Beleza de Outro Mundo

ARISTÓTELES tinha consciência de que não fora o primeiro a tratar da arte retórica e da poética. Orgulhava-se, no entanto, de cuidar desses assuntos de modo organizado é fundamentado no raciocínio [1]. Segundo Diógenes Laércio (sec.III), os acadêmicos – membros da escola platônica – dividiam a arte em três tipos: o produtivo, de extração de recursos naturais; o transformador, tal qual as atividades da carpintaria e da forja de metais; e o que utiliza, na prática, dos objetos transformados para criar música, com o uso de instrumentos, a equitação e as artes maciais, pelo manejo de armas [2]. Os críticos literários posteriores, mencionados por Diógenes, como o estoico Possidônio de Alexandria (sec. III a.C), na obra Do Estilo, teriam definido poesia por sua “forma métrica ou rítmica estilisticamente isenta de vulgaridade”, em uma restrição ao conceito amplo que era adotado antes na língua helênica. De um modo geral, para os estoicos, a excelência do discurso estaria em uma linguagem pura, livre de vulgaridade e também elegante e erudita; lúcida; concisa; conveniente – adequada ao assunto – e distinta, isto é, sem coloquialismos [3].
A poesia, não obstante, seria ainda uma composição que imitaria as coisas humanas e divinas, diferente do que pensaria Dionísio de Halicarnasso (fl.30 – 8 a.C.), em pleno helenismo. Autor de vários temas, elaborou uma série de textos de crítica reunidos nos Tratados de Crítica Literária (c. 7 a.C.). Dos fragmentos que restaram do livro “Sobre a Imitação”, incluído nessa coletânea, três princípios são apontados como fator de melhora do domínio da arte poética: o dom natural; a aprendizagem intensiva e a prática constante [4]. A atração pela beleza levaria o artista a observar e reproduzir os modelos que admirasse. Na produção literária, a obra de arte não se limita ao mero “falar por falar”, porém visa a realização de bons discursos, no trato de assuntos públicos [5].
A admiração de textos belos dos autores antigos procura extrair as partes de uma obra, no sentido de formar uma outra figura perfeita e única. Raros seriam os autores, como Homero, dos quais se poderia imitar todo o estilo, considerado divino. De outros poetas, a cópia se faz dos caracteres, das paixões, do sentimento, grandeza e suas estruturas narrativas. Na dramaturgia, a concisão, a mescla entre o sublime e o prosaico são as atitude a serem imitadas, na tragédia. Na comédia, se buscam a clareza, a brevidade, a veemência e o gracioso, suas virtudes principais, de acordo com Dionísio [6].
Dos historiadores, a adequação dos personagens aos fatos é a melhor característica a ser copiada. Dos oradores, em geral, a elegância, a simplicidade, a capacidade de provocar indignação, a mistura de estilos renova a expressão da apalavra, até que o autor encontre seu próprio estilo. Dos filósofos, então, deve-se aprender a grandiosidade, clareza de raciocínio e a suavidade de transmitir seus diversos saberes [7].
Nos Ensaios e Miscelâneas, de anônimo, por vezes atribuído a Plutarco de Queroneia (46-120), considera-se o estudo da poética uma tarefa útil aos jovens. Pois atrai e estimula as virtudes. Os versos hexâmetros (de seis sílabas) de Homero, também conhecidos por heroicos, são tidos com métrica perfeita em uma linguagem bela e graciosa. O uso de metáforas e catacreses ajudavam a enriquecer o vocabulário e as expressões idiomáticas. Tal arte conduziria ao prazer intelectual pela contemplação e busca da verdade ao modo dos antigos costumes. Nos poemas homéricos, muitos aspectos da arte retórica despontavam. A saber, o método acusatório e a catarse – em passagens nas quais um personagem acusa outro de covardia e dissimulação, por exemplo. A clareza e habilidades oratórias são percebidas e absorvidas pelos leitores de seus textos. Lá, encontram-se discussões sobre política, ética e ciência, de forma direta e simples, sendo assim, uma introdução acessível a esses assuntos. Por tudo isso, o autor da coletânea recomendava aos jovens a leitura da pedagógica da obra de Homero [8].

Na poesia, a imitação da natureza é comparável à pintura narrativa, onde o belo e o feio podem aparecer expressos como na realidade ou como coisas justas, a despeito de suas condições improváveis e até indecentes. Diferente de Platão, mas na linha de pensamento de Aristóteles, Pseudo-Plutarco argumenta que tais contradições e exageros serviriam para apontar ou reprovar as consequências desastrosas de atos intemperantes [9].

Arte Sacra e Abstração

Na passagem do helenismo para a alta idade média, Plotino de Licópolis (203-270) destacava-se entre os principais filósofos a influenciar o pensamento da época que se seguiria. Em 244, depois de uma viagem à Pérsia e à India, inaugurou, em Roma, uma escola de filosofia que mesclava as ideias de Platão ao misticismo oriental, dando origem ao neoplatonismo. O conjunto de sua obra foi reunido por Porfírio (232-305), seu discípulo sírio, que a editou em seis volumes de nove livros cada, intitulados Eneadas.
A primeira Eneada trás em seu sexto livro, “Sobre o Belo”, as concepções estéticas idealistas de Plotino, inspiradas nos diálogos platônicos Banquete, Fedro e Hípias Maior. Aqui, a beleza corpórea resulta de uma participação da forma do objeto com uma ideia divina relacionada [10]. O juízo estético proviria da alma, que reconhece, através das proporções e ordem, a beleza mais elevada que está além da beleza sensível observada na matéria. Uma alma perturbada pelos prazeres impuros, mesclados pela matéria sensível e corporal, ao contrário, tende a sentir prazer em coisas feias [11]. A alma purificada encontra beleza em todas as coisas puras e claras. O reconhecimento de obras belas ocorre a partir de uma beleza que existiria em cada um que busque em si a virtude e a moderação.

Nenhuma alma veria o belo se ela mesma não fizesse bela (…) Em sua ascensão, alcançará primeiro a inteligência (nous) e saberá já que nela são belas todas as ideias e ainda poderá dizer que ali se encontra a beleza, isto é, as ideias: pois, por elas mesmas, que são os produtos e a essência da inteligência, têm realidade todas as belezas (PLOTINO. “Sobre o Belo”, in Eneada I, §9, p. 107).

A beleza é uma realidade verdadeira. Uma coisa bela, nesse sentido, é igualmente boa, e seu contrário, feia e má. O bem, portanto, se compara com o belo que o sucede, de acordo com Plotino [12].
Ao atingir o mundo superior, a alma pode contemplar e participar da beleza. O criador de todas as belezas está acima das potências e formas. Pois é um princípio infinito, sem forma que gera toda a forma inteligível [13]. Sem o Uno, ou a unidade que caracteriza esse criador imaginado por Plotino, tudo perderia a sua essência e beleza [14].
A teoria da arte de Plotino não vai muito além do ponto em que a havia deixado Platão. Tudo se restringe a uma noção inata de beleza que seria capaz de perceber os objetos belos na natureza ou produzidos pela ação humana, na medida em que afastasse das influências materiais e impuras que contaminam a alma. Não obstante, teve forte ascendência sobre os autores posteriores, principalmente nos padres fundadores do pensamento cristão.
Santo Agostinho de Hipona (Aurélio Agostinho, 354-430) foi um dos seguidores do neoplatonismo que se tornou o principal nome da patrística. Desde o início de sua carreira de filósofo, interessou-se por questões estéticas. Seu primeiro texto, perdido no tempo em que escrevia Confissões (397/8), chamava-se “Do Belo e do Conveniente” (c.380), mantinha um interpretação da beleza vinculada ao amor carnal. As aparências ornamentadas e formosas atraíam a atenção sobre os corpos em sua beleza terrena. Definia, então, o belo como aquilo que “agrada por si mesmo”, a partir de exemplos extraídos da matéria sensível. Mais tarde, considerou tais opiniões falsas [15].
De Música (c.391) continua o esforço de Agostinho em delinear um teoria estética abrangente. A maior parte do texto ainda trás um forte influência do neoplatonismo e doa pitagorismo, com sua marcada relação entre as leis numéricas e os elementos musicais, nos cinco primeiros livros. No sexto livro, no entanto, aparecem mais claramente os ideais cristãos, como maior fonte de inspiração. É provável que o texto tenha sido iniciado em sua passagem do paganismo para o cristianismo (386) e concluído após a nomeação para coadjutor das funções sacerdotais, em 391. Aqui, a música é considerada uma ciência regida pelas leis numéricas. A arte de imitação envolveria ciência e razão, sendo está localizada no espírito. As peças formaria um todo, quando possuíssem começo, meio e fim. A proporção numérica faz com que o meio concorde com o início e o fim [16].
Um conhecimento inato reconhece ritmo e acordes consonantes, na música, por conta de sua natureza espiritual. Do mesmo modo, a proporção é observada em outras artes, como a pintura e escultura. Um tipo de juízo natural inspira aprovação ou não da obra de arte. A simetria é bela, porque a igualdade e a semelhança que agradam provêm das relações numéricas proporcionais. A alma é superior ao corpo e à matéria sensível, cuja beleza é estimada conforme a dignidade da alma, semelhante aos ensinamentos Plotino. A alma dirige o corpo. E Deus – como o Uno -, por ser criador de tudo, gera a concordância percebida na música. Em sua ascensão, a mente humana encontra a beleza das coisas espirituais. O conhecimento inato é eterno e imutável. A beleza, igualmente imutável, precede à mutável, que desaparece no tempo.

Muito mais trabalhoso é o amor deste mundo. A alma não consegue encontrar a imutabilidade e eternidade que nele busca, porque a sua ínfima beleza se vai com o passar das coisas, e o que nessa beleza imita a imutabilidade é trazida até a alma desde o sumo Deus” (…) (AGOSTINHO. De Música, l. VI, cap. XIV, §44, p. 348).

O Deus interior fornece as virtudes necessárias para condução do corpo. A beleza dos números dos números que regem a música começa no uno, graças a sua igualdade, simetria e ordem. As virtudes cardinais – temperança, prudência, fortaleza e justiça -, junto às ideias inatas platônicas formam a base da teoria estética de Agostinho e afloram na conclusão de De Música.
Em A Cidade de Deus (413/27), obra maior de Agostinho, a tendência teológica predomina. Temperança, prudência, fortaleza e justiça são agora partes de uma só virtude que existe como existe um Deus Uno, sendo os outros deuses partes suas [17]. Tal virtude traduz-se, para os latinos, em arte de viver. Um sábio visa adquirir a capacidade de perceber o a verdade e o que é bom. Com essa habilidade alcança a sabedoria e a virtude una, imutável e soberana do bem que vence todos os vícios [18]. As obras humanas são avaliadas sob três aspectos: suas natureza ou engenho, arte ou habilidade, e uso refletido no resultado obtido, não apenas por seu fim venal. Deus seria o autor maior por sua excelência, eficácia e criação de algo bom [19]. Nesse sentido, a obra de arte e os poetas não devem ser banidos, quando fazem o verdadeiro retrato das maldades humanas em nome de deuses que não passariam de demônios [20]. Quanto ao julgamento da beleza, tal como em De Música, continua sendo feito pela inteligência humana superior e incorpórea. Há, entretanto, a consideração nova de que toda beleza está vinculada a sua utilidade.

(…) Deus teve em conta mais a utilidade que a beleza. Verdade é que no corpo não encontramos nada útil que não seja ao mesmo tempo belo” (AGOSTINHO. A Cidade De Deus, l. XXII, cap. XXIV, §4).

As concessões de Agostinho à produção artística sacra ou profana contrastam com o rigor anterior do advogado Quinto Septímio Florente Tertuliano (c. 155-240). Converso ao cristianismo na maturidade, Tertuliano não admitia nem um ídolo, imagem ou mesmo ornamentos que se antepusessem ou desviassem a atenção de sua reverência ao Deus único. Para ele, a idolatria – um dos crimes cometidos contra o culto à divindade (explicitamente proibido em Deuteronômio 5: 7 e 8) – manifestava-se de várias maneiras. Diversas artes produziriam embelezamentos que confeririam autoridade aos ídolos.

Luxo e ostentação têm mais devotos que todas as superstições (…) Se fizermos estas concessões (…), penso que não estamos livres do contágio da idolatria” (TERTULIANO. “On Idolatry”, cap. VIII).

Tal como em Platão, mas em não Agostinho, os poetas eram considerados fúteis, por atribuírem “aos deuses as paixões e invenções humanas” [21]. Toda beleza harmoniosa existente no cosmo faria parte da construção imensa, organizada e criada pela inteligência do Deus único.A polêmica da idolatria se estendeu até surgisse o movimento iconoclasta – destruidores de imagens – que enfrentava os defensores de ícones. A questão só seria pacificada, momentaneamente, depois que no II Concílio de Niceia (787), convocado pela imperatriz bizantina Irene de Atenas (752-803), se obteve a aprovação ao culto de imagens e reverência a quadros e estátuas, que representassem ações divinas, em clara contradição com passagens do Antigo e Novo Testamento. Mais tarde, com o protestantismo, o culto a imagens voltaria a ser combatido por correntes mais atentas ao texto bíblico. Sem embargo, as artes sacras formaram a tendência dominante na estética medieval, historicamente observada.

A caligrafia foi uma das artes favorecidas pelas restrições à figuração, durante a Idade Média. Mosaico arabesco, com caligrafia, de fortaleza em Alhambra (Espanha). Imagem em Domínio Público.

Entre os muçulmanos, prevaleceu a condenação à idolatria, em suas mesquitas e toda manifestação sacra. A figuração fora banida nos quadros e painéis, além de todo estatuário, sendo permitida apenas a reprodução estilizada da flora e da fauna. Por conseguinte, ouve um avanço no estilo arabesco abstrato e uma perfeição na arte da caligrafia, seguindo os preceitos da religião islâmica. A beleza pode transparecer, então, nos mosaicos e decorações notáveis de sua arquitetura e produções gráficas inconfundíveis. As críticas teológicas à idolatria, ao lado do movimento iconoclasta e à ascensão do islamismo, abriram as portas para o desenvolvimento da abstração, como forma de arte, ao final.

Notas

1. Veja ARISTÓTELES. Argumentos Sofísticos, cap. 34, 184b.
2. Veja DIÓGENES LAÉRCIO. Vida e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, l. IV, §100, p. 107.
3. Veja DIÓGENES LAÉRCIO. Op. Cit., l. VII, §59 e 60, p. 195.
4. Veja DIONISIO DE HALICARNASO. “Sobre la Imitación”, in Tratados de Critica Literaria, l. I, fr. 1, p. 483.
5. Veja DIONISIO DE HALICARNASO. Op.Cit., idem, idem, nota 1, p. 483.
6. Veja DIONINIO DE HALICARNASO. Idem, “Epítome”, l.II, pp. 490-493.
7. Veja DIONISIO DE HALICARNASO. Ibdem. idem, id, p. 498.
8. Veja PSEUDO-PLUTARCO. Essays e Miscellanies, pp.190 e ss.
9. Veja PSEUDO-PLUTARCO. “Como os Jovens Devem Interpretar os Poemas”, in Op.Cit., p. 248.
10. Veja PLOTINO. “Sobre o Belo”, in Eneada I, §2, p. 95.
11. Veja PLOTINO. Op.Cit., §5, p. 99.
12. Veja PLOTINO. Op.Cit., §6, p. 102.
13. Veja PLOTINO. “Sobre Como Tornou Existência a multiplicidade das Ideias e Sobre o Bem”, in Eneada VI, §32.
14. Veja PLOTINO. “Sobre o Bem e o Uno”, in Eneada I, §1.
15. Veja AGOSTINHO. Confissões, l. IV, cap. 15, p.84.
16. Veja AGOSTINHO. De Música, l.I, cap. III a V e XII.
17. Veja AGOSTINHO. A Cidade De Deus, l.IV, cap. XX.
18. Veja AGOSTINHO. Op.Cit., l. XXII, Cap. XXIV, § 3.
19. Veja AGOSTINHO. Idem, l. XI, cap. XXI.
20. Veja AGOSTINHO. Ibdem, l. IX, cap. VII.

21. TERTULIANO. O Testemunho da Alma, cap. I.

Referências Bibliográficas

AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. A Cidade De Deus. – Petrópolis, RJ; Vozes, 2017.
____. Confissões. – São Paulo: Abril Cultural, 1973.
____. De Música. – Porto Alegre: UFRS, 2014 (tese).
ARISTÓTELES. Argumentos Sofísticos. – São Paulo: Abril Cultural, 1973.
DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres – Brasília: UnB, 1977.
DIONISIO DE HALICARNASO. “Sobre la Imitación”, in Tratados de Critica Literaria. – Madrid: Editorial Gredos, 2005.
PLOTINO. Eneada – Buenos Aires: Aguilar, 1955.
PSEUDO-PLUTARCO. Essays e Miscellanies, in The complete works of Plutarch V. III. – New York: Crowell, 1909.
TERTULIANO. On Idolatry. – Disponível na Internet via https://www.mercaba.es/teologia/idolatria_de_tertuliano.pdf. Arquivo consultado em 2022.
____. O Testemunho da Alma. – Braga: Faculdade de Filosofia, 1984.

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