Fundamentação Empírica da Moral

A fundamentação teórica não é tarefa de fácil execução. Enquanto os engenheiros se contentam em achar o solo firme onde fincar as sapatas que darão apoio à edificação, por vezes as características movediças do terreno exigem soluções que levem em consideração sua formação geológica que não estavam previstas no projeto original, por mais minuciosa que tenha sido suas observações antecedentes. Algo semelhante acontece sempre que os filósofos se afastam do ambiente estável das ideias abstratas e passam ao torvelinho dos fatos concretos. Não deixa de ser curioso notar que ao contrário da construção civil, onde a concretude da base é o fator crucial para sustentação da obra, a filosofia moderna – na tradição idealista – busque apoio na forma abstrata dos conceitos, sem levar em conta o conteúdo concreto fornecido pelo mundo natural, principal fonte do conhecimento.
As tentativas históricas melhor sucedidas são justamente aquelas que, desde Platão, procuravam firmeza num mundo ideal perfeito, capaz de dar conta dos fenômenos considerados imperfeitos na natureza. Ao lado do pensador ateniense, Descartes e Kant formam a tríade emblemática dos principais construtores de modelos filosóficos apriorísticos. O conjunto das obras desses autores causa admiração, por resultar numa arquitetônica elaborada por mentes muito astutas, e até hoje diversos comentadores e filósofos estudam seus textos, remetendo amiúde a eles. Aristóteles, Hume e Hegel constituem outro trio poderoso que simboliza as correntes, cuja recusa de um mundo ulterior forçou o desenvolvimento de teses voltadas à explicação dos eventos materiais, no âmbito de suas evoluções naturais, perceptuais ou históricas. Essa dupla trindade – platônica e aristotélica – representa os dois estilos predominantes entre aqueles pensadores inclinados a procurar uma fundamentação para suas teorias, seja de modo a priori (fora do mundo real), seja empírico (a partir de experiências no mundo real).
Embora todo filósofo tente esclarecer a maneira pela qual as coisas se dão, a resposta à pergunta do “porque assim e não de outro modo” obrigou muitos interessados na solução do problema a postularem uma fundamentação última, da qual tudo mais derivaria. Por vezes, tal projeto redundava numa proposta que tomava contornos arbitrários semelhante à escolha da peça que vai iniciar a montagem de um quebra-cabeça. A peça inicial do jogo poderia ser a mesma que o completaria. Doutra feita, a fundamentação proposta atuaria como nos jogos de armar, garantindo o encaixe perfeito das peças superpostas. Ainda assim a peça inaugural deveria se apoiar sobre uma base não problematizada fora da armação. Apenas a coerência e a consistência da estrutura montada seria suficiente, neste caso, para validar a existência da instalação.
Arquitetônica, quebra-cabeças, jogos de armar… a análise, até aqui, não passaria de mera crítica estética não fosse a intervenção da figura do cético. Sem ele, a exigência de fundamentação se confundiria a um apelo pela elegância ou tendência a padrões harmônicos típicos da matemática. O ceticismo surge na história da filosofia em oposição às doutrinas dogmáticas da antiguidade que julgavam ser possível encontrar um critério de verdade. Os céticos combatiam todas as escolas sem no entanto por algo em seu lugar. Assumiram frequentemente o papel de questionadores, observadores, pesquisadores para ao final proporem a suspensão do juízo. Eles tinham por absurda as conclusões que os dogmáticos extraíam de seus princípios, os quais consideravam simples suposições e não verdades demonstráveis.
As diferentes teorias que pretendiam refletir sobre um só objeto mostravam o quanto as questões filosóficas eram, como ainda continuam sendo, cheias de incertezas e contradições. Os argumentos invariavelmente caiam ora numa regressão ao infinito, tornando impossível encontrar uma verdade basal sem recorrer a uma outra explicação; ora estavam relacionados uns com os outros, impedindo o conhecimento isolado de um objeto. Além disso, os céticos criticavam aqueles que aceitavam os princípios das coisas por elas mesmas sem exame, pois sempre se poderia formular princípios opostos igualmente dogmáticos. Eles também condenavam as provas circulares de uma verdade por uma outra que lhe fosse subordinada. Assim, Diógenes Laércio resumia a estratégia das ideias pregadas por Pirro:

Os céticos eliminavam toda demonstração e não admitiam um critério, um sinal, uma causa, nem o movimento, nem a instrução, nem o vir a ser, nem o princípio de existência de qualquer coisa boa ou má por natureza. Eles afirmam que toda demonstração consiste (…) em coisas demonstradas, essas coisas também terão necessidade de uma demonstração, e assim por diante até o infinito, se consiste em coisas indemonstradas, basta que todas as coisas, ou algumas, ou mesmo uma única coisa, suscitem dúvidas, para que todo o conjunto permaneça indemonstrado. E acrescentam que se alguém admite a existência de certas que não necessitam de demonstração alguma, a inteligência dessa pessoa é extraordinária se não percebe que até isso deve ser demonstrado, (…) Além disso, se as demonstrações isoladas não merecem fé, necessariamente as demonstrações gerais devem ser recusadas como destituídas de valor. Para reconhecermos a validade de uma demonstração, essa demonstração necessita de um critério da verdade, para reconhecermos a validade de um critério, esse necessita de uma demonstração, logo, um se respalda no outro e vice-versa, e nem um nem o outro pode ser conhecido. (DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, liv. IX, cap. XI, §§ 90 e 91).

Incapazes de propor qualquer critério de verdade ou demonstração, os pirrônicos pregavam, coerentemente, a suspensão do julgamento, a fim de se alcançar a serenidade da alma. Apenas a aparência das coisas, as leis e os costumes deveriam ser obedecidos. Ainda segundo Laércio, Timon, um dos discípulos de Pirro, afirmava que “como tal, o objeto é duvidoso, mas eu declaro que ele me parece tal”. Para Timon, a aparência era rainha e mestra de tudo que nela se apresentasse [1]. Nesse sentido, apesar de refutar toda forma de afirmação de uma verdade acessível ao entendimento humano, os céticos clássicos, a partir de Timon, forneciam um critério pragmático que proporcionava ao próprio cético ambiente para elaboração de suas críticas, sem cair em contradição. Agora, ao invés de uma certeza plena da verdade, a aparência das coisas seria o ponto comum sobre o qual se apoiaria o discurso.
Foi só no século XVII, com o advento do cartesianismo que a postura cética se modificaria. Não bastasse os obstáculos interpostos pelo ceticismo antigo aos métodos de investigação filosófica, deixando apenas o delgado fio da aparência como suporte de informações acerca do realidade, o papel do cético foi ampliado ao extremo, nas meditações entabuladas por Descartes. Com o francês de La Haye (atual Descartes), a dúvida radicalizou-se a tal ponto que não só os sistemas anteriores eram questionados, mas a própria aparência era posta em debate. Ao contrário dos gregos, o cético moderno criticava sobretudo a maneira pela qual as coisas se apresentavam como sendo uma via pouco eficaz de formar qualquer conhecimento que seja sobre o mundo. A astúcia do raciocínio cartesiano estava em mover o pirronismo de sua posição cômoda, diante das doutrinas dogmáticas, e forçá-lo a renunciar aos sentidos e tudo que, ao menos uma vez, tivesse sido enganoso. Destartes, pelo novo método estabelecido em 1639, nada que fosse afirmado era passível de confirmação sem o apoio de uma primeira certeza fundamental. Portanto, se era forçado a admitir que a pesquisa por algo certo deveria abdicar o aprendizado do mundo e seguir em direção daquilo que se mostrasse clara e distintamente como verdadeiro [2].
Se com a tradição cética uma fundamentação empírica tornava-se problemática, a partir de Descartes, toda tentativa no sentido de fundar a verdade que não se afastasse das incertezas mundanas estaria condenada ao fracasso. Enquanto os críticos antigos se detinham na constatação da mutabilidade das coisas e com isso sossegavam, os modernos, porém, passavam a duvidar da existência dos próprios objetos dados à percepção. Arrombada essas portas, restava ao pesquisador por o mundo entre parênteses para poder em fim dar início a algum tipo de ciência acessível ao entendimento.
O fundamentalismo, em Filosofia, aparece então como consequência de um debate histórico entre os adeptos de uma determinada corrente de pensamento que pretende definir o âmbito no qual a verdade se apoia e seus críticos. A opção imaginada por Descartes, ao mesmo tempo em que propunha uma radicalização na análise das doutrinas dogmáticas, indicava o caminho a ser trilhado por quem o sucedesse.
A intenção de Descartes, ao que se supõe, visava anular os ataques céticos, encontrando o ponto arquimediano inabalável. O método cartesiano, nesse sentido, proporcionou a inauguração de um novo dualismo entre dois mundo, o sensível e o inteligível. Todavia, diferente de Platão, o ex-aluno de La Flèche não apelava para um reino paralelo donde, por reminiscência e iniciação nos mistérios, se buscaria o “verdadeiro ser” [3]. Ao invés disso, Descartes procurava encontrar “somente uma coisa que seja certa e indubitável” [4]. A coisa pensante cartesiana era a base para o devido conhecimento da essência ou ideia de Deus e tudo mais que fosse verdadeiro,

(…) pois, como já disse anteriormente é uma coisa evidente que deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto em seu efeito. E portanto, já que sou uma coisa pensante, e tenho em mim alguma ideia de Deus, qualquer que seja, enfim, a causa que se atribua à minha natureza, cumpre necessariamente confessar que ela deve ser de igual modo uma coisa pensante e possuir em si a ideia de todas as perfeições que atribuo à natureza divina. Pois se ela a tem de si própria segue-se, pelas razões que anteriormente aleguei, que deve ser ela mesma Deus; porquanto, tendo a virtude de ser e de existir por si, ela deve também, sem dúvida, ter o poder de possuir atualmente todas as perfeições cujas ideias concebe, isto é, todas aquelas que em concebo como existentes em Deus. Se ela tira sua existência de alguma outra causa diferente de si, tornar-se-á a perguntar, pela mesma razão, a respeito desta segunda causa, se ela é por si, ou por outrem, até que gradativamente se chegue a última causa que se verificará ser Deus (…)

(…) Parece-me muito a propósito deter-me algum tempo na contemplação deste Deus todo-perfeito, ponderar totalmente à vontade seus maravilhosos atributos, considerar, admirar e adorar a incomparável beleza dessa imensa luz, ao menos na medida em que a força de meu espírito, que queda de algum modo ofuscado por ele, mo puder permitir.

Pois, como a fé nos ensina que a soberana felicidade da outra vida não consiste se não nessa contemplação da Majestade divina, assim percebemos, desde agora, que semelhante meditação, embora incomparavelmente menos prefeita, nos faz gozar do maior contentamento de que sejamos capazes de sentir nesta vida (DESCARTES, R. Meditações, III, §35 e §41/2, pp. 110-113).

Convém realçar certa constância na ocorrência de determinados termos, sempre que se tem em mente o projeto de fundamentação, seja na estratégia platônica, aristotélica ou na cartesiana, aqui exposta. Não raro, se depara com noções de Deus, causalidade, liberdade e motivação, quando se quer saber sobre o conhecimento verdadeiro, seja da existência das coisas, seja da relação do homem com a natureza, ou com outros homens.
Deus – guardada as devidas diferenças típicas do uso de um conceito absoluto em teorias consideradas opostas – ocupa um lugar fundamental em qualquer sistema filosófico tradicional, tanto na teoria do ato e potência aristotélica, como no método racionalista cartesiano. Até mesmo Kant, que, ao contrário de seus antecessores, procurava encontrar no sujeito e não fora deste as condições formais do conhecimento, teve de defender a necessidade de manutenção de tal ideia, a fim de tornar inteligível a relação causal que liga todas as coisas no mundo.
Nas “Antinomias da Razão Pura” – mais precisamente no “Quarto conflito das ideias transcendentais” -, o autor da Crítica da Razão Pura mostra as dificuldades de se afirmar ou negar a existência de um ser absolutamente necessário, fora do domínio da representação. Por isso, argumentava em favor da manutenção de tal concepção no intuito de fundar de modo determinante a origem de todas as coisas [5].
Contudo, colocar Deus na ponta inicial de uma cadeia causal exigia algo mais além da mera especulação, graças a insuficiência objetiva de sua demonstração. Uma simples negação dos efeitos do ser supremo sobre as leis práticas poderia ocasionar a falta de motivação para sua aceitação. Como alternativa à carência de uma justificação melhor estruturada para explicar a necessidade das coisas e a obrigatoriedade de uma tomada de posição, na qual a razão repousasse em sua busca de conhecimento, Kant assumia por interesse prático, a existência de um ser supremo [6].

O ideal do Ser supremo, de acordo com estas considerações, não é mais que um princípio regulador da razão e que consiste em considerar toda a ligação no mundo como resultante de uma causa necessária e absolutamente suficiente, para sobre ela fundar a regra de uma unidade sistemática e necessária, segundo leis gerais na explicação dessa ligação; não é a afirmação de uma existência necessária em si (KANT, I. Crítica da Razão Pura, A 619/B 647).

Como princípio regulador, portanto, o ideal do ser supremo servia somente à razão especulativa com o propósito de fornecer o acabamento fino ao conhecimento humano. Dessa forma, a condição material de tal conceito era negada, apesar de não se poder refutá-la, nem provar sua realidade objetiva [7]. O dualismo surge, então, em todas as tentativas clássicas que, de uma maneira ou de outra, visavam fundamentar um sistema teórico.
Em moral, entretanto, novos complicadores aparecem quando se apela para reinos paralelos na justificação dos princípios adotados. Ao se separar razão prática dos interesses materiais, o delicado elo da motivação é rompido. De fato, o “eu” moral, por si só, não está apto a definir o rumo de suas ações sem antes entrar em contato com o mundo e estar atento para a viabilidade de execução de seu projeto vital. Fora desse mundo, o sujeito tende a cair num formalismo cego, alheio ao conhecimento das possibilidades de aplicação dos preceitos morais.
A alternativa ao dualismo na moral é um monismo naturalista. No entanto, tal opção traz consigo temores que estão ligados a uma visão determinista da natureza e a provável perda da autonomia e liberdade, da crença num bem supremo ou da capacidade de se atribuir responsabilidade a uma pessoa. A seguir, serão abordadas as estratégias sugeridas por Kant, Hume e Hobbes para fundamentação da moral e, na continuação, o tratamento que a ética do Discurso deu a esse tema.

Fundamento Moral

Tudo que se disse sobre a fundação do conhecimento teórico, em geral, se aplica, mutatis mutandis, à filosofia prática. Moral e ética padecem, com frequência, da oscilação entre o dualismo e o monismo. Entre os dois reinos kantianos e os sentimentos morais humeanos.
Desde a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant pretendia fixar o “princípio supremo da moralidade”. Tarefa que na opinião do pensador alemão se distinguia totalmente “de qualquer outra investigação moral” [8]. Supondo que a natureza tenha dotado o homem de razão, a fim de que esta produzisse não apenas uma vontade boa como um meio de alcançar seus fins, mas sobretudo uma vontade boa em si mesma, Kant acreditava estar nisto a condição e bem supremo de toda aspiração de felicidade. O transcurso da natureza e o cultivo da razão permitiria até mesmo uma eventual eliminação da procura da felicidade, se a satisfação completa dos desígnios da razão obrigasse o abandono dos fins propostos pela inclinação [9].
Agir por intermédio da boa vontade, segundo a análise kantiana, seria o mesmo que atuar por “Dever”, no qual estaria contido o próprio conceito de boa vontade. Para o autor da Fundamentação…, uma determinada máxima teria conteúdo moral, sempre que se propusesse uma ação por dever, independente das inclinações ou qualquer outra tendência – egoísta ou não – capaz de macular o valor intrínseco da conduta prescrita. Uma hipotética coincidência entre uma atitude motivada pelos desejos naturais, afetados pela sensibilidade, e os mandamentos racionais, no máximo, indicaria um comportamento “conforme ao dever, mas não por dever” [10].

O valor moral da ação não reside, portanto, no efeito que dela se espera; também não reside em qualquer princípio da ação que precise o seu móbil a este efeito esperado. Pois todos estes efeitos (…) podiam também ser alcançados por outras causas, e não se precisava portanto para tal da vontade de um ser racional, na qual vontade (…) se pode encontrar o bem supremo e incondicionado (KANT, I Fundamentação da Metafísica dos Costumes, B 15).

Ao restringir por completo a influência da sensibilidade sobre uma ação com valor moral, restava apenas à vontade a determinação objetiva da lei (aceita por todos os seres racionais) e o respeito subjetivo expresso numa máxima que ordenasse o cumprimento da lei, a despeito de todas as inclinações, em favor ou contrárias a ela. Nem mesmo tal respeito poderia ser considerado como “um sentimento recebido por influência” das inclinações, pois não passava de um sentimento produzido por si mesmo através da razão, que para Kant o diferenciava das outras formas de desejos relacionados com a sensibilidade [11].
Assim, estava lançada a pedra fundamental para reprodução do divórcio entre razão e sensibilidade na moral, tal como no conhecimento da verdade, em geral. Ao longo da Fundamentação…, Kant desenvolveu o resto do raciocínio pelo qual pensava extrair do conhecimento moral da razão humana vulgar o princípio de universalização capaz de transformar máximas subjetivas em leis práticas objetivas de todos os seres racionais. O imperativo categórico que ordenava imediatamente o comportamento do indivíduo, sem apelar a qualquer outra intenção, ordenava, em sua primeira formulação: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” [12].
A existência de tal mandamento não poderia derivar da constituição particular da natureza humana. Para ser uma necessidade prática incondicionada da ação de todo ser racional, o princípio objetivo da moral teria de vincular-se a priori (totalmente fora da experiência sensível), ao conceito de vontade do respectivo sujeito. Somente desgarrado de todo condicionamento natural, ao qual estão presas as coisas que são instrumentalizadas de acordo com um determinado fim, a vontade livre de todo ser racional, entendido como fim em si mesmo, reconheceria como seu objetivo e de todos os seus pares: a lei prática universal, um fim em si mesmo. Eis porque a terceira formulação do imperativo categórico já punha a humanidade – a comunidade de todos seres racionais – como fim a ser respeitado por toda lei moral. “Age – decretava Kant – de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” [13].
O princípio de Humanidade adotado por Kant, ao lado do de natureza racional, tomados por fim em si mesmo não eram extraídos da experiência. Eles permitiam limitar os fins subjetivos dos homens que deles participavam e para que “a ideia da vontade de todo o ser racional concebida como vontade legisladora universal” pudesse ser inferida. No entanto, é num Reino dos Fins imaginário que tais seres estariam sistematicamente ligados e submetidos pela lei, sem se tratarem como meios, porém fins em si. Sendo um membro deste reino e também do mundo sensível, o ser humano, enquanto racional, estaria livre para reconhecer a autonomia da vontade legisladora universal, no mundo inteligível. D’outro modo, seria obrigado a seguir a lei moral, por pertencer ainda ao domínio da sensibilidade, no mundo sensível [14].

Todos os homens – dizia Kant – se concebem como livres quanto à vontade (…). No entanto esta liberdade não é um conceito da experiência, nem pode sê-lo, pois se mantém sempre, mesmo que a experiência mostre o contrário daquelas exigências que, pressupondo a liberdade, se representam como necessárias (…). Por isso a liberdade é apenas uma ideia da razão cuja realidade objetiva é em si duvidosa; a natureza, porém, é um conceito do entendimento que demonstra, e tem necessariamente de demonstrar a sua realidade por exemplos da experiência (KANT, I . Op. cit., B 113/4).

A conciliação entre a liberdade do indivíduo e a submissão deste às leis naturais era um problema ao qual o filósofo de Königsberg (atual Kaliningrado russa) tinha plena consciência. A contradição entre liberdade e não-liberdade no mesmo ser humano, ficava explícita quando o mesmo ser era obrigado a obedecer a lei moral, como um objeto perturbado pelos sentidos e simultaneamente comandava suas ações, através de uma razão independente das impressões sensíveis. Depois de criar um engenhoso esquema, no qual expunha as bases de uma moral fundamentada na razão, Kant chega, no final de sua Fundamentação…, a constatação da incapacidade de se conceber ou conhecer a liberdade segundo parâmetros de leis naturais. Seu valor, no entanto, seria a de um pressuposto necessário da razão dotada de vontade. Constatada a impossibilidade de explicar o fundamento moral, restava apenas defendê-lo como um fato sustentado pelo sentimento moral, que para Kant era “o efeito que a lei exerce sobre a vontade e do qual só a razão fornece os princípios subjetivos” [15].
Causa e efeito se confundem. Para que a razão “inspire” um “sentimento de prazer” é preciso que estes sejam reconhecidos, ao mesmo tempo, que aquela. Tal como no objeção pirrônica, a causa é causada pelo que causa, assim como o pai só e pai por ter gerado, ao menos, um filho. Toda arquitetônica proposta por Kant, recebe seus primeiros reparos na prancheta de projetos. Uma espécie peculiar de causalidade, impossível de ser compreendida em termos naturais, é invocada para defender o total desconhecimento da maneira pela qual um pensamento a priori, que nas palavras do próprio Kant, “não contém em si nada de sensível, pode produzir uma sensação de prazer ou dor” [16].
À explicação do modo pelo qual a liberdade atua como causalidade de uma vontade, Kant dá o braço a torcer:

Pois aqui abandono eu o princípio filosófico da explicação, e não tenho outro (…). Da razão pura que pensa este ideal nada mais me resta, depois de separar dela toda a matéria, (…) do que a forma, (…) a lei prática da validade universal das máximas e, em conformidade com ela, pensar a razão em relação com um mundo pouco inteligível (…) como causa determinante da vontade; aqui o móbil tem que faltar inteiramente, a não ser que esta ideia de um mundo inteligível fosse ela mesma o móbil ou aquilo por que a razão toma originariamente interesse; mas tornar isto concebível é exatamente o problema que nós podemos resolver (KANT, I. Idem, B 125/6).

Da mesma maneira que concebia Deus, como causa da existência da substância, independente de todas as condições do mundo sensível, como a “existência de um ser em si mesmo”, Kant construía de modo análogo sua defesa da liberdade absoluta. Assim como o Deus na razão especulativa, a liberdade constituía a “pedra angular” de todo sistema da razão pura, demonstrada por uma lei necessária da razão prática [17].
No entanto, Kant tinha um problema. Sua Fundamentação… chegou a um ponto, além do qual cessava todo entendimento, ao contrário da meta inicial, seu projeto estava longe de esclarecer o dilema moral do ser humano. A cisão do homem em dois reinos nada ajudou nessa tarefa. O dualismo, na moral, não decolava do papel. A tentativa posterior de derivar a razão prática da pura, por intermédio de um Faktum (fato ou destino) da razão, que toma consciência de si mesma, não se mostrou mais plausível. A Crítica da Razão Prática, a fim de fugir da contradição da liberdade com as leis naturais; da circularidade entre a vontade livre que se autodetermina; da inconsequência da determinação da lei moral, em relação à ação humana, Kant recai num arbitrário fato, que, embora, não fosse empírico, mantinha o abismo entre os dois mundos, inteligível e sensível [18].
Antes de Kant fundar o reino da moral, Hume já colocara em dúvida a possibilidade de se construir um sistema moral fora dos parâmetros da experiência. Ao invés de por na liberdade da vontade e na autonomia do sujeito todo peso de argumentação em pró de princípios a priori da razão pura prática, ele defendia que princípios universais só poderiam se sustentar graças ao sentimento moral generalizado na natureza humana [19].
O ceticismo de Hume contra toda teoria moral que não fosse empírica foi um incômodo para Kant. O filósofo escocês, que fora responsável por despertar o filósofo alemão de seu sono dogmático, converteu-se no adversário cujo desafio à fundamentação pura da moral mereceu atenção redobrada do autor da Crítica da Razão Prática. Kant admitia ser “a doutrina cética humeana” o motivo de ter iniciado toda sua arquitetônica, a partir da primeira Crítica… [20]. A solução de Hume para a dúvida cética extremada, contra toda especulação, todavia, era inaceitável da perspectiva kantiana.
Kant recusava, de modo enfático, que um princípio empírico pudesse ser base suficientemente forte para sustentar todo um sistema universal necessário. Como é sabido, Hume apontava no costume ou hábito um “princípio de natureza humana” que determina a inferência de todo e qualquer processo de raciocínio cujo resultado implica na concepção de causalidade, pela qual um objeto produziria o outro [21]. Na …Razão Prática, o conceito de causalidade humeano, por ser sustentado numa “necessidade subjetiva ” – o hábito -, era considerado como se fosse “obtido subrepticiamente e não de modo legítimo” dada à conexão arbitrária e casual entre a causa e efeito dos objetos da experiência, tomadas como coisa em si. Para Kant, entrementes, objetos empíricos não poderiam ser concebidos de tal maneira, pois a seu ver eles não passavam de meros fenômenos, logo “devem estar necessariamente ligados de algum modo numa experiência (…) e não podem separar-se sem contradizer aquela conexão, graças à qual é possível esta experiência, na qual eles são objetos e unicamente para nós cognoscíveis” [22].
Assim sendo, pensava Kant ter demonstrado a realidade objetiva do conceito de causa, aprioristicamente, devido à necessidade da conexão para os objetos da experiência fenomenal, através do entendimento puro, sem recorrer a fontes empíricas. Em consequência disto, a realidade objetiva de uma vontade pura, também podia ser inferida a priori por um fato (Faktum), numa lei moral. O mesmo caminho usado no âmbito do conhecimento teórico dos objetos era habilmente calçado para ser também trilhado por uma pretendida razão pura prática, mantenedora da universalidade de todo sistema moral kantiano [23]. O dualismo, ao repartir os objetos em coisa em si, por um lado incompreensíveis, e fenômenos, por outro acessíveis ao entendimento, representava a alternativa mais apropriada disponível a quem, no século XVIII, quisesse afirmar a universalidade e a verdade objetiva de uma teoria filosófica, contra o ceticismo no qual se caia ao apelar para os aspectos empíricos e naturalistas do conhecimento humano.
Hume, desde que tentara estabelecer um princípio natural para o entendimento empírico, limitava-se em aceitar, sem maiores explicações, a incapacidade de ir além do “princípio básico deduzido de todas as nossas conclusões da experiência”. Quanto às ações humanas, a seu ver, não se poderia raciocinar, nunca a priori, sem o auxílio da experiência. Todas as conclusões derivadas dessas circunstâncias seriam, portanto, efetuados pelo costume e não pela razão. “O hábito é (…) o grande guia da vida humana”. Toda convicção sobre os fatos do mundo e sua existência real, fruto do hábito de associar um objeto ao outro, não passaria de instintos naturais, alheios ao processo do entendimento [24].
Ao considerar a pesquisa pelo fundamento e princípios universais da moral como uma questão de fato, Hume defendia o uso exclusivo do método experimental por ser este o único capaz de gerar máximas gerais através da comparação de casos particulares.

(…)O outro método científico, no qual inicialmente se estabelece um princípio geral abstrato que depois se ramifica em uma série de inferências e conclusões, pode ser em si mesmo mais perfeito, mas convém menos à imperfeição da natureza humana e é uma fonte comum de erro e ilusão, neste assim como em outros assuntos (…)HUME,D. Uma Investigação sobre os Princípios da Moral, seção I, p. 26).

Trinta anos antes da primeira edição da Crítica da Razão Pura ser publicada, a Investigação sobre os Princípios da Moral já decretava, em 1751, a rejeição de todo sistema ético que não fosse fundado em fatos e observações. Seguindo os passos de Lord Shaftesbury e Francis Hutcheson, Hume pretendia preparar o terreno para que o sentimento moral viesse a ser o fator fundamental do discernimento do objeto adequado do juízo definitivo sobre censura e aprovação das ações [25].
Benevolência generalizada aliado ao princípio de utilidade serviriam como base a toda aprovação e censura dos gestos humanos. Com eles, não só as atitudes relacionadas a um interesse imediato mereceriam o julgamento moral da parte dos concernidos, mas também aquelas ações distantes, onde sequer haveria um interesse remoto, poderiam ser passíveis de tal aferição. A generalização dos sentimentos morais evitaria, desse modo, que o egoísmo fosse a marca característica da ética humana [26]. Entretanto, embora essa solução pareça plausível às condições normais da espécie, ela é insuficiente como apoio ao consenso universal pretendido, pois um juízo moral empírico universalizável só poderia concretizar-se caso todos os homens julgassem moralmente do mesmo modo. Como bem observa Ernst Tugendhat, em Lições sobre Ética, já não é mais admissível conceber um conceito de moralidade que não contemple a multiplicidade dos conceitos morais [27].
De fato, sem o respaldo da experimentação científica que viesse corroborar a hipótese de um sentimento moral natural, a tese de Hume ficava devendo uma explicação satisfatória para os diversos casos onde a decisão prática de uma pessoa não levasse em conta sentimentos tais como benevolência, simpatia, culpa ou vergonha. Maior problema surgia quando se tratava da figura imaginária de um sujeito com a total falta de sentido moral (lack of moral sense), personagem da filosofia prática equivalente ao cético consequente, ao qual não se poderia resistir ao ataque. Tendo apenas o recurso da pesquisa filosófica, é difícil aceitar a solução naturalista humeana como a mais apta no combate das propostas puristas e objetivantes de Kant e E. Tugendhat.
Todavia, cem anos antes do lançamento da primeira edição da Investigação Moral de Hume. Th. Hobbes, que fora um crítico de primeira hora do cartesianismo, projetara as estruturas e o tipo de material necessário para formação de um Estado jurídico forte. A partir da suposição empírica – não de todo descabida – de um “estado da natureza”, onde os homens em sua condição originária estariam em prontidão permanente para guerra entre si, o autor do Leviatã pôde extrair as leis básicas ao funcionamento do poder civil e eclesiástico, em sua matéria e forma [28].
Alheio a qualquer tipo de sentimento moral que pudesse estar presente no homem isoladamente, Hobbes sustentava que virtudes como as de justiça, gratidão, modéstia e misericórdia eram atributos exclusivos daqueles que vivessem em sociedade. Daí porque o próprio Hobbes considerar como a “verdadeira e única filosofia moral” [29] a ciência das leis naturais decorrentes daquele estado primitivo. Seu método assumia a condição de guerra generalizada com uma hipótese concebida quando se negasse a existência de qualquer poder comum entre os homens. Apesar de tal “estado natural” jamais tivesse existido em tempo algum, ele poderia ser subsumido à histórica relação belicosa existente entre os diversos povos e nações que guardam fortemente suas fronteiras, na iminência de um ataque estrangeiro. Sem apelar para nenhuma outra afecção – moral ou não -, se conclui da condição originária que o medo da morte, o desejo de satisfazer as necessidades e a esperança por uma vida cômoda como sendo as paixões motivadoras nos homens, a fim de que estes tendam à paz. Nesse contexto, a razão calculadora sugeriria as normas adequadas da convivência pacífica dos homens, sendo assim, o meio pelo qual se concluiria, através da ciência, o fim da humanidade [30].
Pelo método hobbesiano, o fato dos homens estarem na condição natural de guerra de todos contra todos e de usarem a razão no intuito de encontrar os melhores meios de autopreservação, servindo-se de tudo que estiver disponível – até mesmo dos corpos dos outros -, leva à conclusão de que os seres humanos, devido à vulnerabilidade física, são obrigados, racionalmente, a se esforçarem para alcançar a paz e a preservá-la. Dessa primeira, todas as outras leis naturais serão deduzidas: o contrato, o estado jurídico, arbitragem etc. As 19 leis listadas no Leviatã poderiam ser, no entanto, reduzidas à regra de ouro que manda fazer aos outros o que se gostaria que fizesse a si mesmo. Assim, estar-se-ia descobrindo aquilo que é bom e mau, na conservação do indivíduo e da sociedade, em geral. De acordo com Hobbes, a fundação de um Estado que conservasse o poder exclusivo de garantir a segurança dos seus membros permitiria aos seres humanos chegarem a um acordo universal, quanto às virtudes e aos vícios morais a serem seguidos ou rejeitados, respectivamente.

(…) O bem e o mal são nomes que significam nossos apetites e aversões, os quais são diferentes conforme os diferentes temperamentos, costumes e doutrinas dos homens (…) Daqui procedem disputas, controvérsias, e finalmente a guerra. Portanto, enquanto, os homens se encontram na condição de simples natureza (que é uma condição de guerra) o apetite pessoal é a medida do bem e do mal. Por conseguinte todos os homens concordam que a paz é uma boa coisa, e (…) são bons o caminho ou meios da paz, os quais (…) são a justiça, a gratidão, a modéstia, a equidade, a misericórdia e as restantes leis da natureza; quer dizer, as virtudes morais; e que seus vícios são maus (HOBBES, Th. Leviatã, cap. XV, pp. 94/5).

Eis, então, o ponto no qual Hobbes recusa, antecipadamente, as críticas feitas ao contratualismo sobre sua faceta moral, tais como as feitas por Tugendhat, para quem faltava à doutrina das leis naturais do direito o conceito de bem absoluto. Ora, se a noção de bem absoluto defendida pelo autor das Lições sobre Ética é a chave para definição de uma moral, não pode essa concepção estar impregnada por nenhuma outra tendência moral, caso contrário se estaria a cometer uma circularidade. Porém, se o uso absoluto da palavra “bom” remete a uma situação na qual a pessoa que a profere pressupõe uma idealização, para além do mundo da experiência, esta pessoa, de fato, já estaria assumindo uma postura apriorista, rejeitando qualquer relação do que quer que seja “bom” com algo externo e portanto tomando uma posição embaraçosa, semelhante a de Kant. Isso porque, se o dever obriga alguém livre, essa obrigação teria de necessariamente abolir a autonomia da pessoa, como observou Kant, que para escapar a essa conclusão dividiu o homem em dois reinos fictícios.
A proposta hobbesiana tem a vantagem de evitar tais malabarismo. Ao invés de sediar a vontade livre dentro de um ser autônomo, o autor do Leviatã, vê o homem como um ser livre tão somente quando não encontra nenhum obstáculo para realização de seus projetos. Se a razão calculadora propõe regras induzidas da observação de um fato empírico, ela pode ser verificada, corrigida ou negada em sua adequação. Por outro lado, um fato da razão, a priori, à la Kant, não pode ser falsificado e dessa forma nem falha, nem funciona. Diante de um homem imperfeito, em constante transformação, a moral hobbesiana, também imperfeita, se modifica à medida em que se altera a observação sobre o estado natural da espécie. Sem dar um passo tão longo quanto o de Hume, Hobbes afirma uma moral humana do ponto de vista do observador externo, não recorrendo, então, a sentimentos morais naturais difíceis de serem sustentados no estágio atual da ciência, que dirá no passado.
Para Hobbes, o contrato firmado entre seres humanos, sujeitos à fome e ao medo da morte, era capaz de fomentar a criação do Estado. Somente a partir desta instituição e do conhecimento das leis naturais é que valores como bem e mal poderiam surgir. De um modo empírico, mas nem por isso menos racional que o de Kant, esse pensador inglês antecipou a base de uma ética do Discurso natural fincada nas características físicas dos agentes morais, constituídos pela sociedade.
Entre Hume e Kant, Hobbes constrói uma moral digna de um ser inseguro, que individualmente está condenado à indigência. Através do contrato são cimentadas as conexões que formarão o Estado jurídico, onde as relações interpessoais deverão, necessariamente, tenderem ao entendimento mútuo, ponto de partida de uma Ética do Discurso.

Fonte: Free Range Stock.

Fundamentação da Ética do Discurso

Desde que foi esboçada pela primeira vez pelo filósofo alemão Karl-Otto Apel, em Das Apriori da Kommunikationsgemeinschaft und die Grundlagen der Ethik (O A priori da Comunidade de Comunicação e o Fundamento da Ética), de 1973, a ética da discussão vem sofrendo discretas modificações em seu programa de fundamentação. Da proposta apeliana de fundamentação última à maximização da utilidade individual, sugerida por Robert Alexy, passando pelo argumento transcendental pragmático de Habermas, as transformações ocorridas na moral comunicativa permitem, hoje em dia, se falar numa ética da argumentação que não está totalmente em desacordo com a condição natural do homem.
Embora Apel ainda acredite na viabilidade de se encontrar um fundamento último da ética, através das características da argumentação que inclui o sujeito falante como membro de uma comunidade de comunicação real e ideal [31], a divisão da ética do discurso em duas parte – “A” e “B”, onde “A” reflete as disposições teóricas e os princípios da argumentação e “B” estuda as condições de aplicação pura desses princípios – demonstra o quanto é problemática a adoção irrestrita do projeto kantiano na defesa de uma moral válida para todos. Habermas, por sua vez, sem se comprometer com soluções definitivas, apresenta uma via de fundamentação que visa enfraquecer o argumento transcendental-pragmático, mas que segundo uma reconstrução cognitiva se tornaria necessário e suficiente aos propósitos do discurso.
Para Habermas, “uma fundamentação última da ética não é nem possível, nem necessária” [32]. A prova factual de que é indispensável assumir pressupostos pragmáticos exigidos pela comunicação só pode ser tomada de modo falível, já que uma situação contra-fática, embora tivesse de recorrer a uma ficção-científica, sempre poderia invocar circunstâncias nas quais o pressupostos não fossem possíveis. Por isso, Habermas sugere uma reconstrução falibilista sem, no entanto, abandonar uma moral universalista.

(…) A prova transcendental num sentido falível, no que diz respeito a nossa capacidade, de acordo com Apel, serve o suficiente para fundar a pretensão de validade universalista, isto é, concretiza em todos os sujeitos capazes de falar e agir, um princípio moral formulado proceduralmente. Se este princípio pode ser fundado a partir do conteúdo normativo das pressuposições que não se pode rejeitar factualmente, então se mostrar que ele não pode no que respeita tal ser repor a questão de modo significativo, mas somente de acordo com suas interpretações. Por isto, não precisamos de fundamentação última. (…) (HABERMAS, J. “De l’Éthique de la Discussion: Explications”, in Idem, pp. 194/5).

Ao cético consequente, segundo a reconstrução habermasiana, restaria a escapatória da esquizofrenia ou suicídio, quando este se apercebesse dos pressupostos inevitáveis da argumentação que a reconstrução filosófica apresentaria. Já R. Alexy – filósofo e professor de direito alemão que formulou as regras dos pressupostos pragmáticos do discurso [33] – pondera que uma tese mais fraca ainda seria suficiente para subscrever o sentido de argumentação adotado pela ética do discurso. Em um ensaio, “Discourse Theory and Human Rights” (1996), Alexy fornece as regras necessárias para sustentação dos atos de fala argumentativos como válidos na fundamentação de uma ética discursiva. Do exame das regras válidas da asserção, em geral, as condições de verdade ou correção (1), justificação (2), obrigação de justificá-las (3) e a postulação de igualdade, liberdade e universalidade entre os falantes (4), levam à quinta tese que diz:

Aquele que nunca em sua vida fez uma asserção (no sentido definido de 1 a 3) e nunca desenvolveu um argumento (no sentido definido em 4) não toma parte na forma mais geral de vida dos seres humanos. (ALEXY, R. “Discourse Theory and Human Rights”, in Ratio Juris, vol 9, nº 3, p. 217).

Assim, de acordo com Alexy, todo falante, que ao proferir uma asserção ­ com pretensão de verdade ou correção e sujeita à justificação -, estando obrigado prima facie a justificá-la, ante qualquer questionamento, pressupõe uma igualdade de aptidão entre os participantes e por isso não pode usar de força para impor seus argumentos, enquanto apela para o convencimento de todos sobre as boas razões que defendem sua asserção. Logo, ao agir sobre esses pressupostos, o agente estaria desempenhando um papel típico do cotidiano humano, sendo portanto parte dessa forma de vida. Entretanto, a despeito disso, alguém sempre pode tomar parte da espécie humana e simultaneamente promover uma estratégia na qual a violência substituiria as exigências defendidas pelos pressupostos anteriores pela nova ordem proposta. Todavia, ao proceder dessa maneira, não é difícil imaginar o encaminhamento de um impasse existencial entre os homens, dado as características particulares de uma comunidade que propusesse esse tipo de vida [34]. Daí, dizer Alexy, não ser “necessário obter a aceitação de nenhum princípio universal”, nesta situação [35].
Com certeza, a quinta proposição alexiana enfraquece em muito a intenção de fundamentar a ética do discurso na maneira pretendida por Apel. Embora a aproximação do argumento transcendental kantiano com uma forma de vida humana descrita do modo típico da tradição jusnaturalista não seja de todo compatível, o ganho em plausibilidade compensaria a perda de rigor sistemático. Apesar do pessimismo latente na formulação do “estado da natureza” feita por Hobbes, sua descrição das paixões humanas é coerente com a forma de Estado civil resultante delas. Diferente da perfeição moral concebida em um reino dos fins, que tem de rezar para que os seres humanos evoluam de seu estágio atual, até se enquadrarem na condição de seres puramente racionais. A fundamentação natural da ética do discurso não parte de nenhuma santidade encravada no ser humano, mas procura mostrar como, das imperfeições deste ser inseguro, que não é capaz de sobreviver isoladamente, se ergue todo um conjunto de regras a partir do qual nações inteiras avançam no domínio do meio ambiente, a ponto de se afastar os perigos de extinção da espécie por causas fora do controle do conhecimento humano. A despeito de todas objeções, foi o uso da razão como meio para solução do problema de subsistência que levou o homem a não mais temer as ameaças das intempéries, através do encontro das regras que permitem a constituição de um Estado suficientemente resistente, para garantir a paz entre seus membros. Só a ameaça de desmonte do Estado, traz de novo os riscos de um retorno as circunstância trágicas originárias da espécie humana. Onde falta o Estado, o homem morre à míngua.
A alternativa materialista hobbesiana, contemporânea ao idealismo cartesiano, tem hoje a revanche histórica que conta com o apoio do desenlace das ciências naturais no ajuste de conta daqueles pontos nos quais o idealismo pensava superar o naturalismo. Para tanto, vale a pena voltar-se ao estágio atual das ciências naturais, nos aspectos relevantes à discussão moral.

 

Notas

1- cf. DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, liv. IX, cap. XI, p. 243.
2- Veja DESCARTES, R. Meditações; I e II, pp. 85-98.
3- Platão expõe no Fedro, com todas as letras a teoria da reminiscência e da região supraceleste, aqui mencionada, através do mito da “parelha de cavalos alados” (ver PLATÃO, Fedro, 246 a – 250 c).
4- DESCARTES, R. Meditações, II, § 2, p. 91.
5- KANT, I. Crítica da Razão Pura, A 452/B 480 a A 461/B 489 (referências da 1ª e 2ª edições), para a quarta antinomia e A 584/B 612 a A 587/B 615, para o argumento em favor da existência de um ser supremo.
6- KANT, I. Op. cit. A 589/ B 617 e ss.
7- KANT, I. Idem, A 620/B 648 e A 641/B 669.
8- KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, B XV (referência da 2ª edição).
9- Sobre o que se diz, veja KANT, I. Op. cit., B 7 e ss.
10- KANT, I. Idem, B 10.
11- KANT, I. Ibdem, B 15/6.
12- KANT, I. Ibdem, B 52.
13- KANT, I. Ibdem, B 66/7.
14- O raciocínio de Kant é vasto e sutil. Por isso o salto do resumo obriga que se remeta ao texto do autor. cf. KANT, I. Ibdem, B 69-110.
15- KANT, I. Ibdem, B 122.
16- KANT, I. Ibdem, B 123.
17- KANT, I. Crítica da Razão Prática, A 4 (referência da 1ª edição).
18- Sobre o Faktum da razão ver KANT, I. Op. Cit., A 9, A 56, A 72 e A 187 e ss.
19- Do parágrafo 62 ao 74 da Investigação sobre o Entendimento Humano, Hume desenvolveu seu argumento em torno da necessidade e da liberdade. Assumindo a determinação natural de todos os eventos físicos e a uniformidade que liga a ocorrência de um objeto após outro, se a conjunção constante dos objetos e a decorrente inferência mental permite relacionar uma coisa com outra, então a necessidade é derivada universalmente nestas circunstâncias. O reconhecimento de tal contexto, mesmo nas ações voluntários humanas reduziria a noção de liberdade a duas concepções: uma em que ela se oporia à necessidade negando a determinação e afirmando o acaso, o que, pela suposição de não existe nada sem que haja uma causa para sua existência (ex nihilo nihil), é absurdo; o único conceito aceitável, então, seria o de agir ou não agir de acordo com as possibilidades dos fatos e da determinação da vontade, imersa na cadeia causal natural. Uma pessoa só é livre para ir e vir se não estiver presa a correntes e sua coordenação motora assim o permite etc…
20- KANT, I. Idem, A 92.
21- Ver HUME, D. Investigação sobre o Entendimento Humano, §§ 34-6.
22- KANT, I. Crítica da Razão Prática, A 93.
23- KANT, I. Op. cit./i>, A 88 – 97.
24- HUME, D.
Investigação sobre o Entendimento Humano, § 36 e ss.
25- Ver HUME, D. Uma Investigação sobre os Princípios da Moral, seção I, p. 26.
26- Confira a 5ª seção de HUME, D Op. Cit., partes I e II, pp 79 – 101.
27- Veja TUGENDHAT, E. Lições sobre Ética, 3ª lição, p.57.
28- Ver HOBBES, Th. Leviatã, cap. XIII.
29- HOBBES, Th. Op. cit., cap. XV, p. 94.
30- Confira HOBBES, Th. Idem, cap. V, p. 27 e ss e cap. XIII, p. 77.
31- Ver APEL, K-O. “Como Fundamentar Uma Ética Universalista de Corresponsabilidade…”, p. 15.
32- HABERMAS, J. “De l’Éthique de la Discussion”…, p.195.
33- As regras propostas por Alexy no ensaio “Eine Theorie des praktischen Diskurses” (Uma Teoria dos Discursos Práticos), in OELMÜLLER,W (org.) Normenbegründung, Normendurchsetzung (Fundamentação de Normas, Imposição de Normas), em 1978, e depois utilizadas por Habermas em “Notas Programáticas Para a Fundamentação de Uma Ética do Discurso”, texto de 1983.
34- Toda essa discussão está em HABERMAS, J.“Notas Programáticas para Fundamentação da Ética do Discurso”, in Consciência Moral e Agir Comunicativo, § 8a-b, p. 122-31, e ALEXY, R. “Discourse Theory and Human Rights”, in Ratio Juris, vol 9, nº 3, p. 217.
35- ALEXY, R. Op. cit., p. 217.

 

Referências Bibliográficas

ALEXY, R. “Discourse Theory and Human Right”, in Ratio Juris, vol 9, nº 3; trad. Kirston Bock e Suzanne Gaschke. – Oxford: Blackwell, 1996.
APEL, K-O. “Como Fundamentar uma Ética Universalista de Corresponsabilidade que tenha efeito sobre as Ações e Atividades Coletivas”, in Ethica, ano III, nº 4; trad. Anna Mª M. Rodrigues. – Rio de Janeiro: UGF, 1996.
ARISTÓTELES. Metafísica; trad. Leonel Vallandro. – Porto Alegre: Globo, 1969.
DESCARTES, R. Meditações; trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. – 3ª ed. – Sào Paulo: Abril Cultural, 1985.
DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres; trad. Mário da G. Kury – Brasília: UnB, 1977.
HABERMAS, J.“Notas Programáticas para Fundamentação de uma Ética do Discurso”, in Consciência Moral e Agir Comunicativo; trad. Guido Almeida. – Rio de Janeiro: 1989.
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HOBBES, Th. O Leviatã; trad. João P.G. Monteiro e Mª Beatriz N. da Silva. – 3ª ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
HUME,D. Investigação sobre o Entendimento Humano; trad. Leonel Vallandro. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
_____. Uma Investigação sobre os Princípios da Moral; trad. José O. De A. Marques. – Campinas: Unicamp, 1995.
KANT, I. Crítica da Razão Pura; trad. Alexandre F. Morujão e Manuela P. dos Santos. – 2ª ed – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes; trad. Paulo Quintela. – 2ª ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
_____. Crítica da Razão Prática; trad. Artur Morão. – Lisboa: Edições 70, 1986.
PLATÃO. Fedro; trad. Carlos A. Nunes. – Belém: Universidade Federal do Pará, 1975.
TUGENDHAT, E. Lições sobre Ética; trad. Aloísio Ruedell e outros. – Petrópolis: Vozes, no 1997.

Expressivismo Ético

O conceito de quase-realismo foi resumido por Simon Blackburn (1944) -o próprio autor-, num verbete do seu Dicionário Oxford de Filosofia (1994). O quase-realismo sustenta que é possível legitimar o discurso realista, em moral, através de uma adequada perspectiva expressivista ou projetivista da ética. A proposta de Blackburn visa manter o uso de termos realistas, tendo em mente uma posição projetivista enfraquecida. Isto é, as proposições éticas são consideradas projeções de atitudes tomadas pelo agente em situações típicas. Assim, num discurso ético, os enunciados são considerados expressões de crenças, atitudes, emoções ou demais estados relacionados à pragmática -atos de fala relacionados com uma ação.
Em Ruling Passions (Paixões Dominantes, 1998), Blackburn apresenta essa ideia como uma teoria peculiar da razão prática, entendida do ponto de vista particular dos seres humanos e sua ação no mundo, deixando de fora os demais animais, plantas, vírus e minerais. No primeiro capítulo, ele descreve o cenário moral como sendo composto por aspectos emocionais e práticos do pensamento ético, além de avaliar, dessa perspectiva, as possíveis posições antagônicas. Intitulado “Organizing Practice: The elements of ethics” (Prática Constituinte: Os elementos da ética), esse capítulo está dividido em cinco seções sobre a matéria da prática; os estímulos e respostas; a ascensão emocional; a culpa, a vergonha e a rejeição da ética; e, por último, o conflito entre princípios e privacidade.

Um Tema Prático

Ética é definida, logo de início, por suas funções práticas e, como tal, as ações são seu objeto de estudo, ao invés de um conhecimento do que seja o caso -um estado de coisas no mundo. O objetivo desse campo de investigação é, portanto, mostrar as coisas que motivam as pessoas a agir. Os compromissos éticos possuem uma especificidade cujo rigor pode gerar atitudes perigosas como as perseguições políticas e religiosas. Diante da sacralização dos códigos morais, muitos tendem a ignorar os apelos ao seu cumprimento, em favor de interesses particulares, por considerarem sua justificação infundada. Amiúde, os juízos morais são usados para coerção interna ou externa, quando se emprega a força constituída e práticas repulsivas. Por conta disso, os críticos têm atacado a ética como um instrumento de dominação. Contudo, imaginar um mundo sem restrições morais é utópico, tendo em vista a condição humana.

Estímulo e Resposta

As ações éticas surgem como respostas a certas configurações do mundo. Tais reações são escolhas feitas pelo agente, segundo sua sensibilidade ética, perante um sistema de representações dado. O processo de aprendizagem ensina à pessoa como reconhecer as situações relevantes que demandam uma resposta moralmente adequada. Em oposição às reações automáticas, a concepção da ética, com base em estímulos e respostas, sustenta que a distinção de um contexto específico para ação moral é feita de acordo com o que se acredita ser o caso. As respostas, então, são identificadas com uma conduta ou expressão de emoções pertinentes. Isso não quer dizer que haja apenas uma via de mão única no processo de deliberação. As situações são complexas e, graças a essa complexidade, as atitudes e emoções podem ocorrer de modo inconsciente, embora elas representem o modo pelo qual cada um organiza suas experiências.
Contra a dualidade entrada e saída para explicar o comportamento humano, alguns filósofos propõem uma interpretação unificada das reações, com base num único conceito ou princípio organizador das situações morais. Porém, isso apenas reduz a caracterização das circunstâncias éticas a um padrão formal mais neutro. A divisão entre estímulos e respostas ajuda à análise crítica da moral, que nem sempre é totalmente visível às pessoas inseridas num determinado cenário. Evitar tal separação é o mesmo que recusar a devida atenção crítica que as emoções e a moral merecem.
Sobre outro ponto, a condição prática da ética leva também a questões cognitivas sobre sua verdade ou falsidade. Entretanto, apesar da importância dada a isso não ser consensual, a parte dinâmica das ações pode ser compreendida em termos de motivações verdadeiras ou pressões reais para agir. Mesmo o respeito a lei moral kantiano pode ser entendido como um elemento dinâmico que reflete um conhecimento aprendido que é posto em prática. Para rebater a rejeição racionalista desses elementos circunstanciais é preciso delimitar aquilo que é significativo para a prática moral, sempre que for necessário.

Ascensão emocional

Nem todas as escolhas e ações dizem respeito à ética, que precisa ter seu território demarcado. Antes de examinar as questões de valor e justiça, primeiro vai-se observar o lado dedicado às reações de cada um. Nesse sentido, os valores interessam à medida que, sem ser capaz de os atribuir às coisas, as pessoas não conseguem agir ou distinguir, numa situação, o que é melhor ou pior fazer. Uma discussão posterior irá definir a necessidade de existir interesses estáveis para que se possa viver.
Por outro lado, os sentimentos que envolvi as transgressões morais se traduzem em ofensas àquilo que é tido como interesse legítimo dos outros. Essas práticas e emoções podem crescer numa escala que tem por base as simples preferências pessoais -gostar ou não de uma determinada ação- e são elevadas aos compromissos éticos por certas atitudes superiores. Assim, num sentido estrito, os sentimentos são entendidos como uma questão de grau variável. Mesmo as meras preferências podem erguer juízos morais, como no caso do consumo de carne pelos católicos ou vegetarianos. Algumas qualificações provocam reações morais que sobem o tom do caráter emocional em discussão. A falta de prazer estético pela harmonia num objeto de arte ou a preferência por práticas violentas e humilhantes acarretam a mobilização de pressões legais e sociais contra quem as defenda. Historicamente, os valores estéticos estiveram vinculados aos morais, embora hoje em dia já não se possa distinguir exatamente o que seja belo ou correto fazer. Projetos que na aparência não prejudicariam ninguém podem ser envolvidos numa escalada emocional, criando uma discussão moral acerca de sua execução, pois não só as ações interessam à moral, mas também os sentimentos daqueles que se sintam afetados por elas. No limite extremo dessa escala, estão os malefícios insuportáveis que possam ser infligidos aos outros.
Por conseguinte, a moralidade de uma sociedade está vinculada às reações emocionais que são manifestas naquilo em que ela censura ou tolera. Nem sempre, contudo, a ética é emocional e, quanto a essa característica, se opõem os que defendem a existência de princípios organizadores. Não obstante, a ética diz respeito plenamente a uma gama dinâmica de práticas naturais. Para evitar as exigências de definições analíticas, argumenta-se que as dificuldades de conceituações precisas surgem devido à natureza multifacetada das emoções e motivações naturais dos agentes morais.

A expressão da emoção na ética. GOYA, F. Desastre de Guerra, gravura 1 de 1810.

Culpa, Vergonha e a Rejeição da Ética

Os desacordos em ética são essencialmente práticos e não podem ser considerados uma mera discussão por palavras, como querem os críticos da moral. Eles dizem respeito a quais reações são adequadas e devem ser escolhidas. Nesse debate, os termos são refutados porque estão ligados a atitudes e consequências que afetam alguns interesses.
As críticas atacam principalmente a tendência de organizar a sociedade com base em rancores. Entretanto, as restrições relacionadas à ética deveriam apontar os casos de abuso de suas aplicações ou sustentar se ela precisa ser rejeitada de todo. O conceito de pecado serve como exemplo no exame de até onde se pode ir na coerção moral. O sentimento de culpa ligado à noção de pecado pode tornar-se obsessivo. Dependendo da maneira como foram educadas, muitas pessoas acabam sendo tomadas por uma culpa neurótica. Quanto a isso, cabem três atitudes: simplesmente ignorar as restrições impostas; aceitá-las e procurar justificar as ações ou reconhecer totalmente a culpa. Tal emoção surge quando a pessoa se sente impossibilitada de defesa ante a revolta dos outros. A vergonha, por sua vez, é similar a culpa, caracterizando-se pela sensação de desgaste frente aos outros, ainda que não haja culpa.
Três diferenças são apontadas entre a culpa e a vergonha: primeiro, a culpa diz respeito à atuação do agente, algo que ele fez ou deixou de fazer, enquanto a vergonha não se aplica, às vezes, a isto; segundo, a vergonha leva ao encobrimento, ao passo que a culpa motiva a reparação do dano causado; por fim, a culpa está ligada à hostilidade potencial que possa recair sobre o agente e a vergonha antecipa internamente as possíveis sanções que os outros venham a impor. O caráter cultural da internalização da culpa permite aceitar variações quanto ao sentimento de responsabilidade em jogo. Desse modo, alguém pode sentir-se culpado pela devastação ambiental causada por sua geração, enquanto outros não.
Para evitar tais sentimentos desagradáveis, poder-se-ia imaginar uma socialização que introduzisse a conduta moral pela imitação das ações sem apelar para a culpa ou vergonha. Todavia, descartar essas emoções diminuiria as motivações para bem agir. Apesar da culpa e da vergonha poderem transformar-se em obsessões neuróticas, elas possuem uma função motivadora que coordena as ações deliberadas pelos agentes. Tradicionalmente, estes sentimentos estão associados à civilidade e à boa ordem. Rejeitar totalmente a ética com base nessas críticas aos sentimentos morais não é uma opção que leve a boas consequências.

Privacidade e Princípios

Outro tipo de crítica feita procura atacar a quebra de espontaneidade das ações, quando são requeridos alguns preceitos morais. Pois, caso abarcasse todas as formas de relacionamento, a ética acabaria sem qualquer lugar privilegiado na vida das pessoas. Mas isso só atinge às concepções morais que buscam abranger todas as coisas. Há também, dizem os críticos, a necessidade de se preservar um domínio privado para as emoções e interesses particulares. Obrigações e deveres devem ser mobilizados apenas nos casos em que sejam considerados relevantes.
Mesmo assim, defende–se que nas melhores sociedades é preciso que as práticas éticas sejam coordenadas e transmitidas aos outros numa discussão pública articulada por meio da educação moral. D’outro modo, pensadores políticos modernos procuraram, preventivamente, adotar a máxima de que todos os seres humanos são perversos, a fim de proteger o corpo social de ataques externos.
Nos capítulos restantes, Blackburn observa o tenso debate existente entre a ética do dever, o consequencialismo e a ética das virtudes. Aborda-se, então, a natureza da motivação humana, o egoísmo e o amor-próprio, passando então à consideração dos problemas da liberdade e racionalidade, no confronto entre o naturalismo de David Hume e o racionalismo de Immanuel Kant. Autoridade, ceticismo e relativismo também são confrontados até o alvorecer de um pensamento moral adequado a seus limites e requisitos.
O livro alinha-se declaradamente a uma teoria ética na tradição aristotélica, humeana e liberal. Os passos adotados descrevem, no segundo capítulo, as características das situações morais. No terceiro, a perspectiva expressivista e projetivista explora a hipótese naturalista de que os valores por vezes são expressos quando a voz se levanta contra uma ofensa moral. A seguir, são tratadas as diversas concepções sobre o que é certo ou melhor fazer. Uma teoria da motivação surge, então, nos capítulos 5 e 6, a partir do autointeresse e da investigação crítica da ação racional adotada na teoria da escolha e dos jogos. No sétimo e oitavo, o sentimentalismo é contrastado ao modelo kantiano de tomada de decisão, argumentando-se em favor da linha de raciocínio de Hume e Adam Smith. Ao final, a conclusão examina os problemas principais da teoria ética, tais como o relativismo e o subjetivismo, à luz da discussão antecedente que pretende, sobretudo, situar a ética num mundo natural.

Referências Bibliográficas

BLACKBURN, S. Ruling Passions: A theory of practical reasoning. – Oxford: Claredon Press, 1998.
____. Dicionário Oxford de Filosofia, trad. Desidério Murcho et al.. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

Antinomias

EM sua Crítica da Razão Pura (1781), Imannuel Kant (1724-1804) descobriu quatro paradoxos aos quais dava o nome de antinomias. Tais antinomias refletiriam o conflito da razão com ela mesma, na hora de definir questões fundamentais acerca das ideias cosmológicas do ordenamento do mundo sensível. Esses conflitos não seriam resultante de erros de raciocínio ou de confusões paradoxais, como nos enunciados autorreferenciais. A rigor, não eram falácias ou sofismas criados para embaraçar a argumentação, segundo o contexto em que fossem proferidos. Todavia, indicavam as limitações reais da capacidade mental para solucionar esses problemas, no âmbito da metafísica
Kant demonstrou que as antinomias se chocavam com obstáculos racionais que impediam uma posição favorável seja por uma tese, ou por uma antítese que, respectivamente, se contrapunham. As quatro antinomias apresentam relacionados com os limites do universo; à complexidade das coisas; à liberdade causal e à existência de um ser necessário. Para cada um desses assuntos, uma tese favorável e uma antítese contrária de igual valor poder-se-ia ser levantada pela razão.
A respeito da limitação do universo, sua tese pressuporia que houvesse um começo do mundo no tempo e no espaço, enquanto sua antítese sustentaria que o “mundo é infinito no tempo e no espaço”. Sobre a complexidade, por um lado, se afirma que “tudo no mundo é constituído por partes simples”, mas, por outro, também se diz que “nada é simples e tudo é um composto”. Para a liberdade, “haveria várias causas livres para as coisas no mundo” ou “haveria apenas uma causa de todas as coisas e nada estaria livre das leis naturais”. Por fim, no mundo, “existe um ente necessário, seja como parte ou origem da série causal”, ao passo que se defenderia contra isso que “nada seria necessário, porém contingente, no mundo ou fora deste” (veja KANT, I. Prolegômenos, A 144, p.68).
Diferente dos paradoxos, onde as soluções decorrem do encontro de erros nas premissas ou na inferência que leva a conclusões aparentemente inaceitáveis, as antinomias kantianas não podem ser resolvidas por argumentos ou fatos naturais. Sempre se poderá sustentar pressupostos válidos em favor de uma tese ou de sua respectiva antítese. Kant sugeriu então que respostas aceitáveis deveriam ser extraídas dos interesses racionais puros. Assim, se para as duas primeiras ideias cosmológicas matemáticas de limite e divisão, não se pode conceber a experiência de um nada ou vazio no infinito e no início das séries compostas, entretanto, poder-se-ia imaginar uma progressão indefinida que fosse condicionada pelos fenômenos, como estes aparecem.
Em outras palavras, seria plausível a imaginação defender que há uma série indeterminada, segundo sua grandeza, mas limitada por uma quantidade desconhecida de fenômenos – o termo simples das séries divisíveis -, embora isso não pudesse ser provado pela razão pura, sem contradição. Por exemplo, haveria no mundo sensível uma grande quantidade de matéria, suficiente para torná-la indeterminada – os grãos de areia em uma praia. Tal matéria, por sua vez, poderia ser dividida até os limites subatômicos. Todavia, mesmo que isso fosse verdade, pelo que a mera experiência mostra, nada impediria que a razão pura continuasse a progressão até superar os limites e a divisão ao avançar sobre o infinito. “A divisão [como o limite] só vai até onde a experiência alcança” (KANT, I. Prolegômenos, A 149, §52c).
Com relação à disputa sobre a liberdade, Kant pressupõe que a razão seja livre da sensibilidade e capaz de causar ações no mundo, por meio de um agente. Isto mesmo se considerando que todas as demais coisas no universo estão presas a leis naturais e, portanto, condicionadas pela causalidade. Desse modo, Kant compatibilizava o livre arbítrio dos seres racionais com o determinismo do mundo fenomênico (veja KANT, I. Op. Cit., A 154, §53).

Logo, posso dizer, sem entrar em contradição: todas as ações de entes racionais, enquanto fenômenos, estão sujeitas à necessidade da natureza; mas as mesmas ações, consideradas apenas em relação com o sujeito racional e com sua capacidade de agir apenas pela razão, são livres (KANT, I. idem, A 154, §53).

Porém, para a quarta antinomia – também chamada de teológica -, não é possível sustentar empiricamente a existência de um ser necessário independente da própria série causal. Não obstante, a sua impossibilidade em si, não pode ser decretada, uma vez que, no mundo sensível, apenas fenômenos existem – não objetos numênicos, que existam por si mesmos. Sob o ponto de vista transcendental, o incondicionado tem de estar necessariamente fora do âmbito da experiência física. Sendo assim, um ser apenas inteligível seria admissível, sem ferir a causalidade empírica – existiria, no entanto, apenas na razão (veja KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 587 e ss.).
A rigor, as antinomias não são falácias, pois os argumentos nos quais se apoiam não estão errados. Também não são efetivamente paradoxos que se referem a si mesmos, nem estão em contexto dúbio. A solução de suas aporias representam, na acepção kantiana, um acabamento para razão do mundo, onde uma natureza sensível procura conviver com o entendimento em seres racionais dotados de sensibilidade. Demonstram, ao final, as dificuldades da razão em responder as principais questões ligadas à ordem do universo. O que foi um incômodo sem precedentes para uma geração de filósofos dogmáticos e idealistas românticos que o sucederam.
As antinomias kantianas se distinguem ainda das “antinomias jurídicas” que, no direito, tratam das normas legais que entram em contradição umas com as outras. Estas nada têm a ver com os intransponíveis problemas da metafísica e sua razão pura transcendental.

Nos limites do universo, o limite da razão humana. Via Láctea vista do Canion de Fairland, por Adam Derewecks. Fonte: Pixabay.

Referências Bibliográficas

KANT, I. Crítica da Razão Pura; trad. Manuela P.dos Santos e Alexandre F. Morujão. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
___. Prolegômenos; trad. Tânia Mª Bernkopf. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.

A Raiz Comum do Fascismo e do Comunismo

A propaganda manipula os homens; onde ela grita liberdade, ela se contradiz a si mesma. A falsidade é inseparável dela. É na comunidade da mentira que os líderes e seus liderados se reúnem graças à propaganda, mesmo quando os conteúdos enquanto tais são corretos, a própria verdade torna-se para ela um simples meio de conquistar adeptos para sua causa. Ela já a falsifica quando a coloca em sua boca (HORKHEIMER, M. & ADORNO, Th. Dialética do Esclarecimento, p. 238).

Desde a década de 30 do século XX, que a percepção de pontos comuns entre o fascismo e o comunismo já era sentida pela população. Isto, poucos anos antes da ascensão do nazismo ao poder na Alemanha. As semelhanças foram mais tarde explicitadas por autores tão distintos, como Karl R. Popper (1902-1994) e Hannah Arendt (1906–1975).
O totalitarismo – típico de fascistas e comunistas – se define como um regime político cujo controle estatal se estende a todas instituições da sociedade, sejam estas públicas ou privadas, influenciando as atividades particulares de cada cidadão. Tanto o fascismo, o comunismo e o nazismo – síntese das duas ideologias (nacional e socialista) – têm em comum características intervencionistas, bem como, a violação constante da privacidade dos indivíduos, uma vez que a vontade e os interesses de cada um estariam submetidos à vontade geral e aos interesses objetivos do estado. Em sua obra As Origens do Totalitarismo (1951), Arendt notou ainda outros aspectos que permitiriam definir essas ideologias políticas por totalitárias.
A construção de uma sociedade de massa, com a extinção das classes sociais no sentido de uniformizar toda a nação e não meramente tornar a população mais igualitária, economicamente. O recurso há propaganda mentirosa, a fim de mistificar a figura de seus líderes, falsificar a história de sua tomada do poder e a situação geral do país, internamente e nas suas relações internacionais. O consequente culto em torno da personalidade de seu líder máximo, considerado perfeito e infalível. A eliminação de todos os partidos opositores e expurgo de toda divergência interna. O apelo ao terror como método de dominação e manutenção do poder (veja ARENDT, H. As Origens do Totalitarismo, vol. III).
A propaganda constitui um instrumento fundamental na máquina política para o estabelecimento de uma guerra psicológica da qual surgirá a prática do terror. Um de seus tópicos favoritos é o apelo à conspiração como forma de ocultação da verdade.

A eficácia desse tipo de propaganda evidencia uma das principais características das massas modernas. Não acreditam em mais nada visível, nem na realidade de sua própria experiência, (…) mas apenas em sua imaginação (…). O que convence a massa não são os fatos, mesmo que sejam inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte (ARENDT, H. Op.Cit., 2.1, p. 86).

Essas narrativas, esquemas imaginários onde os fatos se acomodam, consolidam a amálgama entre os interesses dos indivíduos e os do grupo partidário. O fanatismo dos participantes dos partidos totalitários surge dessa conexão dos interessas que os fazem se sacrificar pela ideologia a que seguem.
Uma vez concretizada essa união de interesses, entre o partido e seus simpatizantes, a destruição dos princípios morais é o passo seguinte para o mal radical, antes adormecido, vencer as barreiras sociais que impediam seu florescimento. Assim, como os nazistas se sentiam atraídos morbidamente pelo mal, “os bolchevistas diziam não reconhecer os padrões morais comuns, e esta afirmação (…) tornou-se um dos pilares da propaganda comunista” (ARENDT, H. Idem, 1.1, p. 29).

A União da Esquerda com a Direita

Dois abutres à espera da carniça da sociedade. Caricatura de 1938 da revista estadunidense Ken.

Fascismo e comunismo, em suas diversas vertentes totalitárias, encontraram uma síntese expressa na denominação dada ao “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães”. Ao se autointitularem “nacional-socialistas”, os nazistas juntavam as duas partes do idealismo alemão divididas entre o nacionalismo à direita e o internacionalismo à esquerda (veja ARENDT, H. Ibdem, 2.1, p. 93).
Desse modo, os nazistas totalitários retomavam sua origem teórica localizada no historicismo de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Do romantismo filosófico deste autor surgiram as ideias que fomentaram o culto à personalidade de um líder absoluto e ao “espírito de um povo” encarnado em um estado nacional, no auge de seu desenvolvimento histórico. Os primeiros discípulos de Hegel encontraram na obra de seu mestre os conceitos básicos que justificariam os aspectos reacionários em relação aos direitos individuais, conquistados na Revolução Francesa (1789). Tinham na concepção de estado proposta por Hegel a razão para submissão das vontades subjetivas à vontade universal representada pelo líder heroico.
Somente o estado teria existência real e ética, como uma unidade total que centralizava a vida concreta do povo. Toda atividade espiritual do sujeito teria como finalidade última a conscientização desta união. A religião, a arte, a filosofia e as ciências se integrariam em torno do estado para constituir uma cultural nacional. Essa totalidade seria a realização do espírito de um povo.

Essa totalidade temporal é uma essência, o espírito do povo. Os indivíduos pertencem a ele, cada um é um filho de seu povo e, igualmente, um filho do seu tempo – se o seu estado se encontra em processo de desenvolvimento (HEGEL, G.W.F. Filosofia da História, introdução, cap. 2, p.50).

A história dos povos seguiriam, então, um processo de desenvolvimento dialético (por ciclos progressivos de tese, antítese e síntese) que resultaria na realização do “espírito do povo” em um estado total que abarcaria tudo.

Os princípios das sucessivas fases do espírito que anima os povos (…) são apenas momentos no desenvolvimento de um único espírito universal, que por meio deles se eleva e completa na história até se tornar uma totalidade abrangente em si (HEGEL, G.W.F. Op.Cit., idem, cap. 3, p. 72).

O fim dessa história universal dar-se-ia na Europa, sendo o seu auge o regime monárquico absoluto germânico, onde todos seriam livres e conscientes de que seus interesses específicos seriam contemplados na incorporação ao poder soberano do estado (veja HEGEL, G.W.F. Idem, ibdem, cap. 5, pp. 93-97).

A consciência chegou até aqui, e esse é o principal momento da forma na qual o princípio da liberdade se concretizou, pois a história universal nada mais é que o desenvolvimento do conceito de liberdade. Todavia, a liberdade objetiva – as leis da liberdade real – exige a submissão da vontade fortuita, pois esta última é meramente formal (HEGEL, G.W.F. Ibdem, IV parte, cap. 4, p. 373)

Em suma, o processo de autoconscientização do espírito do sujeito e sua liberdade subjetiva deveria submeter-se ao processo mais amplo da história universal que leva à liberdade objetiva que só o estado total teria realmente. Para chegar ao seu último estágio de desenvolvimento histórico, os povos germânicos contaram com a participação fundamental do cristianismo protestante que permitiu avançar a união da religião com o direito. Também teria sido importante a figura heroica de um monarca que fora em busca de seu fim particular, mas acabara por despertar a vontade universal ao praticar ações de repercussão mundial

(…)A igreja protestante completou a sua garantia política ao determinar que um de seus estados se elevasse à condição de uma potência europeia independente. Essa potência teria que surgir com o protestantismo: é a Prússia, que, surgindo no fim do século XVII, teve em Frederico, o Grande, um indivíduo histórico, mesmo não tendo fundado o estado, ele o consolidou (HEGEL, G.W.F. Ibdem, IV parte, cap. 4, p. 360).

Valorização da igreja, formação de um estado total, defesa da monarquia absoluta e uma concepção de herói, como “grande homem” da história universal, eram ideias que confortavam aqueles que sempre estiveram à direita da Assembleia Nacional Legislativa, durante a Revolução Francesa, lutando contra os direitos civis individuais. Mas houve jovens seguidores de Hegel que se sentiram atraídos por sua confusa ideia de liberdade objetiva, pelo igualitarismo que lhe era subjacente e pelo movimento progressivo da história que poderiam servir às causas da esquerda revolucionária. Bastaria, para tanto, que se expurgassem os aspectos idealistas abstratos e pusessem em seu lugar elementos materialistas que permitissem interpretar a história como um movimento de luta de classes em torno da posse dos meios de produção massivos econômicos.
Em vez do império germânico, uma sociedade comunal originária – associada ao comportamento observado no proletariado – constituiria ao final o estado total que controlasse os meios de produção e abrangesse toda vida intelectual e cotidiana, abolida a religião. Um regime político dominado pela classe trabalhadora assumiria o planejamento de toda sociedade, ditando suas tarefas. A chamada ditadura do proletariado, mais tarde intitulada “democracia popular” – um pleonasmo eufemístico do tempo do estalinismo -, eliminaria todas outras classes econômicas e ditaria o comportamento futuro dos indivíduos, impondo a centralização de todos os instrumentos de produção, crédito e transporte nas mãos do estado (veja MARX, K & ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, II, pp. 66 e 67 e também Crítica ao Programa de Gotha, IV, A, pp.46 e ss.).
Os hegelianos de esquerda aboliam a religião como força motriz de conscientização – sobretudo os marxistas – em sua reconciliação com o direito político do soberano ao estado absoluto. Contudo, já na metade do século XX, seguidores do líder soviético Ossip Vissarionovitchi Stalin (1879-1953) passaram a praticar fortemente o culto à personalidade de seu herói, como parte da dominação da consciência dos indivíduos massificados em uma sociedade sem classes. O líder cultuado seria a expressão viva da autodeterminação de um povo, cujas diferenças pessoais deveriam ser unificadas em uma vontade universal. O próprio “espírito do povo” encarnado na figura de um personagem histórico.

Eles Avisaram

O hegelianismo sofreu críticas diretas de primeira hora por parte de Friedrich W.J. von Schelling (1775-1854) que sugeriu em carta de 06 de setembro de 1832 a Christian H.E. Weisse (1801-1866) o abandono completo das teorias de Hegel:

Não posso considerar aquilo que se denomina a filosofia hegeliana senão como um episódio da história da filosofia moderna e na verdade nada mais do que um triste episódio. É preciso não continuá-la, mas romper inteiramente com ela, considerá-la inexistente, para voltar à linha do verdadeiro progresso (SCHELLING, F.W.J.v. “Carta a Weisse de 06/09/1832”, in Obras Escolhidas, n.2, p. 158).

Arthur Schopenhauer (1788-1860) também foi outro contemporâneo de Schelling a fazer advertências claras sobre o charlatanismo do autor da Fenomenologia do Espírito:

A chamada filosofia desse Hegel é uma mistificação colossal que proporcionará à posteridade uma fonte inesgotável de sarcasmo sobre nossa época: uma pseudofilosofia que paralisa as capacidades intelectuais, asfixia todo verdadeiro pensamento e, mediante o mais sacrílego abuso da liberdade. coloca em seu lugar a verborragia mais oca, mais vazia de sentido, mais irreflexiva e, como o resultado confirma, mais embrutecedora; uma pseudofilosofia que (…) carece tanto de razões como de consequências, quer dizer, que não é demonstrada por nada nem pode ela mesma demonstrar nem explicar coisa alguma (SCHOPENHAUER, A. Los Problemas Fundamentales de la Ética, prólogo, p. xix).

Mais tarde, Will Durant (1885-1981) apontou as contradições do sistema hegeliano e sua adesão ao governo estabelecido:

[Hegel] aliou-se ao governo prussiano, abençoou-o com a mais recente expressão do absoluto, e aqueceu-se ao sol de seus favores acadêmicos(…). Ele começou a considerar o sistema hegeliano uma parte das leis naturais do mundo, esqueceu-se de que a sua própria dialética condenava o seu pensamento à impermanência e à decadência (DURANT, W. A História da Filosofia, cap. VI, sec. VIII, p. 283).

Antes de Hannah Arendt, Karl R. Popper (1902-1994) em Sociedade Aberta e seus Inimigos (1945) revelou a raiz comum do totalitarismo de esquerda e direita nas confusas ideias de Hegel:

Tentei mostrar a identidade do historicismo hegeliano com a filosofia do totalitarismo moderno. Esta identidade raras vezes é bastante claramente compreendida. O historicismo hegeliano tornou-se a linguagem de vários círculos de intelectuais, mesmo de cândidos “anti-fascistas” e “esquerdistas”. Faz tal parte dessa atmosfera intelectual que, (…) nem sua espantosa desonestidade se torna mais digna de atenção do que o ar que respiram (POPPER, K.R. Sociedade Aberta e seus Inimigos, cap. 12, sec. VI, pp. 86-87).

Anos depois, Michelangelo Bovero escreveu um apêndice para A Teoria das Formas de Governo (1976), de Norberto Bobbio (1909-2004), onde se lê:

Na constituição de Hegel, é no monarca que todos os negócios e poderes particulares do estado encontram sua unidade definitiva; ele representa o momento da decisão, da resolução com respeito a todas as coisas, o momento da “pura vontade sem nenhum acréscimo”. No modelo hegeliano, a figura do monarca manifesta, portanto, a unidade pura e simples do estado, enquanto esta unidade, para não ser exclusivamente alegórica, deve concretizar-se na vontade de uma única pessoa física (BOVERO, M. “A Monarquia constitucional: Hegel e Montesquieu”, in BOBBIO, N. A Teoria das Formas de Governo, cap. XII, p.151).

Ernst Tugendhat também notou que a submissão da moralidade ao estado continha elementos fascistas:

Hegel foi o último filósofo sério a defender uma concepção desse tipo. Pois, precisa-se naturalmente compreender essa proposta como universal, contudo, com a eliminação de premissas complementares, ela não é pensável. Ideias fascistas, segundo as quais o próprio ser do estado representa um valor, ou o valor superior, de modo algum podem ser moralmente fundamentadas (TUGENDHAT, E. Lições sobre Ética, XV lição, p. 345).

Conclusão

Apesar de todas advertências iniciais de Schelling e Schopenhauer, o hegelianismo ascendeu à condição de “filosofia oficial” do estado prussiano, ainda enquanto seu autor vivia. No século XIX, tais ideias eram dominantes nos meios acadêmicos de toda a Europa. Elas alimentavam aspirações totalitárias à esquerda e à direita e engendraram os respectivos regimes comunistas e fascistas.
Na primeira metade do século XX, o movimento nazista tentou unir ideologicamente tanto o socialismo dos hegelianos de esquerda, como o nacionalismo dos de direita. Mesmo com o malogro dos primeiros governos totalitários, ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e após a queda do muro de Berlim (1989), o hegelianismo continua latente em autores conservadores e liberais, no começo do século XXI. Enquanto suas ideologias apaixonadas persistirem, a liberdade civil sempre estará ameaçada por reações tradicionalistas, comunitarianas, politicamente “corretas” e “cândidos esquerdistas” que ainda defendem o controle estatal em todas atividades humanas e acham que a história tem um fim. A história só terminará quando o último ser humano deixar seu último registro sob a terra.

Referências Bibliográficas

ARENDT, H. As Origens do Totalitarismo; trad. Roberto Raposo. – Rio de Janeiro: Documentário, 1979.
BOBBIO, N. A Teoria das Formas de Governo; trad. Sergio Bath. – Brasília: UnB, 1980.
DURANT. W. AHistória da Filosofia; trad. Luiz C. do N. Silva. – São Paulo: Nova Cultural, 1996.
HEGEL, G.W.F. Filosofia da História; trad. Mª Rodrigues e Hans Harden. – Brasília: UnB, 1999.
HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. Dialética do Conhecimento; trad. Guido A. de Almeida. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
MARX, K & ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista; trad.Pietro Nassetti. – São Paulo: Martin Claret, 2001.
____. Obras Escolhidas; trad. José B Moura. – Moscou: Avante!, 1982.
POPPER, K. R. A Sociedade Aberta e seus Inimigos; trad. Milton Amado. – Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
SCHELLING, F.v. Obras Escolhidas; trad. Rubens R. Torres Fº. – São Paulo: Nova Cultural, 1991 (Os Pensadores).
SCHOPENHAUER, A. Los Problemas Fundamentales de la Ética; trad. Pilar L. de S. Maria. – Madrid: Siglo XXI, 2002.
TUGENDHAT, E. Lições sobre Ética; trad. Róbson R. dos Reis et al.. – Petrópolis: Vozes, 1997.