Jogos de Linguagem

QUANDO Ludwig J.J. Wittgenstein (1889-1951) entregou seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921) para publicação, pensava ter encontrado a solução definitiva para uma série de problemas linguísticos que embotavam a filosofia. Passados dois anos, essa convicção foi abalada depois de um encontro que teve com o jovem matemático inglês Frank P. Ramsey (1903-1930), que lhe apontou vários pontos críticos em suas ideias iniciais. Por causa de Ramsey, Wittgenstein retomou a pesquisa filosófica – que achava estar esgotada. Dessa vez, com o intuito de consertar os graves erros que reconhecera haver cometido no seu primeiro livro – o Tractatus. Com esse objetivo, voltou à Cambridge, em 1929, para concluir seu doutorado, um ano antes da morte prematura de Ramsey. Um dos grandes problemas novos a serem resolvidos estava na concepção inicial de uma “linguagem limitadora do mundo”, com a qual trabalhava antes, que fizesse parte do mundo, ao mesmo tempo que o limitava. Como a linguagem seria capaz de se autolimitar, enquanto estivesse inserida no mundo? Para resolver esta questão da relação entre a linguagem e o mundo, Wittgenstein se apoiou no conceito de “jogos de linguagem”, que serviriam mais tarde como fio condutor das Investigações Filosóficas, que foram publicadas em 1953.
Importante ter em mente que Wittgenstein escreveu as Investigações, entre 1945 e 1949, mais de duas décadas depois do Tratactus. Nesse meio tempo, várias anotações e esboços de textos foram depois catalogados e impressos postumamente, contendo aquilo que se pode chamar de evolução do conceito de “jogos de linguagem”. A concepção dos “jogos” permitia que se considerassem os aspectos públicos de uma prática que se assimilavam à linguagem e lhe era fundamentais, como a existência de regras constantes e sem contradições a orientarem suas ações. Todo jogo tem regras conhecidas por seus praticantes e qualquer pessoa que se decidisse compreendê-las e cumpri-las, poderia também jogá-lo. Assim, na “linguagem”, a gramática conservaria as regras necessárias para o desempenho eficaz de uma língua. Os falantes que seguissem as regras gramaticais também estariam aptos a falarem corretamente um idioma. Os jogos de linguagem, portanto, teriam um caráter público facilmente reconhecido por quem dominasse suas regras e soubesse desempenhá-las. Tais regras, ainda que tacitamente ensinadas, na prática diária de um jogo, poderiam ser inferidas a posteriori, como são as leis da natureza (veja WITTGENSTEIN, L. Philosophical Grammar, I part., sec. II, §§23 e 26 e Investigações Filosóficas, § 54, part I).
Philosophical Grammar (Gramática Filosófica) é um livro que reúne as anotações de Wittgenstein desde 1929 até 1934 sobre gramática, lógica e matemática. Na primeira parte, dedicada à gramática, sua vinculação com as regras de jogos, já havia sido ensaiada.

O uso de uma palavra na linguagem é o seu significado. A gramática descreve o uso das palavras na linguagem. Então, ela tem a mesma relação com a língua, tal como a descrição de um jogo, as regras do jogo, tem com o jogo (WITTGENSTEIN. L. Philosophical Grammar, I part., sec. II, §23).

O que não quer dizer que a gramática, como as regras de um jogo, tivesse de ser exaustiva, a fim de determinar o significado de uma palavra, na língua; nem as ações que fossem tomadas, pelos falantes, como as estratégias adotadas pelos jogadores, em um jogo. Não há no tênis, por exemplo, uma regra fixa que padronize o tamanho (até 74 cm de comprimento e 32 de largura), material (madeira ou metal) e o peso das raquetes usadas para rebaterem as bolas. Tudo depende da empunhadura do tenista e sua capacidade física de suportar a duração da partida com a raquete escolhida. Do mesmo modo, não existe em gramáticas, como da língua portuguesa, um sinal que indique a ironia, por exemplo, em uma frase. Tudo dependerá do grau de inteligência do falante da língua, ao interpretar uma fala como “irônica” (veja WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas, part.I, §66). A comparação entre linguagem e jogos depende da existência de regras e procedimentos reguladores desse tipo. O principal para a analogia entre jogos e linguagem permanecer válida é que prevaleça a ausência de contradição entre as regras que se podem praticar e suas efetivas aplicações (ver WITTGENSTEIN, L. Fichas, §685).
Fichas (1967) são outra coleção de pensamentos registrados por Wittgenstein, entre 1929 e 1948. Abrangem, portanto, um período mais amplo, no qual a concepção de jogo de linguagem se aproxima de comportamentos mais básicos, como se fosse um instinto pré-linguístico que permite à linguagem ser ensinada e praticada. A gramática da língua faria a ligação “metafísica” entre o mundo do pensamento e a realidade, que possibilita o domínio de diversos jogos de linguagem que vão sendo aprendidos ao longo da vida (veja WITTGENSTEIN, L. Fichas, §§43, 55, 430, 541 e 545).

As regras da linguagem permitiram as traduções dos textos em grego e hieroglifos egípcios contidos na pedra de Rosetta (196 a.C.), em 1822, por Jean François Champollion (1790-1832)

Nas Investigações, o autor tenta, então, superar de vez as objeções que Ramsey o havia feito na época de seu doutorado, sobre a impossibilidade da linguagem delimitar o mundo e ao mesmo tempo poder falar sobre ela mesma. A esse problema crucial, Wittgenstein imagina uma solução pragmática para linguagem, da qual será pioneiro. Na primeira parte, até o parágrafo 70, Wittgenstein adianta vários conceitos e críticas importantes acerca da linguagem e como esta é aprendida. Ele começa por usar a passagem de Sto. Agostinho, por considerá-la emblemática – um uso típico do senso comum, primitivo, de como se aprende a falar. Logo de cara ele refuta as concepções nas quais a linguagem seria aprendida pelo método ostensivo – de corresponder uma palavra a uma coisa relacionada (§§1-7). Nem haveria, também, representações às quais se pudesse recordar durante o uso da língua (§38 e ss).

Contra a ostensividade e representação, Wittgenstein retoma no §7 a ideia de “jogos de linguagem”, que vai desenvolver ao longo do livro. Por “jogos de linguagem”, ele chama todas as ações e linguagens que estariam interligadas. Jogos de linguagem englobam as atividades linguísticas primitivas e também o processo de aprendizagem da língua. Bem como um conjunto de atividades linguísticas que estão vinculadas com a forma de vida pela qual os falantes de um idioma se relacionam. Nesse sentido, os jogos de linguagem são uma atividade ou prática cotidiana que vão além dos simples atos de fala. Mais uma vez, os jogos são definidos por regras que podem ser inferidas, ainda que não sejam explicitadas. Tal regulamento não precisa ser exaustivo, para que um jogo seja delimitado. Diferenças entre os tipos de jogos seriam superpostas por “semelhanças de família” que contemplariam todos os usos possíveis de diversas práticas linguísticas (§§66 e 67). Ainda nessas passagens há uma crítica frontal às interpretações metafísicas da linguagem e a suposição de uma linguagem inata que as crianças teriam e ao entrarem em contato com adultos, procurariam traduzir suas falas de acordo com a língua pré-instalada (§32).
Na passagem 97, Wittgenstein retorna ao ponto do Tractatus, onde a lógica era o critério fundamental da verificação da verdade das proposições. Lá, a lógica e, por consequência, a linguagem podiam servir por si só como delimitador a priori do mundo. Agora, nas Investigações, a lógica vai deixar de ser algo “transcendente”, para estar imersa na própria realidade. No final desse parágrafo, o autor dá a deixa: “as palavras ‘linguagem’, ‘experiência’, ‘mundo’, se têm um emprego, devem ter um tão humilde quanto as palavras ‘mesa’, ‘lâmpada’, ‘porta'”. Ou seja, a lógica perde aquele estatuto pomposo de superestrutura, que tinha no Tractatus para fazer parte das coisas que existem no mundo da vida. Só assim, a lógica servirá para alguma coisa, como um jogo de linguagem específico que tem uma determinada função, em determinadas situações. As palavras, por sua vez, deixam de representar as coisas rigidamente, para assumirem seu papel dentro de um jogo de linguagem, semelhante às ferramentas que se usam para exercer uma função qualquer, segundo as regras desse jogo linguístico (a sua gramática), que não são necessariamente, as da lógica. Para Wittgenstein, palavras não são as coisas, apenas uma figuração, não representação, delas. A chave para entender isso já se anunciava no parágrafo anterior (96), no qual ele diz “mas para que são usadas essas palavras? Falta o jogo de linguagem no qual devem ser empregadas”. Jogo de Linguagem é a resposta que Wittgenstein vinha trabalhando há anos, e se completa nas Investigações. Servirá para quase tudo, a fim de resolver os problemas do Tractatus, onde sua principal ferramenta estava nas “Tabelas de Verdade”. Os jogos são costumes humanos que seguem determinadas regras. Para dominar suas técnicas, seria preciso praticá-los. O sucesso do entendimento humano reside na constância em que as concordâncias sobre as definições permitem o estabelecimento de comunicação entre as pessoas (§242).

A forma final dos jogos de linguagem de Wittgenstein aparece em poucas passagens de seu último livro: Da Certeza (1969). Escrito nos dois últimos anos de vida – 1949 a 1951 -, Da Certeza traz a síntese de sua concepção restrita sobre os jogos de linguagem. O papel da lógica indicado no Tractatus e discutido nas Investigações tem seu domínio delimitado. Reconhece-se o ser humano como um animal dotado de instintos primitivos que deram origem à linguagem antes do raciocínio. A dúvida que o pensamento suscita não está presente na formação inicial da linguagem. Primeiro se faz necessário que haja confiança no que está sendo ensinado, para que a linguagem se estabeleça adequadamente. Assim, a lógica primitiva e a experiência adquirida estão na base da linguagem. O jogo de linguagem pressupõe a verdade e uma certa universalidade desta. Quando as dúvidas ocorrem, provas devem ser exigidas. Um desempenho equivocado da língua é que provoca o ceticismo, em um jogo de linguagem. Por definição, um jogo não pode ser jogado com lances errados permanentemente. Tais são as passagens de Da Certeza – colhidas nos parágrafos 56, 370, 374, 401, 403, 440 e 441; 446, 475 e 497 – que definem o significado derradeiro que Wittgenstein teve sobre seu conceito de jogo de linguagem.

Referências Bibliográficas

WITTGENSTEIN, L. Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas, trad. M.S. Lourenço. – Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987.
____. Philosophical Grammar, Anthony Kenny. – Oxford: Basil Blackwell, 1974.
____. Fichas, trad. Ana B. da Costa. – Lisboa: Edições 70, 1989.
____. Investigações Filosóficas, trad. José C. Bruni. – São Paulo: Nova Cultural, 1989.
____. Da Certeza, trad. Mª E. Costa. – Lisboa: Edições 70, 1990.