Sociedade Global Kitsch

PARALELO ao desenvolvimento da indústria cultural, tomou forma a produção de bens materiais, de baixa qualidade, voltados para atender o gosto popular por objetos artísticos. A palavra alemã kitsch foi dicionarizada em diversos idiomas para traduzir todos os tipos de objetos, em todos gêneros artísticos – da música à arquitetura -, considerados de valor estético duvidoso; de acabamento precário; desproporcionais e fabricados em larga escala. Kitsch transformou-se, então, no termo mundial para qualquer coisa com pretensões artísticas de má qualidade e mau gosto, em diversas culturas. No português do Brasil, a gíria usa as palavras “cafona” e “brega” para adjetivar pessoas e objetos que estão fora de moda ou ostentam uma falsa aparência de riqueza e elegância, em um sentido análogo ao kitsch. O advento do pós-modernismo e sua crítica à racionalidade, no entanto, fez com que as fronteiras entre o racional e o estúpido, o feio e o belo fossem apagadas, permitindo assim que o kitsch pudesse ser aceito como um padrão estético válido, como qualquer outro. O que antes era considerado uma alienação “pequeno burguesa” resultou em objetos cobiçados por galerias, museus e pelos leiloeiros.
A moldagem e reprodução de cópias de objetos artísticos existem desde as primeiras civilizações que realizaram arte. Atendia à demanda por amuletos, utensílios domésticos e decorativos. Vários moldes foram encontrados em sítios arqueológicos da antiguidade. A técnica de fundição e modelagem em cerâmica indicam que a ideia de se utilizar um modelo prévio para sua posterior replicação não era exclusividade do modo de produção capitalista [1]. A revolução industrial apenas acelerou os processos de construção e a distribuição em larga escala de um número cada vez maior de coisas, para quem quisesse obter sua posse, às vezes nos locais mais longínquos do planeta.
Tal constatação histórica, apoiada na quantidade crescente de produtos fabricados, embora não representasse uma preferência por um padrão de gosto específico, acabou necessariamente em uma padronização, a fim de possibilitar uma otimização dos recursos e maiores lucros para o fabricante. Um produto de fácil assimilação do público acabava por influenciar a tendência de produção de bens comercializáveis, semelhantes aqueles que caiam no gosto popular, gerando um círculo vicioso. Em épocas de maior opulência, os estilos da moda incentivavam a aquisição e o acúmulo de objetos pela nobreza, o que estimulava também a imitação do mesmo comportamento por quem quisesse se sentir como membro de um determinado grupo ou classe social superiores. Assim, o barroco, o maneirismo e o rococó surgiram após o enriquecimento dos países que saquearam suas colônias fora da Europa.
A qualidade artística, no entanto, não poderia naturalmente satisfazer a procura dos novos-ricos, apenas com alguns artesãos ou oficinas de artistas renomados que eram sobrecarregados pela aristocracia. O público, em geral, contentava-se com as cópias e imitações, mesmo que fossem distorções extravagantes que, por vezes, fugiam aos estilos predominantes de cada época. Essas diferenças acabavam por permitir a distinção em um ambiente que, de outro modo, fariam todos indiscerníveis dos demais, devido ao volume excessivo de coisas desproporcionais superpostas, que eram exibidas nos salões de cada lar.
Durante o século XIX, autores críticos, como o poeta Edgar Allan Poe (1809-1849), já notavam o espírito que regia essa busca incessante por mais bens materiais.

(…)Não temos uma aristocracia de sangue e tendo, portanto, como coisa natural, e na verdade inevitável, criado para nós uma aristocracia de dólares, a ostentação da riqueza tomou aqui o lugar e desempenhou a tarefa da ostentação heráldica nos países monárquicos (…) [F]omos levados a transformar em simples exibição nossas noções do próprio gosto.

(…)[O] preço de um artigo de mobiliário chegou afinal a ser, entre nós, quase o único padrão de seu mérito do ponto de vista decorativo; e esse padrão, uma vez estabelecido, abriu caminho a muitos erros análogos, facilmente rastreáveis até seu disparate originário (POE, E. A. “Filosofia do Mobiliário”, in Ficção Completa, Poesias e Ensaios, p. 1004).

A Corrupção da Estética

A substituição do gosto pela ostentação de um padrão de consumo exagerado foi apontada também por Theodor W. Adorno (1903-1969), no século seguinte ao de Poe. Sua crítica, entretanto, não estava voltada, inicialmente, para a extravagância do mobiliário, mas na degradação da audição musical – que, mais tarde, chegou a níveis subterrâneos, no começo do século XXI. A música séria, de qualidade, teve sua viabilidade de comercialização reduzida a uma fração mínima do mercado consumidor de discos e partituras. Houve um achatamento dos sucessos admissíveis. As músicas de sucesso não poderiam mais ter um refinamento tão elevado que o público não pudesse acompanhar. Os editores, os magnatas do cinema e os produtores culturais ditavam a música que poderia ser ouvida. Inventou-se as listas dos mais vendidos ou ouvidos e os “próprios clássicos comumente aceitos são submetidos a uma seleção, que nada tem a ver com a qualidade” [2].

A pop-art ignorou a alienação kitsch e adotou sua diversão estética. LICHTENSTEIN, Roy (1923-1997). Garota do Barco (1965), litografia a cores.

O fetiche em torno da música e outros bens culturais iam além do aspecto psicológico. Os objetos culturais são consumidos independente de suas características específicas, como seria com qualquer outra mercadoria, sem pretensões artísticas. Agora, depois do advento da indústria cultural, para se ter cultura, é preciso comprá-la. O comprador valoriza o gasto que teve na aquisição de tais produtos. Assim, o que está em jogo é o poder de compra de quem procura esses artefatos, cobiçados pelo preço elevado e não pela qualidade artística, efetivamente [3].
Os consumidores são facilmente manipuláveis, segundo os critérios de moda estabelecidos pela indústria. Isso se tornou possível pelo processo de redução dos critérios estéticos de uma pessoa e de seu próprio senso crítico, por conseguinte.

A renúncia à individualidade que se amolda à regularidade rotineira daquilo que tem sucesso, bem como o fazer o que todos fazem, segue-se do fato básico de que a produção padronizada dos bens de consumo oferece praticamente os mesmos produtos a todo cidadão. Por outra parte, a necessidade, imposta pelas leis do mercado, de ocultar tal equação conduz à manipulação do gosto e à aparência individual da cultura oficial, a qual forçosamente aumenta na proporção em que se agiganta o processo de liquidação do indivíduo (ADORNO, Th.W. Idem, p. 174).

Por pior que seja a qualidade dos produtos oferecidos pelos processos de massificação, seus vendedores acreditam estar oferecendo objetos de “primeira qualidade”, capaz de satisfazerem, com garantias abstratas, aquilo que os consumidores desejam. Quanto maior for o encanto pela mercadoria, menor será o critério de avaliação do comprador, que já não possui a liberdade para escolher o que faz do produto um objeto de arte, com valores estéticos que só um cultivo crítico poderia fornecer junto à maturidade adequada para a devida escolha racional e formação de juízo.

Juntamente ao esporte e o cinema, a música de massas e o novo tipo de audição contribuem para tornar impossível o abandono da situação infantil geral (ADORNO, Th.W. Ibdem, p. 180).

A gradativa infantiliazação do indivíduo, denunciada por Adorno, levou a um resultado completamente diverso ao do “homem-criança” concebido por Charles Baudelaire (1821-1867), em Sobre a Modernidade (1863). O “homem-criança” seria um observador moderno dominado pelo gênio da infância, atento à novidade e a todos aspectos da vida. Graças a sua força ingênua, possuiria “percepção aguda e mágica” que o permitiria extrair o elemento “eterno do transitório” que caracterizaria a beleza fugaz da modernidade [4]. Todavia, o homem médio da sociedade global kitsch não consegue satisfazer nenhuma atitude que o homem moderno de Baudelaire deveria tomar. O público infantilizado comporta-se como se fosse criança, quando se defronta com uma obra kitsch, efetivamente. Contudo, uma vez estabelecida essa relação pueril com as coisas, a redução do gosto faz do indivíduo um mero consumidor, cujos padrões psicológicos são rebaixados a níveis primários. Cada novo produto imposto ao mercado reforça a transformação lenta e imperceptível da mentalidade humana. Desse modo, as intenções imbecilizantes não chocam o público alvo da transformação com nada verdadeiramente audacioso ou novo. Nos supermercados, e outros locais voltados ao consumo, a banalização da arte, apontada por Adorno, corresponde adequadamente à ideia de kitsch que Abraham Antoine Moles (1920-1992) apresentou no início dos anos 1970. Objetos que afloram em um ambiente sociocultural consumista, por excelência [5].

A Fabricação do Mau Gosto

A produção em série de um artefato não implica na fabricação de produtos ruins ou medíocres. Escolas de desenho industrial, ao longo da história e em diversos países, visaram projetar aparelhos funcionais com um aspecto adequado a sua utilização, que não fossem grotescos, mas sim belos e duráveis. Os objetos considerados kitsch, todavia, não foram feitos para serem funcionais e ter uma vida longa, por isso foram adotados sem hesitação pelos produtores. Pois, nesse sentido, representavam com clareza as intenções da indústria de transformação, em manter sua produção sempre renovada, quando foi introduzida a diretiva da “obsolescência programada”, na década de 1930, cujo intuito era insuflar artificialmente a demanda por novos produtos que alimentariam, por sua vez, a produção nas fábricas das empresas envolvidas nesse processo. O kitsch não foi feito para durar e sua presença no mundo deve se camuflar entre outros objetos assessórios diferentes que também tendem a desaparecer ou serem descartados no montante acumulado nas despensas das casas a que foram destinados e, no fim de sua “vida útil”, aos depósitos de lixo lotados das grandes cidades.
Os valores estéticos não se aplicam a essas coisas que se caracterizam pelos “excessos de meios”, ou detalhes inúteis que servem apenas para uma ostentação efêmera. São objetos adquiridos, não para cumprir uma função, mas satisfazer os desejos momentâneos de seus donos. Significam, não só um símbolo de inclusão social, mas também um estado de espírito e, além disso, a razão econômica que sustenta sua própria existência.
A criação de um mercado consumidor infantilizado permite que se forme com maior facilidade um público de gosto médio que aceite escoar os produtos medíocres lançados para as massas, pela indústria cultural. A produção em larga escala de bens culturais gerou o objeto kitsch que tinha de ser adquirido rapidamente e logo em seguida substituído por um novo, antes mesmo do final do período de garantia – cada vez mais curto -, para manter a plena produtividade da indústria de trasnformação.
O homem comum de gosto medíocre, infantilizado, então, é a medida da indústria cultural kitsch. É para o público médio, fácil de manipular, que estão direcionados os aparelhos e itens decorativos produzidos aos milhões.

O kitsch é mais uma direção do que objetivo, dele todos fogem – kitsch é uma injúria artística -, mas todo mundo a ele retorna: o artista que faz concessões ao gosto do público; (…) pitada de bom gosto na falta de gosto, pitada de arte na feiura. (…) [O conforto e a opulência] do ambiente cotidiano, arte adaptada à vida e cuja função adaptativa ultrapassa a função inovadora, o kitsch vício escondido. (…) Daí deriva sua força insinuante e sua universalidade (MOLES, A.A. O Kitsch, cap. 2, § IV, p. 28).

A maioria dos indivíduos infantilizados adquire essa comodidade que o vício da “estética” kitsch proporciona. É uma arte que procura ser aceita e não tenta nada que vá extrapolar ou embaraçar a vida diária de seus proprietários. “O kitsch dilui a originalidade em medida suficiente para que seja aceita por todos” [6].
A beleza provocadora cede lugar ao prazer imediato, que estimula o vício pela aquisição da obra kisch, sem contestações inconvenientes. Esse tipo de alienação e falta de pensamento crítico são traços típicos do consumidor do kitsch. O empilhamento aleatório de objetos acumulados sem critérios aparentes é uma consequência desse comportamento sem compromisso estético [7]. Também faz parte da atmosfera kitsch, a mistura de estilos artísticos incompatíveis, na qual o bom e o mau gostos convivem lado a lado: “mistura de categorias, alegria de viver e ausência de esforço, tudo misturado na marmita da anti-arte” [8].
Nesse contexto, as lojas de departamento e supermercados surgem como locais de culto, onde a proliferação de estilos pode ser usufruída, pelo cliente fiel. Há nesses lugares uma coleção de objetos diferentes que podem ser comprados pelo mesmo preço em diversas filiais. O “preço único” das cadeias de lojas faz com que o mesmo comportamento da freguesia se reproduza de modo a ser investigado e conduzido posteriormente. Os hábitos de consumo são então estudados e dirigidos, segundo a orientação dos fabricantes para maximizar suas vendas. Passear nesses autênticos templos de consumo acaba se transformando em um rito ou um dos “atos simbólicos da vida contemporânea” [9]. Uma sociedade global é forjada pelo objeto kitsch, feito para ser consumido por um indivíduo, sem critério estético rigoroso, em qualquer parte do planeta: “uma sociedade Kitsch global, uma ‘kitschização’ da sociedade em que as relações sociais se acham influenciadas e transformadas pelas relações com os objetos” [10].

Depois de passar pelo processo de infantilização, o público médio perdeu o senso crítico, para discernir livremente o bom do mau e o feio do belo. Ilustração: Salvat Editora, 1979.

A despeito disso tudo, do empilhamento, do frenesi do consumidor, do conformismo, da inadequação e sua falsa utilidade, o kitsch teria algum valor pedagógico ao contrastar critérios estéticos divergentes nas obras que procura fundir. Além do mais, o kitsch se constituiu em um conceito universal para as sociedades patrimonialistas. Onde houver um objeto kitsch, a indústria cultural terá tido êxito em implantar um gosto médio de uma classe social triunfante e possessiva, que conseguiu introduzir seus valores estéticos questionáveis na vida cotidiana, em geral [11].

O verniz democrático que dá um falso brilho à sociedade global kitsch se desfaz pela deficiência de seus consumidores em estabelecer uma análise crítica razoável sobre os produtos “democraticamente” oferecidos a todos com poder de adquiri-los. Se, na estética, o kitsch apresentaria um aspecto didático, a formação de um público médio infantilizado não ajudou em nada na conscientização do cidadão que ficou incapaz de refletir criticamente, também na política, diante de políticos demagogos e até criminosos que são conduzidos ao poder, com base em falsas promessas, por eleitores bestializados, sem o menor senso crítico, estético ou político. A sociedade kitsch global atual é uma demagogia sustentada pela infantilização do debate público que ela mesmo criou ao tornar cada vez mais medíocre o gosto popular e inibir a reflexão por parte do indivíduo. O resultado disso se mostra na degradação cada vez maior do meio ambiente, poluído pelas baterias tóxicas de aparelhos eletrônicos descartáveis, de acordo com os ditames da moda ecológica vigente ou da “obsolescência programada”, e pelo plástico da garrafa de refrigerante mundial que ergue montanhas de lixo nas grandes cidades e flutuam passivamente nas águas dos oceanos mais distantes, por exemplo.

Notas

1. Entretanto, no modo de produção comunista, por princípio, não há motivação para produzir e consumir objetos que ultrapassem as necessidades básicas do indivíduo. Na extinta União Soviética, a “dona de casa russa não [encontrava] nas grandes lojas coletivas variedade suficientemente ampla de tecidos para estofamento capaz de satisfazer sua necessidade de variedade e seu gosto doméstico” (MOLES, A.A. O Kitsch, cap.11, §VI, p. 196).
2. ADORNO, Th. W. “O Fetichismo na Música”, in Textos Escolhidos, p. 171.
3. Veja ADORNO, Th.W. Op.cit., p. 172/3.
4. Veja BAUDELAIRE, Ch. Sobre a Modernidade, §§III e IV, pp. 19 e ss.
5. Veja MOLES, A. O Kitsch, cap. 10, §VII, p. 176.
6. MOLES, A.A. Op.cit., cap.3, §, p. 32.
7. Veja MOLES, A.A. Idem, cap.3, §III, pp. 40/1 e cap.4, §VI, p. 61.
8. MOLES, A.A. Ibdem, cap.4, §VIII, p. 67.
9. MOLES, A.A. Ibd., cap. 10, § II, p. 163.
10. MOLES, A.A. Ibd., cap. 13, § p.222.

11. Veja MOLES, A.A. Ibd., cap. 13, §IV, p. 223.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Th. W. “O Fetichismo na Música”, in Textos Escolhidos. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
BAUDELAIRE, Ch. Sobre a Modernidade. – São Paulo: Paz e Terra, 1996.
MOLES, A.A. O Kitsch. – São Paulo: Perspectiva, 1972.
POE, E. A. “Filosofia do Mobiliário”, in Ficção Completa, Poesias e Ensaios. – Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.