Sobre a Violência

Texto sobre Política

A história da humanidade está repleta de exemplos nos quais o uso da violência ou a desobediência civil às leis estabelecidas foram as opções mais rápidas para que reivindicações éticas e políticas tivessem a apreciação da maioria conservadora, geralmente refratária às mudanças. No século XX e mesmo no atual, israelenses, palestinos, árabes, negros e mulheres tiveram de partir para ação direta a fim de valerem seus direitos a um território, justiça e reconhecimento de seus interesses legítimos. Em todas essas iniciativas extremadas, percebe-se um comportamento típico de grupos de pessoas que recorre a atitudes radicais sempre quando o diálogo acerca de um convívio equitativo é impedido pela corrupção dos canais democráticos comunicativos.
A obstrução dos canais de comunicação em uma sociedade corrompida proporciona uma assimetria total entre as partes. Contudo, o conflito só se generaliza depois de várias gerações terem visto frustradas as considerações de seus interesses, em um cenário onde um grupo esclarecido da sociedade tem seu poder decisório sustado por outro que se supõe detentor do apoio da maioria da população às suas colocações arbitrárias. Nem sempre o apoio da maioria às convenções oficiais resulta de deliberações bem informadas sobre a validade das justificativas apresentadas sem o devido contraditório.
Hannah Arendt

Arendt na varanda de sua casa em Koenigsberg, 1928.

Assim, nas vezes que a violência política aflora, ela está presa a relações de poder corrompidas, mesmo em democracias, quando mal constituídas. Autores e filósofos políticos do porte de Hannah Arendt (1906 – 1975), por seu turno, admitem o vínculo entre poder e violência, sob a ressalva de serem fenômenos distintos, apesar de se apresentarem com frequência juntos. Consagrada por obras monumentais, como As Origens do Totalitarismo (1951) e A Condição Humana (1958), Arendt fez uma análise exaustiva do extremismo político no seu opúsculo Da Violência (1970).

Sobre Violência

Para Arendt, o poder jamais derivaria da violência, pois sua legitimidade nasce tão somente da reunião de indivíduos em um grupo social e se mantém enquanto este estiver unido. A violência, todavia, possui um aspecto instrumental capaz de gerar um domínio eficaz através do emprego das armas, mas que cessa logo após sua aplicação. Ao contrário do poder, cuja existência se funda na união do grupo, a violência “está sempre à procura de orientação e de justificativas pelo fim que busca” [ARENDT, H. Da Violência, II].
Por ser instrumental, a violência bem executada consegue destruir o poder, submetendo o indivíduo e, quando sua ocorrência não se desfaz com a realização de seus objetivos, um estado de terror é implantado sobre os escombros da oposição desorganizada. A violência cresce, na interpretação arendtiana, na razão inversamente proporcional ao declínio do poder, sendo absoluta quando este está ausente, ou seja quando não há qualquer união no grupo.
Como um meio para obtenção de um objetivo, a violência se orienta pela racionalidade estratégica que justifica sua ação tendo em vista o fim a ser alcançado. Arendt descreve as situações nas quais o agir estratégico é acionado pela razão:

“a violência é um recurso enormemente tentador quando se enfrenta acontecimentos ou condições ultrajantes, em razão de sua proximidade e rapidez. Agir com deliberada rapidez vai contra a essência do ódio e da violência, porém isso não os tornam irracionais. Muito pelo contrário, tanto na vida pública como privada há situações onde a própria rapidez de uma ação violenta seja talvez o único remédio adequado (…) A questão é que em certas circunstâncias a violência -atuando sem argumentos ou discussões e sem atentar para as consequências – é a única maneira de se equilibrar a balança da justiça de maneira certa” [ARENDT, H. Op. cit, III].

Daí o ceticismo da autora sobre a possibilidade de um diálogo argumentado em condições adversas, onde “pessoas, que não têm a mínima noção do que seja respublica, se comportem de maneira não violenta e que discutam racionalmente no que se relaciona às questões de interesse” [ARENDT, H. Idem]. Indivíduos sem consciência política seguem apenas seus interesses imediatos, sob a ótica da sua vida privada. O que se agrava quando estes entes assumem cargos públicos, onde deveriam agir em função do interesse geral e não pessoal. Tais indivíduos não saberiam, portanto, agir orientados pela razão, a não ser a curto prazo e sob pressão.
Mesmo que se tratasse de uma sociedade hipotética, cujo poder se sustentasse em uma classe de pessoas de coeficiente de inteligência privilegiado – não é o caso do Brasil -, poder-se-ia duvidar se conflitos entre pessoas com menor capacidade intelectual não gerariam um ressentimento maior dos oprimidos, do que outras formas de regime diferentes da meritocracia. As desvantagens naturais e a mobilidade social, quase nula no caso de sociedade dominada pelas aptidões intelectuais, poderiam colocar um enorme número de pessoas sob a liderança de demagogos ressentidos contrários à situação, o que forçaria tal sistema a adotar a tirania ou o despotismo.

Dispositivos Institucionais

Neste contexto, o agravante estágio dos serviços públicos no Brasil gerou uma separação tão grande entre ricos e pobres, que acabou por se fomentar o uso da violência como método para redução dessa desigualdade. Os altos índices de criminalidade crônicos, decorrentes desse quadro instável permanente, provocou a deterioração da opinião pública, que acredita ser o estado de segurança arbitrário a melhor opção para solução desses problemas, apesar da ameaça constante aos direitos e garantias do indivíduo.
Tudo isso ocorre no país, cuja constituição, votada em 1988, foi saudada como uma das mais avançadas do mundo. Na constituição, dita “cidadã”, há dispositivos que proporcionariam ao debate os procedimentos adequados para preservar e conciliar os interesses particular e coletivo. O direito de obter qualquer tipo de informação dos órgãos públicos, assim como diversos institutos e instrumentos típicos da democracia direta, como: defensoria pública, plebiscito, referendo, iniciativa popular de legislação e a possibilidade de cada um propor ações que visem anular ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente etc. Além do mais, o estado está obrigado constitucionalmente a combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social de setores desfavorecidos e ainda foi instado a erradicar o analfabetismo e universalizar o ensino fundamental em uma década. No que fracassou completamente.
Disso se conclui que regras e dispositivos institucionais não são suficientes, embora necessários, para tornar uma sociedade justa. Não obstante, quando a inação e a tomada do poder se faz por grupos interessados apenas em se manter dominante, por qualquer meio, à população esclarecida cabe fazer avançar o processo de melhor distribuição dos recursos públicos, mesmo que tenha de empregar a violência no intuito de, afastando os interesses corrompidos, aproximar a realidade do discurso ideal, como até Arendt recomendou. A democracia não é um abrigo seguro para políticos corruptos e demagogos.

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