Comunicação e Teoria dos Jogos

Comunicação e Teoria dos Jogos

Título de segunda unidade de curso em Discursus. van LEYDEN, L. "Os Jogadores de Xadrez" (1510)


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illiam Paul, habitante de Chico City – cidade imaginária da comédia televisiva brasileira -, no Livro de Visitas, pede informações sobre pesquisas que envolvam comunicação e teoria dos jogos.
Dois ganhadores do prêmio Nobel de economia já realizaram trabalhos sobre o assunto. Roger B. Myerson (Nobel de 2007), escreveu o artigo “Multistage Games with Communication”, para a revista Econometrica de março de 1986, onde trata do papel do mediador na formação de equilíbrios em jogos sequenciais com comunicação. Robert J. Aumann (Nobel de 2005), ao lado de Sergiu Hart tratou da comunicação sem custo no artigo “Long Cheap Talk” de 2002.
Além deles, Joseph Farrell trabalhou conceitos como significado e credibilidade em jogos com comunicação sem custo. “Meaning and Credibility in Cheap talk Games” é o artigo de 1993 publicado na revista Games and Economic Behavior. Ao lado de Matthew Rabin, Farrel voltou a falar de comunicação sem custo no esclarecedor “Cheap Talk” do Journal of Economic Perspectives, no verão de 1996.
Quem estiver interessado em mais informações, também poderá iniciar a leitura sobre o assunto através de Comunicação e Jogos numa Ética Naturalizada, onde teoria dos jogos, comunicação e ética são relacionados.

“Meu Muro Caiu”

Construção do muro

Início da construção do muro em Lindenstrasse. Fonte: Landesbildstelle Berlin.

Logo após o término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945}, a situação estava bastante confusa na Alemanha. Antes da capitulação incondicional do exército alemão, a 8 de maio de 1945, as potências aliadas firmaram o Protocolo de Londres, em 12 de outubro de 1944. Por esse compromisso, Estados Unidos, Grã-Bretanha e União Soviética dividiam a ocupação da Alemanha em zonas de jurisdição específicas submetidas às forças aliadas. A Alemanha perdia a soberania sobre seu território, ao mesmo tempo em que se procurava manter sua unidade de acordo com as fronteiras existentes em 1937. Um Conselho de Controle fora estabelecido em Berlim, cuja região metropolitana também seria dividida em quatro partes.
Berlim ficaria situada na zona de ocupação russa. Os russos haviam sidos os primeiros a tomarem a capital do III Reich. Por conseguinte, as tropas britânicas, francesas e estadunidenses, que estavam em menor número na zona soviètica, foram remanejadas para os seus respectivos distritos em Berlim, com os russos comandando a cidade a partir do setor leste, cortado pelo rio Spree. Diferente das demais zonas de ocupação, que ficavam sob a administração de uma potência aliada, em Berlim todas as quatro forças exerciam o controle em conjunto. Tudo sairia sem problemas se os conquistadores tivessem mantido uma política coerente para o pós-guerra na Alemanha.
A princípio, os soviéticos manifestaram a vontade de não desmembrar o país, enquanto a França, por querer anexar o Sarre, questionava a unidade alemã. A União Soviética e os comunistas alemães queriam reorganizar a Alemanha nos moldes socialistas. Nesse sentido, em abril de 1946, o Partido Comunista Alemão e o Partido Social Democrata fundiram-se no Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED). Contudo, em março do mesmo ano, os socialdemocratas dos setores ocidentais rechaçaram essa fusão. Isso marcou a primeira manifestação de independência dos partidos alemães ocidentais em relação aos orientais, que deu início ao processo de divisão política em Berlim.
Do lado soviético, os russos passaram a interferir cada vez mais na ocupação dos cargos públicos. Em 1947, a eleição do socialdemocrata Ernst Reuter para prefeitura é vetada pelos soviéticos. Neste mesmo ano, britânicos e estadunidense unem suas zonas administrativas e estabelecem as bases para formação do primeiro conselho econômico. A França, que no começo era contra a ideia de unificação, em 1949, adere à zona ocidental unificada. Desse modo, a parte ocidental pôde receber cerca de 1,5 bilhão de dólares através do Plano Marshall. Tal medida, tomada à revelia dos sovièticos, levou a União Soviética a abandonar o Conselho de Controle.
Tudo isso, devido ao fracasso da tentativa das quatro potências em lançar uma nova moeda para toda Alemanha, em substituição ao antigo marco do III Reich. Decididos a patrocinarem a reestruturação da economia européia, EUA, França e Grã-Bretanha decidiram fazer uma reforma monetária, trocando 10 Reichmarks por um Deutsche Mark. Sem o reconhecimento da União Soviética, milhares de novos marcos alemães sem valor entravam na zona sob seu controle. Ato contínuo, os soviéticos resolvem trocar a moeda alemã que circulava na sua região por um novo marco. De imediato, o marco oriental foi introduzido em Berlim para barrar o derrame de marco alemão. A tensão política logo se converteu em disputa econômica.
A fim de impedir o avanço econômico ocidental sobre Berlim e também para passar a ter controle total da capital alemã, a União Soviética resolveu restringir o acesso rodoviário à cidade, bem como o fornecimento de energia elétrica. Sem luz, Berlim teve de enfrentar a partir de junho de 1948, forte escassez de mantimentos. Como única saída, restou ao ocidente fazer uso de uma “ponte aérea” para abastecer a cidade. Um terceiro aeroporto foi construído no distrito de Tegel em 3 meses. Os aviões se sucederam então até alcançarem o intervalo mínimo de dois minutos. Em abril de 1949, atingiu-se o recorde de 13 mil toneladas desembarcadas em um só dia.
O anti-comunismo crescente e a iminente formação de um Estado independente do lado ocidental foram os estopins para o recrudescimento das hostilidades. Todavia, os objetivos soviéticos foram frustrados. Nem mesmo a suspensão do bloqueio a 5 de maio impediu a constituição da República Federal da Alemanha no dia 23 de maio. A chamada “Lei Fundamental” que fundou a nova Alemanha previa a participação da Grande Berlim na Federação, embora sob o controle administrativo dos aliados. Assim, Berlim acabou por se tornar um enclave ocidental por de trás da “cortina de ferro”, em plena Guerra Fria. A República Democrática Alemã foi proclamada em seguida, outubro de 1949, mas a parte oriental de Berlim permaneceu sob a tutela soviética, embora esse setor também tenha sido escolhido como a capital da Alemanha Oriental.
Enquanto os alemães, ocidentais e orientais, ganhavam certa autonomia, os berlinenses continuavam na condição de habitantes de um sítio ocupado. Nos anos que se seguiram, Berlim teve a divisão de seus setores militares acentuada pelo gradativo corte das comunicações. Em maio de 1952, as ligações telefônicas foram interrompidas. Em julho, os berleinenses ocidentais não puderam mais ingressar na Alemanha oriental. No começo de 1953, os ônibus e trens Urbanos pararam de circular entre os dois lados rivais. Além disso, o crescimento econômico dos alemães ocidentais motivou uma greve geral entre os trabalhadores de Berlim oriental contra o imposto de 10% sobre o trabalho e depois a reivindicação por eleições livres e a renúncia do governo. Apesar da revogação do aumento do imposto ter sido alcançada, bem como a promessa da melhoria da condição dos trabalhadores, o domínio soviético foi restaurado com a decretação do estado de sítio e a ocupação das ruas por tanques. Cinco mil pessoas foram presas, das quais cerca de 141 foram condenadas à morte, acusadas de serem agitadores. O conflito ocorreu apenas nas áreas sob o domínio da Alemanha Oriental e dos soviéticos, o que impediu a intervenção das forças ocidentais. Ficou claro, então, que Berlim passava a ser o polo onde os cidadãos da República Democrática poderiam confrontar seu padrão de vida com o ocidental. Muitos aproveitavam suas visitas aos setores ocidentais para não mais voltarem. Para os soviéticos, a situação só seria resolvida em definitivo com o esvaziamento de Berlim ocidental, por parte das tropas aliadas.
Em 1958, Nikita Sergeyevich Khrushchev (1894-1971), primeiro ministro soviético, lança um ultimato às potências ocidentais exigindo a retirada das três potências do lado ocidental de Berlim. Passado seis meses do prazo final, o impasse continuava. Em 1960, por toda fronteira ocidental o número de refugiados só fazia aumentar, sendo que 75% deles saíam através de Berlim. No intuito de garantir os direitos civis dos berlinenses ocidentais, os EUA reiteravam sua proteção à parte aliada da cidade. Por fim, na madrugada de 13 de agosto de 1961, o “muro da vergonha” começou a ser erguido. De forma abrupta, laços de amizade e parentesco foram interrompidos. Ao longo dos dois países e em torno de toda cidade guarda pelos ocidentais, as fronteiras foram fechadas.
Cruz no muro

Em memória dos que morreram na fuga. Fonte: Salvat Ed. do Brasil

A escalada da tensão até a construção do muro em Berlim constituiu o período inicial da Guerra Fria – na expressão cunhada já em 1947 pelo investidor estadunidense Bernard Baruch (1870-1965). Para não abalar o frágil equilíbrio do interesses que poderia detonar uam guerra atômica, as partes testavam passo a passo o limite da resistência moral do adversário. Por conta disso, Berlim teve de se sujeitar e servir de palco ao desenrolar dos acontecimentos internacionais. Nesse processo, cerca de 72 pessoas foram mortas ao tentar atravessar o muro sem autorização prévia, enquanto 3100 detenções foram efetuadas.
A construção do muro e o fechamento da “fronteira verde” visavam cessar o êxodo crescente de mão de obra especializada. A solução radical e desumana permitiu o desenvolvimento econômico da Alemanha Oriental [veja CLOS, M., CUAU, Y. A Revanche dos Dois Vencidos, p. 255]. Sem a possibilidade de escolha, restou a quem não quis se arriscar contribuir para melhorar a qualidade de vida para os que ficavam. Assim, a Alemanha Oriental acabou por se tornar o país comunista com a melhor infraestrutura. Porém, o sucesso do “paraíso socialista” obrigou a sua conversão em uma “prisão a céu aberto”. Foi só a partir de 1971, que uma política de distensão em ambos os lados proporcionou a retomada do diálogo e o fim das dificuldades de acesso a Berlim.
Cada vez mais, o muro da vergonha transformava-se em um lembrete da divisão artificial da Alemanha ao mesmo tempo que chamava atenção para o fato de que somente a coerção estrangeira inibia a reunificação do país e da coletividade alemã. Quando a corrida armamentista e a corrupção tornaram-se insustentáveis para um dos lados – notoriamente o soviético – o muro ruiu em pedaços pela determinação dos jovens alemães que, em 9 de novembro de 1989, ao som de Pink Floyd, alegremente punham “aquela coisa a baixo”. Foi mais uma vitória da perseverança dos indivíduos contra as ameaças de massificação das instituições autoritárias. Como diria Hannah Arendt (1906-1975), “o poder jamais florescerá da violência” [ARENDT, Da Violência, p. 29].

Continua…

Hospitais Doentes

O Grande Quarto dos Pobres

O Grande Quarto dos Pobres tela de Robert A. Thom (1915-1980). Coleção Parke-Davis

Essa Foucault já sabia: hospitais não são o melhor lugar para o tratamento de doenças transmissíveis. Michel Foucault (1926-1984), principal filósofo francês do século XX foi o primeiro a apontar a mudança de função dos hospitais franceses na passagem do século XVIII para o XIX. Os hospitais teriam deixado de ser internação dos pobres e controle da proliferação de doenças para se transformar em instrumento de investigação do indivíduo que perdia sua condição de sujeito autônomo e se tornava um mero objeto de estudo nas mãos de médicos comprometidos com a política de saúde social nascente.
A pandemia da influenza H1N1 veio confirmar o que aquela guinada no discurso clínico já representava. Os hospitais modernos não foram criados para o trato da doença, sendo apenas mais um aparelho de repressão ao indivíduo em poder do Estado. Quem quiser cuidar do seu mal contagioso deve ficar longe dos hospitais, pois poderá contaminar outras pessoas ou, se não estiver doente, contrair a moléstia em definitivo.
Com esta constatação, retomam-se os argumentos usados antes da origem das funções terapêuticas hospitalares. O revela-se não mais como uma “máquina de cura”, porém como depósito de doentes, fonte de novas patologias e infecções. Em O Nascimento da Clínica (1968) e diversos ensaios sobre o assunto são examinadas as razões pelas quais o papel do clínico domiciliar pôde se expandir para o de especialista em políticas públicas de saúde, limitador do contato entre ricos e pobres.
Depois da Revolução Francesa (1789), os pobres, até então ignorados politicamente, passaram a ser vistos como pessoas perigosas que ameaçavam os interesses dos mais ricos em manter seu poder sobre o restante da população. Antes – durante a Idade Média -, os hospitais, sob a direção das ordens religiosas em sua maioria, serviam como abrigo de doentes, em geral pobres e miseráveis, que para lá corriam a fim de passarem seus últimos dias e alcançarem a salvação da alma e não do corpo. [Veja FOUCAULT, M. “O Nascimento do Hospital”, pp. 101 e 102].
Dentro do hospital medieval e ainda renascentista, ficavam as pessoas à espera da morte e sua desejada purificação para entrada em uma nova vida. Eram centros de purgação dos males morais. Quem quisesse praticar a caridade deveria acorrer a um desses lugares. A partir da Revolução Francesa, a meritória causa revolucionária pelo fim da indigência teve os hospitais como um de seus alvos prioritários. O objetivo era acabar com a miséria e a consequente necessidade de hospitais. Naquele tempo, quando os hospitais eram considerados “coisa de pobre”, a medicina permanecia –como sempre foi- voltada para os que tinham condições de pagar por um atendimento domiciliar de melhor qualidade, considerando o estágio precário do conhecimento da época. [Veja FOUCAULT, M. “O Nascimento da Medicina Social”, p. 80].
Os revolucionários franceses não conseguiram acabar com a miséria, muito menos com os hospitais. Houve então a tentativa de adaptar essas instituições aos interesses do estado capitalista emergente. Nesse sentido, à medida que os médicos clínicos iam assumindo o controle dos hospitais – no lugar dos religiosos -, procurou-se saneá-los, a fim de torná-los seguros para a sociedade e não focos de propagação de todo tipo de moléstias. Com o intuito de manter os mais pobres com saúde para o trabalho industrial e menos perigosos para os ricos, foram destinadas verbas para o estudo das doenças hospitalares. Hospitais escolas e clínicas tinham nos pobres cobaias perfeitas para suas observações e experiências.
Desse modo, essa nova instituição assistencial passou a ser o principal destinatário das políticas de saúde social, sob o poder do estado e com a intervenção dos peritos médicos e sanitaristas. Os ricos não se importavam mais em pagar impostos e mesmo contribuir para que os hospitais examinassem as doenças dos pobres internados, uma vez que o conhecimento obtido serviria depois para a segurança do seu próprio tratamento, mais tarde. Tendo os hospitais se transformado em locais seguros e higiênicos, aqueles que podiam pagar por um melhor atendimento passaram a freqüentar hospitais particulares nos quais poderiam os mais ricos visitar e receber suas famílias sem maiores temores de contaminação. Por conseguinte, a medicina privada ganhava com o conhecimento obtido da observação dos enfermos menos favorecidos. [Veja FOUCAULT, M. “O Nascimento da Clínica”, pp.96 e 97].
Hoje, voltam os hospitais a serem os locais insalubres e ameaçadores do período pré-revolucionário. Superbactérias resistentes aos mais potentes antibióticos e vírus arrasadores que não podem ser restritos a uma área específica desafiam a sobrevivência dos hospitais. O episódio da gripe, que começou com o nome de “suína” (H1N1) para logo passar à letra “A” – que vem antes da “B”, o início de uma longa série de novas pandemias – , ajuda a refletir sobre o papel da hospitalização como parte de políticas de saúde pública.
Os turistas ricos – e não os pobres – foram os principais agentes disseminadores do H1N1. Em geral, essas pessoas foram dispensadas da internação hospitalar, posto que poderiam pagar por um melhor atendimento em suas casas, caso não necessitassem de tratamento intensivo. Sem a alternativa da medicina privada domiciliar, os pobres procuraram os hospitais como fazem desde a Idade Média. A ausência dos ricos faz com que os hospitais revelem novamente suas deficiências originárias, passando a ser foco de potencial propagação de doenças. Exemplo disso são os hospitais públicos brasileiros largados à própria sorte. Não por acaso, no Brasil, o número de óbitos pela gripe “suína” atingiu rapidamente 1411 pessoas até o início de novembro, quando no mundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) registrava 6071 mortos [Veja WHO. Pandemic (H1N1) 2009 – update 73 e BLOG DO MAURÍCIO. http://www.mauricio.beltran.nom.br/blog].
Os hospitais modernos, que no início pretendiam ser “máquinas de cura”, mostram sua total ineficiência no combate a doenças contagiosas. Quando as pandemias se alastram, fica evidente sua função, nem sempre explícita, de controle do indivíduo que se submete ao especialista de medicina. Nos hospitais, as pessoas internadas perdem o poder sobre si mesmas, enquanto são submetidas como objetos às prescrições de pretensas autoridades da saúde do corpo. O sujeito passa a ser tratado como objeto, assim que atravessa o portal de um centro hospitalar. Essas instituições, que nunca foram capazes de curar, não estão dedicadas ao tratamento das doenças, mas sim para o controle dos indivíduos que precisam ser habilitados para o trabalho na indústria ou serviço público. Diferente do que ocorreu nas penitenciárias, onde o criminoso perdeu sua condição de sujeito por ter cometido algum delito sério, sendo por isso observado integralmente pelo Estado, nos hospitais, se implementa a efetiva transformação do corpo humano em objeto de observação para todo tipo de experiência, sem que o indivíduo tivesse infringido qualquer lei. Os médicos não fornecem nenhuma explicação sobre as várias doenças a seus pacientes, limitando-se a prescrever para cada um o que julgam certo com base nas suas experiências, como se tivessem o conhecimento exato do assunto, como déspotas no auge de sua auto-suficiência, passando rapidamente de um enfermo a outro.
Um tratamento em que o sujeito doente fosse considerado como um cidadão livre deveria, ao contrário do que sucede nos hospitais modernos, prever visitas e procedimentos que acompanhassem desde o começo o curso natural das doenças. O diálogo entre médico e paciente deveria abranger também seus amigos e parentes, a fim de obter melhor conhecimento da pessoa que sofre a moléstia, ao mesmo tempo, em que se transmitiriam as impressões do que acontece da forma mais correta possível. Nada seria prescrito sem o consentimento do paciente e por meio dessa confiança se completaria o pleno restabelecimento da saúde, sem maiores imposições. Medidas como essas já haviam sido sugeridas por Platão (427-347 a.C.) em As Leis, há muito tempo atrás, mas pouco foram debatidas ou praticadas. [Veja PLATÃO. As Leis, liv. IV, 720 a e ss.]

A Busca por Padrões

Filhas de Odessa

Escultura em bronze do artista estadunidense Frederick Hart (1943-1999) foto: http://www.jeanstephengalleries.com

A filosofia surge na história em local e período específico. Por volta do século VII a.C., na região da Ásia menor conhecida como Jônia. As cidades-estados jônias propiciavam um ambiente favorável para formação de alguns cidadãos interessados na investigação dos princípios e conceitos fundamentais ao entendimento das transformações que ocorrem na natureza. Em comum, estas cidades-estados (Mileto, Cólofon, Éfeso, Clazômenas, etc.) tinham o comércio, nem sempre pacífico, com povos que faziam parte ora do Império Lídio, ora Persa, e outros países que margeavam o Mediterrâneo (Fenícia, Egito, Cartago). Além disso, cada uma dessas cidades (poleis) mantinha um espaço público, uma espécie de praça aberta chamada Ágora, onde os habitantes se encontravam quando iam ao mercado ou quando queriam debater as decisões políticas que precisavam ser tomadas frente às ameaças constantes de invasões. Independente do regime político de cada polis, também era discutida livremente a melhor forma de administrar as cidades que, em geral, não passavam de 100 mil habitantes.
Neste cenário, alguns cidadãos de origem nobre se destacavam por seus conselhos bem sucedidos e sua sabedoria. Em Mileto, Tales (cc. 624-545 a.C.), o principal dos chamados Sete Sábios da antiga Grécia [1], dedicou-se ao estudo da astronomia e matemática. A Tales foi atribuída a previsão do eclipse solar de 28 de maio de 585 a.C, cuja ocorrência interrompeu o conflito existente entre lídios e medos, segundo nos conta Heródoto de Halicarnasso (485-420 a.C.) em sua História. Outros dois teoremas da trigonometria que foram considerados de sua autoria permitiam medir a altura de qualquer elevação, como monte ou construções (as pirâmides, por exemplo), generalizando as regras praticadas por egípcios e persas nas medições de terras e de colheita. Foi Tales também que proferiu aquela que pode ser considerada a primeira “hipótese científica” ao dizer que “tudo é água”. Com base nas suas observações e na reunião de informações obtidas de sábios de outras culturas, Tales deu início às especulações que provocaram a pesquisa e o debate que se sucedeu sobre qual seria o primeiro princípio ordenador de tudo que existe na natureza (arche).
Depois de Tales, outros pensadores da própria Mileto e outras cidades vizinhas ampliaram as explicações de como as coisas deveriam se comportar no mundo, desde o início. Enquanto Tales afirmava que a água era a origem de tudo, logo em seguida Anaximandro (610-547 a.C.) e Anaxímenes (585-525 a.C.), dois de seus conterrâneos, defenderam que o elemento primordial ora seria “ilimitado” ou “indeterminado” (apeíron), ora seria o “ar” que circunda todas as coisas e sustentaria a Terra plana flutuando no espaço.
O começo da investigação filosófica enfatizava questões da física, ainda na ótica de uma tradição comum aos antigos – o poeta Homero (séc. VIII a.C.) e os egípcios acreditavam que o mundo e a vida tinham surgido das águas. Entretanto, o confronto com o “senso comum”, em sua suposta “sabedoria convencional”, já se fazia sentir nas críticas posteriores de Xenófanes de Cólofon (580-460 a.C.) aos maus hábitos dos aristocratas e a popular personificação dos deuses.
A estranheza causada por essa nova maneira de pensar o mundo – que descartava mitologia e religião como soluções definitivas – logo foi alvo das anedotas e fábulas narradas pelos poetas errantes (aedos e rapsodos) que perambulavam de cidade em cidade. Conta-se que certa noite Tales caminhava por uma estrada às escuras observando atentamente as estrelas, quando de repente caiu em uma vala aberta à sua frente. Foi salvo por uma serva trácia que lhe repreendeu indagando como poderia ser considerado tão sábio se não conhecia nem mesmo o que estava a seus pés. O questionamento sobre a utilidade prática da filosofia começava em seu nascedouro. Mas a resposta veio em seguida. Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.) registrou, por sua vez, que, com as descobertas feitas a partir de seus estudos, Tales pôde prever uma boa safra de azeitonas no ano seguinte e assim tratou de alugar antecipadamente todas as prensas de oliva disponíveis por um preço pequeno. Quando a boa colheita se concretizou, Tales tinha em mãos o monopólio da fabricação do azeite em sua região, o que lhe permitiu obter um lucro razoável, pois determinou por quanto quis o preço do uso de suas prensas. Desse modo, Tales mostrou que um filósofo poderia ficar rico se quisesse, embora esse não fosse o objetivo de sua atividade que é a de encontrar o conhecimento verdadeiro.

Continua…