NIETZSCHE, Fr. “The Pythagoreans”, in The Pre-Platonic Philosophers, cap 16.
1. ARISTÓTELES. Metafísica, liv. 1, cap. 9, 990b.
2. Empédocles, segundo PORFÍRIO. Vida de Pitágoras, teria dado testemunho de conhecer e ser influenciado pelos pitagóricos. É o fragmento 129 do que restou sobre o pensador de Agrigento. [Nota da tradução].
3. DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, liv.VIII, cap. 1, §46.
4. BOECKH, August. Philolaus des Pythagoreers Lehren nebst den Bruchstücken seines Werkes. – Berlim, 1819, SCHAARSSCHMIDT, C. Die angebliche Schriftstellererei des Philolaus und die Brüchstücke der ihm zugeschriebenen Bücher, – Bonn, 1864. Várias afirmações foram criticadas por Zeller, todas de Val. Rose [Nietzsche refere-se aqui a ZELLER, Eduard. “Pythagoras und die Pythagorassage”, in Vortraege und Abhandlungen, – Leipzig, 1865, 30-50, e ROSE, Valentine. De Aristotelis librorum ordine et autoritate, – Berlim, 1854, 2]. De acordo com DIÓGENES LAÉRCIO. Op. Cit., liv.VIII, cap. 7, §84, Filolau teria nascido e morrido em Crotona, sul da Itália, por volta do século V a.C.
5. ARISTÓTELES. Metafísica, liv. 1, cap. 5, 986a.
6. Cf. WESTPHAL. Rudolph. Rhythmik und Harmonik, 64 (1826-92) e ROSSBACH, A. Metric der Griechen, vol. 1 de Griechische Rhythmik und Harmonik nebst der Geschichte der drei musichen Disziplinen, 2 vols. – Leipzig: Teubner , 1867-68.
7. Aqui Nietzsche se refere à dinâmica noção de força iniciada por Boscovich e refletida nas ciências, especialmente atômica e química. Lancelot Law Whyte falou de Boscovich que “Pitágoras estendeu para abranger o processo” (WHYTE, ed. Roger Joseph Boscovich: Estudos de sua vida e obra no 250º Aniversário de seu Nascimento. – Londres: Allen e Unwin, 1961, p. 124.
8. FILOLAU, frag. 10: Esti gar harmonya polymigeon enosis kai dicha phroneonton symphrasis.
9. TEON DE SMYRNA. Mathematical Useful for Undestanding Plato, part.2, §§XL a XLIX, atribui os sólidos geométricos ao 4, bem como a sensação; o nove à razão; o 5 é o meio termo da década; o casamento é associado ao 6 que é o produto do primeiro par e de ímpar. [Nota da tradução]
10. SEXTO EMPÍRICO. Adversus Mathematicos 7, 94-95: Pegen aenaon physeos rizoma t echoysan.
11. SEXTO EMPÍRICO. Op. Cit. idem: ou ma ton ametera kephala paradonta tetraktyn. TEON DE SMYRNA. Op.Cit.<, part 2, §XXXVIII fornece a seguinte versão do juramento: “Juro por aquele que concedeu a tetraktys às gerações vindouras, fonte da natureza eterna, em nossas almas”.
12. TEON DE SMYRNA. Idem, part.1, §5. [Nota da tradução]
13. De fato, nos fragmentos restantes de Filolau há a menção ao quinto elemento, o éter – também chamado de Olympus -, entre os quatro tradicionais. Entretanto, a associação feita aos cinco sólidos geométricos lhe é posterior. Foi feita depois de Teetetos de Atenas ter construído os cinco sólidos e Platão e os acadêmicos terem-nos relacionados aos cinco elementos. Até Filolau, os pitagóricos reconheciam apenas três poliedros regulares: o cubo (DIÓGENES LAÉRCIO. Idem, liv.VIII, cap. 4, §83 atribui a Arquitas de Tarento a descoberta do cubo), a pirâmide de base triangular e o dodecaedro (IÂMBLICO. Sobre a Vida dos Pitagóricos, 18, 88 diz que Hipasos de Metaponto foi o primeiro a descrever o dodecaedro). Foi Teetetos o primeiro a construir o octaedro e o isocaedro, que junto aos outros três receberam o nome de “figuras platônicas”, após a famosa discussão no diálogo Timeu, de Platão (veja EUCLIDES. Elementos, XIII). [Nota da tradução]
14. CÍCERO. Academica, liv. 2, cap. 39; [PSEUDO] PLUTARCO. Placita Philosophorum, liv.3, cap. 13. Ironicamente, o Vaticano também tomou o heliocentrismo como uma doutrina pitagórica em sua pressão contra Copérnico. Nietzsche consistentemente associou Copérnico com Boscovich.
15. Essa é uma tardia variação pitagórica do eterno retorno do mesmo. Nietzsche, precisamos lembrar, acreditava que os neopitagóricos teriam sido influenciados por Heráclito, de quem a ideia do eterno retorno do mesmo pode ser atribuída. Porfírio atribui “a doutrina… do retorno periódico dos eventos” a eles (veja DIELS, Hermann. Die Fragmente der Vorsokratiker: Griechish und Deutsch, ed. Walther Kranz, 3 vols. – Berlim: Weidmannsche Buchhandlung, 1934-37, 14.8a. Por SIMPLICIO. In Physics. 732:30, Eudemo diz: “Se alguém fosse acreditar nos pitagóricos, que resultam que as mesmas coisas individuais retornarão, então eu poderia falar a você de novo sentado como você está agora, com esse ponteiro em minha mão, e tudo mais será como agora, e assim é razoável supor que o tempo é o mesmo como agora”. ESTOBEU, Eclogas Physica, 1.20.2, atribui um tipo de eterno retorno aos pitagóricos. Veja também NIETZSCHE, Fr. “Do Uso e Abuso da História para Vida”, in Últimas Meditações. – Cambridge: CUP, 2007, §2, p.70: “No fundo, de fato, o que uma vez foi possível poderia apresentar-se como uma possibilidade por uma segunda vez apenas se os pitagóricos estivessem certos em acreditar que quando a constelação dos corpos celestes repetirem a mesma posição, os eventos na Terra repetiram nos mais ínfimos detalhes; assim, sempre que as estrelas ficam em certa relação, um estoico e um epicurista farão uma conspiração para matar César, e uma diferente conjunção mostrará outra descoberta da América, por Colombo”.
16. [PSEUDO] IÂMBLICO. Theologumena Arithmeticae: to hyp auton legomenon phos. Nietzsche não forneceu fonte para esta frase, que vem de Pseudo-Iâmblico.
17. Veja PARMÊNIDES. Fragmento 18.

18. LEIBNIZ, Gottlib W. Coleção de Epístolas, ep. 154: “um exercício oculto de aritmética, sem que o espírito saiba que está calculando”. É a mesma passagem da correspondência de Leibniz citada por Arthur Schopenhauer em O Mundo como Vontade e Representação (vol.1, liv.3, §52). Schopenhauer “parodia” a fórmula leibniziana com sua própria interpretação: “música é um exercício oculto de metafísica, sem que o espírito saiba que está filosofando” (vol.1, liv.3, §52, p.343); e ainda comenta: “Mas além, graças ao dito de Leibniz, corroborado de muitas maneiras, a música, abstraindo seu significado estético ou interior, e considerada apenas externa e empiricamente, nada mais é do que um meio de aprender diretamente e in concreto números muito grandes e relações numéricas complexas, que de outro modo seriam passíveis de conhecimento apenas através de conceitos abstratos. Dessa forma, pela reunião destas duas concepções distintas da música, ambas corretas, podemos chegar a uma concepção que torne possível uma filosofia dos números, semelhante à de Pitágoras ou ainda à dos chineses no I Ching, e então esclarecer o sentido daquela proposição dos pitagóricos citada por Sexto Empírico (Idem, liv. VII, §94): to arithmo de tá pant epeioken (Todas as coisas são semelhantes ao número)” (SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representação, idem).

Fontes

NIETZSCHE, Fr. The Pre-Platonic Philosophers; trad. Greg Whitlock . – Chicago: University Illinois Press, 2006.
____. “Pitágoras de Samos”, in Pré-Socráticos; trad. Rubens R.T. F°. – São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Os Pensadores).

A Era do Esquerdismo Neofascista

Dois abutres à espera da carniça da sociedade. Caricatura de 1938 da revista estadunidense Ken.

No início do século XX, surgiu o partido fascista, fruto podre de uma dissidência do partido socialista, na Itália. Na Alemanha, o nazismo era o regime totalitário idealizado e montado pelo partido nacional socialista dos trabalhadores alemães.

No início do século XXI, a esquerda neofascista global retornou às origens do totalitarismo. Agora, como antes, para impor, através de mentiras ideológicas, a censura da verdade; a prisão arbitrária de seus oponentes; a tortura, o banditismo, o narcotráfico, o terrorismo antissemita e o charlatanismo cientificista.

Como de costume, os esquerdistas continuam acusando os outros dos crimes que praticam em larga escala ao redor do mundo.