A fundamentação teórica não é tarefa de fácil execução. Enquanto os engenheiros se contentam em achar o solo firme onde fincar as sapatas que darão apoio à edificação, por vezes as características movediças do terreno exigem soluções que levem em consideração sua formação geológica que não estavam previstas no projeto original, por mais minuciosa que tenha sido suas observações antecedentes. Algo semelhante acontece sempre que os filósofos se afastam do ambiente estável das ideias abstratas e passam ao torvelinho dos fatos concretos. Não deixa de ser curioso notar que ao contrário da construção civil, onde a concretude da base é o fator crucial para sustentação da obra, a filosofia moderna – na tradição idealista – busque apoio na forma abstrata dos conceitos, sem levar em conta o conteúdo concreto fornecido pelo mundo natural, principal fonte do conhecimento.
As tentativas históricas melhor sucedidas são justamente aquelas que, desde Platão, procuravam firmeza num mundo ideal perfeito, capaz de dar conta dos fenômenos considerados imperfeitos na natureza. Ao lado do pensador ateniense, Descartes e Kant formam a tríade emblemática dos principais construtores de modelos filosóficos apriorísticos. O conjunto das obras desses autores causa admiração, por resultar numa arquitetônica elaborada por mentes muito astutas, e até hoje diversos comentadores e filósofos estudam seus textos, remetendo amiúde a eles. Aristóteles, Hume e Hegel constituem outro trio poderoso que simboliza as correntes, cuja recusa de um mundo ulterior forçou o desenvolvimento de teses voltadas à explicação dos eventos materiais, no âmbito de suas evoluções naturais, perceptuais ou históricas. Essa dupla trindade – platônica e aristotélica – representa os dois estilos predominantes entre aqueles pensadores inclinados a procurar uma fundamentação para suas teorias, seja de modo a priori (fora do mundo real), seja empírico (a partir de experiências no mundo real).
Embora todo filósofo tente esclarecer a maneira pela qual as coisas se dão, a resposta à pergunta do “porque assim e não de outro modo” obrigou muitos interessados na solução do problema a postularem uma fundamentação última, da qual tudo mais derivaria. Por vezes, tal projeto redundava numa proposta que tomava contornos arbitrários semelhante à escolha da peça que vai iniciar a montagem de um quebra-cabeça. A peça inicial do jogo poderia ser a mesma que o completaria. Doutra feita, a fundamentação proposta atuaria como nos jogos de armar, garantindo o encaixe perfeito das peças superpostas. Ainda assim a peça inaugural deveria se apoiar sobre uma base não problematizada fora da armação. Apenas a coerência e a consistência da estrutura montada seria suficiente, neste caso, para validar a existência da instalação.
Arquitetônica, quebra-cabeças, jogos de armar… a análise, até aqui, não passaria de mera crítica estética não fosse a intervenção da figura do cético. Sem ele, a exigência de fundamentação se confundiria a um apelo pela elegância ou tendência a padrões harmônicos típicos da matemática. O ceticismo surge na história da filosofia em oposição às doutrinas dogmáticas da antiguidade que julgavam ser possível encontrar um critério de verdade. Os céticos combatiam todas as escolas sem no entanto por algo em seu lugar. Assumiram frequentemente o papel de questionadores, observadores, pesquisadores para ao final proporem a suspensão do juízo. Eles tinham por absurda as conclusões que os dogmáticos extraíam de seus princípios, os quais consideravam simples suposições e não verdades demonstráveis.
As diferentes teorias que pretendiam refletir sobre um só objeto mostravam o quanto as questões filosóficas eram, como ainda continuam sendo, cheias de incertezas e contradições. Os argumentos invariavelmente caiam ora numa regressão ao infinito, tornando impossível encontrar uma verdade basal sem recorrer a uma outra explicação; ora estavam relacionados uns com os outros, impedindo o conhecimento isolado de um objeto. Além disso, os céticos criticavam aqueles que aceitavam os princípios das coisas por elas mesmas sem exame, pois sempre se poderia formular princípios opostos igualmente dogmáticos. Eles também condenavam as provas circulares de uma verdade por uma outra que lhe fosse subordinada. Assim, Diógenes Laércio resumia a estratégia das ideias pregadas por Pirro:
Os céticos eliminavam toda demonstração e não admitiam um critério, um sinal, uma causa, nem o movimento, nem a instrução, nem o vir a ser, nem o princípio de existência de qualquer coisa boa ou má por natureza. Eles afirmam que toda demonstração consiste (…) em coisas demonstradas, essas coisas também terão necessidade de uma demonstração, e assim por diante até o infinito, se consiste em coisas indemonstradas, basta que todas as coisas, ou algumas, ou mesmo uma única coisa, suscitem dúvidas, para que todo o conjunto permaneça indemonstrado. E acrescentam que se alguém admite a existência de certas que não necessitam de demonstração alguma, a inteligência dessa pessoa é extraordinária se não percebe que até isso deve ser demonstrado, (…) Além disso, se as demonstrações isoladas não merecem fé, necessariamente as demonstrações gerais devem ser recusadas como destituídas de valor. Para reconhecermos a validade de uma demonstração, essa demonstração necessita de um critério da verdade, para reconhecermos a validade de um critério, esse necessita de uma demonstração, logo, um se respalda no outro e vice-versa, e nem um nem o outro pode ser conhecido. (DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, liv. IX, cap. XI, §§ 90 e 91).
Incapazes de propor qualquer critério de verdade ou demonstração, os pirrônicos pregavam, coerentemente, a suspensão do julgamento, a fim de se alcançar a serenidade da alma. Apenas a aparência das coisas, as leis e os costumes deveriam ser obedecidos. Ainda segundo Laércio, Timon, um dos discípulos de Pirro, afirmava que “como tal, o objeto é duvidoso, mas eu declaro que ele me parece tal”. Para Timon, a aparência era rainha e mestra de tudo que nela se apresentasse [
1]. Nesse sentido, apesar de refutar toda forma de afirmação de uma verdade acessível ao entendimento humano, os céticos clássicos, a partir de Timon, forneciam um critério pragmático que proporcionava ao próprio cético ambiente para elaboração de suas críticas, sem cair em contradição. Agora, ao invés de uma certeza plena da verdade, a aparência das coisas seria o ponto comum sobre o qual se apoiaria o discurso.
Foi só no século XVII, com o advento do cartesianismo que a postura cética se modificaria. Não bastasse os obstáculos interpostos pelo ceticismo antigo aos métodos de investigação filosófica, deixando apenas o delgado fio da aparência como suporte de informações acerca do realidade, o papel do cético foi ampliado ao extremo, nas meditações entabuladas por Descartes. Com o francês de La Haye (atual Descartes), a dúvida radicalizou-se a tal ponto que não só os sistemas anteriores eram questionados, mas a própria aparência era posta em debate. Ao contrário dos gregos, o cético moderno criticava sobretudo a maneira pela qual as coisas se apresentavam como sendo uma via pouco eficaz de formar qualquer conhecimento que seja sobre o mundo. A astúcia do raciocínio cartesiano estava em mover o pirronismo de sua posição cômoda, diante das doutrinas dogmáticas, e forçá-lo a renunciar aos sentidos e tudo que, ao menos uma vez, tivesse sido enganoso. Destartes, pelo novo método estabelecido em 1639, nada que fosse afirmado era passível de confirmação sem o apoio de uma primeira certeza fundamental. Portanto, se era forçado a admitir que a pesquisa por algo certo deveria abdicar o aprendizado do mundo e seguir em direção daquilo que se mostrasse clara e distintamente como verdadeiro [
2].
Se com a tradição cética uma fundamentação empírica tornava-se problemática, a partir de Descartes, toda tentativa no sentido de fundar a verdade que não se afastasse das incertezas mundanas estaria condenada ao fracasso. Enquanto os críticos antigos se detinham na constatação da mutabilidade das coisas e com isso sossegavam, os modernos, porém, passavam a duvidar da existência dos próprios objetos dados à percepção. Arrombada essas portas, restava ao pesquisador por o mundo entre parênteses para poder em fim dar início a algum tipo de ciência acessível ao entendimento.
O fundamentalismo, em Filosofia, aparece então como consequência de um debate histórico entre os adeptos de uma determinada corrente de pensamento que pretende definir o âmbito no qual a verdade se apoia e seus críticos. A opção imaginada por Descartes, ao mesmo tempo em que propunha uma radicalização na análise das doutrinas dogmáticas, indicava o caminho a ser trilhado por quem o sucedesse.
A intenção de Descartes, ao que se supõe, visava anular os ataques céticos, encontrando o ponto arquimediano inabalável. O método cartesiano, nesse sentido, proporcionou a inauguração de um novo dualismo entre dois mundo, o sensível e o inteligível. Todavia, diferente de Platão, o ex-aluno de La Flèche não apelava para um reino paralelo donde, por reminiscência e iniciação nos mistérios, se buscaria o “verdadeiro ser” [
3]. Ao invés disso, Descartes procurava encontrar “somente uma coisa que seja certa e indubitável” [
4]. A coisa pensante cartesiana era a base para o devido conhecimento da essência ou ideia de Deus e tudo mais que fosse verdadeiro,
(…) pois, como já disse anteriormente é uma coisa evidente que deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto em seu efeito. E portanto, já que sou uma coisa pensante, e tenho em mim alguma ideia de Deus, qualquer que seja, enfim, a causa que se atribua à minha natureza, cumpre necessariamente confessar que ela deve ser de igual modo uma coisa pensante e possuir em si a ideia de todas as perfeições que atribuo à natureza divina. Pois se ela a tem de si própria segue-se, pelas razões que anteriormente aleguei, que deve ser ela mesma Deus; porquanto, tendo a virtude de ser e de existir por si, ela deve também, sem dúvida, ter o poder de possuir atualmente todas as perfeições cujas ideias concebe, isto é, todas aquelas que em concebo como existentes em Deus. Se ela tira sua existência de alguma outra causa diferente de si, tornar-se-á a perguntar, pela mesma razão, a respeito desta segunda causa, se ela é por si, ou por outrem, até que gradativamente se chegue a última causa que se verificará ser Deus (…)
(…) Parece-me muito a propósito deter-me algum tempo na contemplação deste Deus todo-perfeito, ponderar totalmente à vontade seus maravilhosos atributos, considerar, admirar e adorar a incomparável beleza dessa imensa luz, ao menos na medida em que a força de meu espírito, que queda de algum modo ofuscado por ele, mo puder permitir.
Pois, como a fé nos ensina que a soberana felicidade da outra vida não consiste se não nessa contemplação da Majestade divina, assim percebemos, desde agora, que semelhante meditação, embora incomparavelmente menos prefeita, nos faz gozar do maior contentamento de que sejamos capazes de sentir nesta vida (DESCARTES, R. Meditações, III, §35 e §41/2, pp. 110-113).
Convém realçar certa constância na ocorrência de determinados termos, sempre que se tem em mente o projeto de fundamentação, seja na estratégia platônica, aristotélica ou na cartesiana, aqui exposta. Não raro, se depara com noções de Deus, causalidade, liberdade e motivação, quando se quer saber sobre o conhecimento verdadeiro, seja da existência das coisas, seja da relação do homem com a natureza, ou com outros homens.
Deus – guardada as devidas diferenças típicas do uso de um conceito absoluto em teorias consideradas opostas – ocupa um lugar fundamental em qualquer sistema filosófico tradicional, tanto na teoria do ato e potência aristotélica, como no método racionalista cartesiano. Até mesmo Kant, que, ao contrário de seus antecessores, procurava encontrar no sujeito e não fora deste as condições formais do conhecimento, teve de defender a necessidade de manutenção de tal ideia, a fim de tornar inteligível a relação causal que liga todas as coisas no mundo.
Nas “Antinomias da Razão Pura” – mais precisamente no “Quarto conflito das ideias transcendentais” -, o autor da
Crítica da Razão Pura mostra as dificuldades de se afirmar ou negar a existência de um ser absolutamente necessário, fora do domínio da representação. Por isso, argumentava em favor da manutenção de tal concepção no intuito de fundar de modo determinante a origem de todas as coisas [
5].
Contudo, colocar Deus na ponta inicial de uma cadeia causal exigia algo mais além da mera especulação, graças a insuficiência objetiva de sua demonstração. Uma simples negação dos efeitos do ser supremo sobre as leis práticas poderia ocasionar a falta de motivação para sua aceitação. Como alternativa à carência de uma justificação melhor estruturada para explicar a necessidade das coisas e a obrigatoriedade de uma tomada de posição, na qual a razão repousasse em sua busca de conhecimento, Kant assumia por interesse prático, a existência de um ser supremo [
6].
O ideal do Ser supremo, de acordo com estas considerações, não é mais que um princípio regulador da razão e que consiste em considerar toda a ligação no mundo como resultante de uma causa necessária e absolutamente suficiente, para sobre ela fundar a regra de uma unidade sistemática e necessária, segundo leis gerais na explicação dessa ligação; não é a afirmação de uma existência necessária em si (KANT, I. Crítica da Razão Pura, A 619/B 647).
Como princípio regulador, portanto, o ideal do ser supremo servia somente à razão especulativa com o propósito de fornecer o acabamento fino ao conhecimento humano. Dessa forma, a condição material de tal conceito era negada, apesar de não se poder refutá-la, nem provar sua realidade objetiva [
7]. O dualismo surge, então, em todas as tentativas clássicas que, de uma maneira ou de outra, visavam fundamentar um sistema teórico.
Em moral, entretanto, novos complicadores aparecem quando se apela para reinos paralelos na justificação dos princípios adotados. Ao se separar razão prática dos interesses materiais, o delicado elo da motivação é rompido. De fato, o “eu” moral, por si só, não está apto a definir o rumo de suas ações sem antes entrar em contato com o mundo e estar atento para a viabilidade de execução de seu projeto vital. Fora desse mundo, o sujeito tende a cair num formalismo cego, alheio ao conhecimento das possibilidades de aplicação dos preceitos morais.
A alternativa ao dualismo na moral é um monismo naturalista. No entanto, tal opção traz consigo temores que estão ligados a uma visão determinista da natureza e a provável perda da autonomia e liberdade, da crença num bem supremo ou da capacidade de se atribuir responsabilidade a uma pessoa. A seguir, serão abordadas as estratégias sugeridas por Kant, Hume e Hobbes para fundamentação da moral e, na continuação, o tratamento que a ética do Discurso deu a esse tema.
Fundamento Moral
Tudo que se disse sobre a fundação do conhecimento teórico, em geral, se aplica, mutatis mutandis, à filosofia prática. Moral e ética padecem, com frequência, da oscilação entre o dualismo e o monismo. Entre os dois reinos kantianos e os sentimentos morais humeanos.
Desde a
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant pretendia fixar o “princípio supremo da moralidade”. Tarefa que na opinião do pensador alemão se distinguia totalmente “de qualquer outra investigação moral” [
8]. Supondo que a natureza tenha dotado o homem de razão, a fim de que esta produzisse não apenas uma vontade boa como um meio de alcançar seus fins, mas sobretudo uma vontade boa em si mesma, Kant acreditava estar nisto a condição e bem supremo de toda aspiração de felicidade. O transcurso da natureza e o cultivo da razão permitiria até mesmo uma eventual eliminação da procura da felicidade, se a satisfação completa dos desígnios da razão obrigasse o abandono dos fins propostos pela inclinação [
9].
Agir por intermédio da boa vontade, segundo a análise kantiana, seria o mesmo que atuar por “Dever”, no qual estaria contido o próprio conceito de boa vontade. Para o autor da
Fundamentação…, uma determinada máxima teria conteúdo moral, sempre que se propusesse uma ação por dever, independente das inclinações ou qualquer outra tendência – egoísta ou não – capaz de macular o valor intrínseco da conduta prescrita. Uma hipotética coincidência entre uma atitude motivada pelos desejos naturais, afetados pela sensibilidade, e os mandamentos racionais, no máximo, indicaria um comportamento “conforme ao dever, mas não por dever” [
10].
O valor moral da ação não reside, portanto, no efeito que dela se espera; também não reside em qualquer princípio da ação que precise o seu móbil a este efeito esperado. Pois todos estes efeitos (…) podiam também ser alcançados por outras causas, e não se precisava portanto para tal da vontade de um ser racional, na qual vontade (…) se pode encontrar o bem supremo e incondicionado (KANT, I Fundamentação da Metafísica dos Costumes, B 15).
Ao restringir por completo a influência da sensibilidade sobre uma ação com valor moral, restava apenas à vontade a determinação objetiva da lei (aceita por todos os seres racionais) e o respeito subjetivo expresso numa máxima que ordenasse o cumprimento da lei, a despeito de todas as inclinações, em favor ou contrárias a ela. Nem mesmo tal respeito poderia ser considerado como “um sentimento recebido por influência” das inclinações, pois não passava de um sentimento produzido por si mesmo através da razão, que para Kant o diferenciava das outras formas de desejos relacionados com a sensibilidade [
11].
Assim, estava lançada a pedra fundamental para reprodução do divórcio entre razão e sensibilidade na moral, tal como no conhecimento da verdade, em geral. Ao longo da
Fundamentação…, Kant desenvolveu o resto do raciocínio pelo qual pensava extrair do conhecimento moral da razão humana vulgar o princípio de universalização capaz de transformar máximas subjetivas em leis práticas objetivas de todos os seres racionais. O imperativo categórico que ordenava imediatamente o comportamento do indivíduo, sem apelar a qualquer outra intenção, ordenava, em sua primeira formulação: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” [
12].
A existência de tal mandamento não poderia derivar da constituição particular da natureza humana. Para ser uma necessidade prática incondicionada da ação de todo ser racional, o princípio objetivo da moral teria de vincular-se
a priori (totalmente fora da experiência sensível), ao conceito de vontade do respectivo sujeito. Somente desgarrado de todo condicionamento natural, ao qual estão presas as coisas que são instrumentalizadas de acordo com um determinado fim, a vontade livre de todo ser racional, entendido como fim em si mesmo, reconheceria como seu objetivo e de todos os seus pares: a lei prática universal, um fim em si mesmo. Eis porque a terceira formulação do imperativo categórico já punha a humanidade – a comunidade de todos seres racionais – como fim a ser respeitado por toda lei moral. “Age – decretava Kant – de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” [
13].
O princípio de Humanidade adotado por Kant, ao lado do de natureza racional, tomados por fim em si mesmo não eram extraídos da experiência. Eles permitiam limitar os fins subjetivos dos homens que deles participavam e para que “a ideia da vontade de todo o ser racional concebida como vontade legisladora universal” pudesse ser inferida. No entanto, é num Reino dos Fins imaginário que tais seres estariam sistematicamente ligados e submetidos pela lei, sem se tratarem como meios, porém fins em si. Sendo um membro deste reino e também do mundo sensível, o ser humano, enquanto racional, estaria livre para reconhecer a autonomia da vontade legisladora universal, no mundo inteligível. D’outro modo, seria obrigado a seguir a lei moral, por pertencer ainda ao domínio da sensibilidade, no mundo sensível [
14].
Todos os homens – dizia Kant – se concebem como livres quanto à vontade (…). No entanto esta liberdade não é um conceito da experiência, nem pode sê-lo, pois se mantém sempre, mesmo que a experiência mostre o contrário daquelas exigências que, pressupondo a liberdade, se representam como necessárias (…). Por isso a liberdade é apenas uma ideia da razão cuja realidade objetiva é em si duvidosa; a natureza, porém, é um conceito do entendimento que demonstra, e tem necessariamente de demonstrar a sua realidade por exemplos da experiência (KANT, I . Op. cit., B 113/4).
A conciliação entre a liberdade do indivíduo e a submissão deste às leis naturais era um problema ao qual o filósofo de Königsberg (atual Kaliningrado russa) tinha plena consciência. A contradição entre liberdade e não-liberdade no mesmo ser humano, ficava explícita quando o mesmo ser era obrigado a obedecer a lei moral, como um objeto perturbado pelos sentidos e simultaneamente comandava suas ações, através de uma razão independente das impressões sensíveis. Depois de criar um engenhoso esquema, no qual expunha as bases de uma moral fundamentada na razão, Kant chega, no final de sua
Fundamentação…, a constatação da incapacidade de se conceber ou conhecer a liberdade segundo parâmetros de leis naturais. Seu valor, no entanto, seria a de um pressuposto necessário da razão dotada de vontade. Constatada a impossibilidade de explicar o fundamento moral, restava apenas defendê-lo como um fato sustentado pelo sentimento moral, que para Kant era “o efeito que a lei exerce sobre a vontade e do qual só a razão fornece os princípios subjetivos” [
15].
Causa e efeito se confundem. Para que a razão “inspire” um “sentimento de prazer” é preciso que estes sejam reconhecidos, ao mesmo tempo, que aquela. Tal como no objeção pirrônica, a causa é causada pelo que causa, assim como o pai só e pai por ter gerado, ao menos, um filho. Toda arquitetônica proposta por Kant, recebe seus primeiros reparos na prancheta de projetos. Uma espécie peculiar de causalidade, impossível de ser compreendida em termos naturais, é invocada para defender o total desconhecimento da maneira pela qual um pensamento
a priori, que nas palavras do próprio Kant, “não contém em si nada de sensível, pode produzir uma sensação de prazer ou dor” [
16].
À explicação do modo pelo qual a liberdade atua como causalidade de uma vontade, Kant dá o braço a torcer:
Pois aqui abandono eu o princípio filosófico da explicação, e não tenho outro (…). Da razão pura que pensa este ideal nada mais me resta, depois de separar dela toda a matéria, (…) do que a forma, (…) a lei prática da validade universal das máximas e, em conformidade com ela, pensar a razão em relação com um mundo pouco inteligível (…) como causa determinante da vontade; aqui o móbil tem que faltar inteiramente, a não ser que esta ideia de um mundo inteligível fosse ela mesma o móbil ou aquilo por que a razão toma originariamente interesse; mas tornar isto concebível é exatamente o problema que nós podemos resolver (KANT, I. Idem, B 125/6).
Da mesma maneira que concebia Deus, como causa da existência da substância, independente de todas as condições do mundo sensível, como a “existência de um ser em si mesmo”, Kant construía de modo análogo sua defesa da liberdade absoluta. Assim como o Deus na razão especulativa, a liberdade constituía a “pedra angular” de todo sistema da razão pura, demonstrada por uma lei necessária da razão prática [
17].
No entanto, Kant tinha um problema. Sua
Fundamentação… chegou a um ponto, além do qual cessava todo entendimento, ao contrário da meta inicial, seu projeto estava longe de esclarecer o dilema moral do ser humano. A cisão do homem em dois reinos nada ajudou nessa tarefa. O dualismo, na moral, não decolava do papel. A tentativa posterior de derivar a razão prática da pura, por intermédio de um
Faktum (fato ou destino) da razão, que toma consciência de si mesma, não se mostrou mais plausível. A
Crítica da Razão Prática, a fim de fugir da contradição da liberdade com as leis naturais; da circularidade entre a vontade livre que se autodetermina; da inconsequência da determinação da lei moral, em relação à ação humana, Kant recai num arbitrário fato, que, embora, não fosse empírico, mantinha o abismo entre os dois mundos, inteligível e sensível [
18].
Antes de Kant fundar o reino da moral, Hume já colocara em dúvida a possibilidade de se construir um sistema moral fora dos parâmetros da experiência. Ao invés de por na liberdade da vontade e na autonomia do sujeito todo peso de argumentação em pró de princípios
a priori da razão pura prática, ele defendia que princípios universais só poderiam se sustentar graças ao sentimento moral generalizado na natureza humana [
19].
O ceticismo de Hume contra toda teoria moral que não fosse empírica foi um incômodo para Kant. O filósofo escocês, que fora responsável por despertar o filósofo alemão de seu sono dogmático, converteu-se no adversário cujo desafio à fundamentação pura da moral mereceu atenção redobrada do autor da
Crítica da Razão Prática. Kant admitia ser “a doutrina cética humeana” o motivo de ter iniciado toda sua arquitetônica, a partir da primeira
Crítica… [
20]. A solução de Hume para a dúvida cética extremada, contra toda especulação, todavia, era inaceitável da perspectiva kantiana.
Kant recusava, de modo enfático, que um princípio empírico pudesse ser base suficientemente forte para sustentar todo um sistema universal necessário. Como é sabido, Hume apontava no costume ou hábito um “princípio de natureza humana” que determina a inferência de todo e qualquer processo de raciocínio cujo resultado implica na concepção de causalidade, pela qual um objeto produziria o outro [
21]. Na …Razão Prática, o conceito de causalidade humeano, por ser sustentado numa “necessidade subjetiva ” – o hábito -, era considerado como se fosse “obtido subrepticiamente e não de modo legítimo” dada à conexão arbitrária e casual entre a causa e efeito dos objetos da experiência, tomadas como coisa em si. Para Kant, entrementes, objetos empíricos não poderiam ser concebidos de tal maneira, pois a seu ver eles não passavam de meros fenômenos, logo “devem estar necessariamente ligados de algum modo numa experiência (…) e não podem separar-se sem contradizer aquela conexão, graças à qual é possível esta experiência, na qual eles são objetos e unicamente para nós cognoscíveis” [
22].
Assim sendo, pensava Kant ter demonstrado a realidade objetiva do conceito de causa, aprioristicamente, devido à necessidade da conexão para os objetos da experiência fenomenal, através do entendimento puro, sem recorrer a fontes empíricas. Em consequência disto, a realidade objetiva de uma vontade pura, também podia ser inferida
a priori por um fato (
Faktum), numa lei moral. O mesmo caminho usado no âmbito do conhecimento teórico dos objetos era habilmente calçado para ser também trilhado por uma pretendida razão pura prática, mantenedora da universalidade de todo sistema moral kantiano [
23]. O dualismo, ao repartir os objetos em coisa em si, por um lado incompreensíveis, e fenômenos, por outro acessíveis ao entendimento, representava a alternativa mais apropriada disponível a quem, no século XVIII, quisesse afirmar a universalidade e a verdade objetiva de uma teoria filosófica, contra o ceticismo no qual se caia ao apelar para os aspectos empíricos e naturalistas do conhecimento humano.
Hume, desde que tentara estabelecer um princípio natural para o entendimento empírico, limitava-se em aceitar, sem maiores explicações, a incapacidade de ir além do “princípio básico deduzido de todas as nossas conclusões da experiência”. Quanto às ações humanas, a seu ver, não se poderia raciocinar, nunca
a priori, sem o auxílio da experiência. Todas as conclusões derivadas dessas circunstâncias seriam, portanto, efetuados pelo costume e não pela razão. “O hábito é (…) o grande guia da vida humana”. Toda convicção sobre os fatos do mundo e sua existência real, fruto do hábito de associar um objeto ao outro, não passaria de instintos naturais, alheios ao processo do entendimento [
24].
Ao considerar a pesquisa pelo fundamento e princípios universais da moral como uma questão de fato, Hume defendia o uso exclusivo do método experimental por ser este o único capaz de gerar máximas gerais através da comparação de casos particulares.
(…)O outro método científico, no qual inicialmente se estabelece um princípio geral abstrato que depois se ramifica em uma série de inferências e conclusões, pode ser em si mesmo mais perfeito, mas convém menos à imperfeição da natureza humana e é uma fonte comum de erro e ilusão, neste assim como em outros assuntos (…)HUME,D. Uma Investigação sobre os Princípios da Moral, seção I, p. 26).
Trinta anos antes da primeira edição da
Crítica da Razão Pura ser publicada, a
Investigação sobre os Princípios da Moral já decretava, em 1751, a rejeição de todo sistema ético que não fosse fundado em fatos e observações. Seguindo os passos de Lord Shaftesbury e Francis Hutcheson, Hume pretendia preparar o terreno para que o sentimento moral viesse a ser o fator fundamental do discernimento do objeto adequado do juízo definitivo sobre censura e aprovação das ações [
25].
Benevolência generalizada aliado ao princípio de utilidade serviriam como base a toda aprovação e censura dos gestos humanos. Com eles, não só as atitudes relacionadas a um interesse imediato mereceriam o julgamento moral da parte dos concernidos, mas também aquelas ações distantes, onde sequer haveria um interesse remoto, poderiam ser passíveis de tal aferição. A generalização dos sentimentos morais evitaria, desse modo, que o egoísmo fosse a marca característica da ética humana [
26]. Entretanto, embora essa solução pareça plausível às condições normais da espécie, ela é insuficiente como apoio ao consenso universal pretendido, pois um juízo moral empírico universalizável só poderia concretizar-se caso todos os homens julgassem moralmente do mesmo modo. Como bem observa Ernst Tugendhat, em Lições sobre Ética, já não é mais admissível conceber um conceito de moralidade que não contemple a multiplicidade dos conceitos morais [
27].
De fato, sem o respaldo da experimentação científica que viesse corroborar a hipótese de um sentimento moral natural, a tese de Hume ficava devendo uma explicação satisfatória para os diversos casos onde a decisão prática de uma pessoa não levasse em conta sentimentos tais como benevolência, simpatia, culpa ou vergonha. Maior problema surgia quando se tratava da figura imaginária de um sujeito com a total falta de sentido moral (lack of moral sense), personagem da filosofia prática equivalente ao cético consequente, ao qual não se poderia resistir ao ataque. Tendo apenas o recurso da pesquisa filosófica, é difícil aceitar a solução naturalista humeana como a mais apta no combate das propostas puristas e objetivantes de Kant e E. Tugendhat.
Todavia, cem anos antes do lançamento da primeira edição da
Investigação Moral de Hume. Th. Hobbes, que fora um crítico de primeira hora do cartesianismo, projetara as estruturas e o tipo de material necessário para formação de um Estado jurídico forte. A partir da suposição empírica – não de todo descabida – de um “estado da natureza”, onde os homens em sua condição originária estariam em prontidão permanente para guerra entre si, o autor do
Leviatã pôde extrair as leis básicas ao funcionamento do poder civil e eclesiástico, em sua matéria e forma [
28].
Alheio a qualquer tipo de sentimento moral que pudesse estar presente no homem isoladamente, Hobbes sustentava que virtudes como as de justiça, gratidão, modéstia e misericórdia eram atributos exclusivos daqueles que vivessem em sociedade. Daí porque o próprio Hobbes considerar como a “verdadeira e única filosofia moral” [
29] a ciência das leis naturais decorrentes daquele estado primitivo. Seu método assumia a condição de guerra generalizada com uma hipótese concebida quando se negasse a existência de qualquer poder comum entre os homens. Apesar de tal “estado natural” jamais tivesse existido em tempo algum, ele poderia ser subsumido à histórica relação belicosa existente entre os diversos povos e nações que guardam fortemente suas fronteiras, na iminência de um ataque estrangeiro. Sem apelar para nenhuma outra afecção – moral ou não -, se conclui da condição originária que o medo da morte, o desejo de satisfazer as necessidades e a esperança por uma vida cômoda como sendo as paixões motivadoras nos homens, a fim de que estes tendam à paz. Nesse contexto, a razão calculadora sugeriria as normas adequadas da convivência pacífica dos homens, sendo assim, o meio pelo qual se concluiria, através da ciência, o fim da humanidade [
30].
Pelo método hobbesiano, o fato dos homens estarem na condição natural de guerra de todos contra todos e de usarem a razão no intuito de encontrar os melhores meios de autopreservação, servindo-se de tudo que estiver disponível – até mesmo dos corpos dos outros -, leva à conclusão de que os seres humanos, devido à vulnerabilidade física, são obrigados, racionalmente, a se esforçarem para alcançar a paz e a preservá-la. Dessa primeira, todas as outras leis naturais serão deduzidas: o contrato, o estado jurídico, arbitragem etc. As 19 leis listadas no Leviatã poderiam ser, no entanto, reduzidas à regra de ouro que manda fazer aos outros o que se gostaria que fizesse a si mesmo. Assim, estar-se-ia descobrindo aquilo que é bom e mau, na conservação do indivíduo e da sociedade, em geral. De acordo com Hobbes, a fundação de um Estado que conservasse o poder exclusivo de garantir a segurança dos seus membros permitiria aos seres humanos chegarem a um acordo universal, quanto às virtudes e aos vícios morais a serem seguidos ou rejeitados, respectivamente.
(…) O bem e o mal são nomes que significam nossos apetites e aversões, os quais são diferentes conforme os diferentes temperamentos, costumes e doutrinas dos homens (…) Daqui procedem disputas, controvérsias, e finalmente a guerra. Portanto, enquanto, os homens se encontram na condição de simples natureza (que é uma condição de guerra) o apetite pessoal é a medida do bem e do mal. Por conseguinte todos os homens concordam que a paz é uma boa coisa, e (…) são bons o caminho ou meios da paz, os quais (…) são a justiça, a gratidão, a modéstia, a equidade, a misericórdia e as restantes leis da natureza; quer dizer, as virtudes morais; e que seus vícios são maus (HOBBES, Th. Leviatã, cap. XV, pp. 94/5).
Eis, então, o ponto no qual Hobbes recusa, antecipadamente, as críticas feitas ao contratualismo sobre sua faceta moral, tais como as feitas por Tugendhat, para quem faltava à doutrina das leis naturais do direito o conceito de bem absoluto. Ora, se a noção de bem absoluto defendida pelo autor das Lições sobre Ética é a chave para definição de uma moral, não pode essa concepção estar impregnada por nenhuma outra tendência moral, caso contrário se estaria a cometer uma circularidade. Porém, se o uso absoluto da palavra “bom” remete a uma situação na qual a pessoa que a profere pressupõe uma idealização, para além do mundo da experiência, esta pessoa, de fato, já estaria assumindo uma postura apriorista, rejeitando qualquer relação do que quer que seja “bom” com algo externo e portanto tomando uma posição embaraçosa, semelhante a de Kant. Isso porque, se o dever obriga alguém livre, essa obrigação teria de necessariamente abolir a autonomia da pessoa, como observou Kant, que para escapar a essa conclusão dividiu o homem em dois reinos fictícios.
A proposta hobbesiana tem a vantagem de evitar tais malabarismo. Ao invés de sediar a vontade livre dentro de um ser autônomo, o autor do Leviatã, vê o homem como um ser livre tão somente quando não encontra nenhum obstáculo para realização de seus projetos. Se a razão calculadora propõe regras induzidas da observação de um fato empírico, ela pode ser verificada, corrigida ou negada em sua adequação. Por outro lado, um fato da razão, a priori, à la Kant, não pode ser falsificado e dessa forma nem falha, nem funciona. Diante de um homem imperfeito, em constante transformação, a moral hobbesiana, também imperfeita, se modifica à medida em que se altera a observação sobre o estado natural da espécie. Sem dar um passo tão longo quanto o de Hume, Hobbes afirma uma moral humana do ponto de vista do observador externo, não recorrendo, então, a sentimentos morais naturais difíceis de serem sustentados no estágio atual da ciência, que dirá no passado.
Para Hobbes, o contrato firmado entre seres humanos, sujeitos à fome e ao medo da morte, era capaz de fomentar a criação do Estado. Somente a partir desta instituição e do conhecimento das leis naturais é que valores como bem e mal poderiam surgir. De um modo empírico, mas nem por isso menos racional que o de Kant, esse pensador inglês antecipou a base de uma ética do Discurso natural fincada nas características físicas dos agentes morais, constituídos pela sociedade.
Entre Hume e Kant, Hobbes constrói uma moral digna de um ser inseguro, que individualmente está condenado à indigência. Através do contrato são cimentadas as conexões que formarão o Estado jurídico, onde as relações interpessoais deverão, necessariamente, tenderem ao entendimento mútuo, ponto de partida de uma Ética do Discurso.
Fonte: Free Range Stock.
Fundamentação da Ética do Discurso
Desde que foi esboçada pela primeira vez pelo filósofo alemão Karl-Otto Apel, em Das Apriori da Kommunikationsgemeinschaft und die Grundlagen der Ethik (O A priori da Comunidade de Comunicação e o Fundamento da Ética), de 1973, a ética da discussão vem sofrendo discretas modificações em seu programa de fundamentação. Da proposta apeliana de fundamentação última à maximização da utilidade individual, sugerida por Robert Alexy, passando pelo argumento transcendental pragmático de Habermas, as transformações ocorridas na moral comunicativa permitem, hoje em dia, se falar numa ética da argumentação que não está totalmente em desacordo com a condição natural do homem.
Embora Apel ainda acredite na viabilidade de se encontrar um fundamento último da ética, através das características da argumentação que inclui o sujeito falante como membro de uma comunidade de comunicação real e ideal [
31], a divisão da ética do discurso em duas parte – “A” e “B”, onde “A” reflete as disposições teóricas e os princípios da argumentação e “B” estuda as condições de aplicação pura desses princípios – demonstra o quanto é problemática a adoção irrestrita do projeto kantiano na defesa de uma moral válida para todos. Habermas, por sua vez, sem se comprometer com soluções definitivas, apresenta uma via de fundamentação que visa enfraquecer o argumento transcendental-pragmático, mas que segundo uma reconstrução cognitiva se tornaria necessário e suficiente aos propósitos do discurso.
Para Habermas, “uma fundamentação última da ética não é nem possível, nem necessária” [
32]. A prova factual de que é indispensável assumir pressupostos pragmáticos exigidos pela comunicação só pode ser tomada de modo falível, já que uma situação contra-fática, embora tivesse de recorrer a uma ficção-científica, sempre poderia invocar circunstâncias nas quais o pressupostos não fossem possíveis. Por isso, Habermas sugere uma reconstrução falibilista sem, no entanto, abandonar uma moral universalista.
(…) A prova transcendental num sentido falível, no que diz respeito a nossa capacidade, de acordo com Apel, serve o suficiente para fundar a pretensão de validade universalista, isto é, concretiza em todos os sujeitos capazes de falar e agir, um princípio moral formulado proceduralmente. Se este princípio pode ser fundado a partir do conteúdo normativo das pressuposições que não se pode rejeitar factualmente, então se mostrar que ele não pode no que respeita tal ser repor a questão de modo significativo, mas somente de acordo com suas interpretações. Por isto, não precisamos de fundamentação última. (…) (HABERMAS, J. “De l’Éthique de la Discussion: Explications”, in Idem, pp. 194/5).
Ao cético consequente, segundo a reconstrução habermasiana, restaria a escapatória da esquizofrenia ou suicídio, quando este se apercebesse dos pressupostos inevitáveis da argumentação que a reconstrução filosófica apresentaria. Já R. Alexy – filósofo e professor de direito alemão que formulou as regras dos pressupostos pragmáticos do discurso [
33] – pondera que uma tese mais fraca ainda seria suficiente para subscrever o sentido de argumentação adotado pela ética do discurso. Em um ensaio,
“Discourse Theory and Human Rights” (1996), Alexy fornece as regras necessárias para sustentação dos atos de fala argumentativos como válidos na fundamentação de uma ética discursiva. Do exame das regras válidas da asserção, em geral, as condições de verdade ou correção (1), justificação (2), obrigação de justificá-las (3) e a postulação de igualdade, liberdade e universalidade entre os falantes (4), levam à quinta tese que diz:
Aquele que nunca em sua vida fez uma asserção (no sentido definido de 1 a 3) e nunca desenvolveu um argumento (no sentido definido em 4) não toma parte na forma mais geral de vida dos seres humanos. (ALEXY, R. “Discourse Theory and Human Rights”, in Ratio Juris, vol 9, nº 3, p. 217).
Assim, de acordo com Alexy, todo falante, que ao proferir uma asserção com pretensão de verdade ou correção e sujeita à justificação -, estando obrigado
prima facie a justificá-la, ante qualquer questionamento, pressupõe uma igualdade de aptidão entre os participantes e por isso não pode usar de força para impor seus argumentos, enquanto apela para o convencimento de todos sobre as boas razões que defendem sua asserção. Logo, ao agir sobre esses pressupostos, o agente estaria desempenhando um papel típico do cotidiano humano, sendo portanto parte dessa forma de vida. Entretanto, a despeito disso, alguém sempre pode tomar parte da espécie humana e simultaneamente promover uma estratégia na qual a violência substituiria as exigências defendidas pelos pressupostos anteriores pela nova ordem proposta. Todavia, ao proceder dessa maneira, não é difícil imaginar o encaminhamento de um impasse existencial entre os homens, dado as características particulares de uma comunidade que propusesse esse tipo de vida [
34]. Daí, dizer Alexy, não ser “necessário obter a aceitação de nenhum princípio universal”, nesta situação [
35].
Com certeza, a quinta proposição alexiana enfraquece em muito a intenção de fundamentar a ética do discurso na maneira pretendida por Apel. Embora a aproximação do argumento transcendental kantiano com uma forma de vida humana descrita do modo típico da tradição jusnaturalista não seja de todo compatível, o ganho em plausibilidade compensaria a perda de rigor sistemático. Apesar do pessimismo latente na formulação do “estado da natureza” feita por Hobbes, sua descrição das paixões humanas é coerente com a forma de Estado civil resultante delas. Diferente da perfeição moral concebida em um reino dos fins, que tem de rezar para que os seres humanos evoluam de seu estágio atual, até se enquadrarem na condição de seres puramente racionais. A fundamentação natural da ética do discurso não parte de nenhuma santidade encravada no ser humano, mas procura mostrar como, das imperfeições deste ser inseguro, que não é capaz de sobreviver isoladamente, se ergue todo um conjunto de regras a partir do qual nações inteiras avançam no domínio do meio ambiente, a ponto de se afastar os perigos de extinção da espécie por causas fora do controle do conhecimento humano. A despeito de todas objeções, foi o uso da razão como meio para solução do problema de subsistência que levou o homem a não mais temer as ameaças das intempéries, através do encontro das regras que permitem a constituição de um Estado suficientemente resistente, para garantir a paz entre seus membros. Só a ameaça de desmonte do Estado, traz de novo os riscos de um retorno as circunstância trágicas originárias da espécie humana. Onde falta o Estado, o homem morre à míngua.
A alternativa materialista hobbesiana, contemporânea ao idealismo cartesiano, tem hoje a revanche histórica que conta com o apoio do desenlace das ciências naturais no ajuste de conta daqueles pontos nos quais o idealismo pensava superar o naturalismo. Para tanto, vale a pena voltar-se ao estágio atual das ciências naturais, nos aspectos relevantes à discussão moral.
Notas
1- cf. DIÓGENES LAÉRCIO,
Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, liv. IX, cap. XI, p. 243.
2- Veja DESCARTES, R.
Meditações; I e II, pp. 85-98.
3- Platão expõe no
Fedro, com todas as letras a teoria da reminiscência e da região supraceleste, aqui mencionada, através do mito da “parelha de cavalos alados” (ver PLATÃO,
Fedro, 246 a – 250 c).
4- DESCARTES, R.
Meditações, II, § 2, p. 91.
5- KANT, I.
Crítica da Razão Pura, A 452/B 480 a A 461/B 489 (referências da 1ª e 2ª edições), para a quarta antinomia e A 584/B 612 a A 587/B 615, para o argumento em favor da existência de um ser supremo.
6- KANT, I.
Op. cit. A 589/ B 617 e ss.
7- KANT, I.
Idem, A 620/B 648 e A 641/B 669.
8- KANT, I.
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, B XV (referência da 2ª edição).
9- Sobre o que se diz, veja KANT, I.
Op. cit., B 7 e ss.
10- KANT, I.
Idem, B 10.
11- KANT, I.
Ibdem, B 15/6.
12- KANT, I.
Ibdem, B 52.
13- KANT, I.
Ibdem, B 66/7.
14- O raciocínio de Kant é vasto e sutil. Por isso o salto do resumo obriga que se remeta ao texto do autor. cf. KANT, I.
Ibdem, B 69-110.
15- KANT, I.
Ibdem, B 122.
16- KANT, I.
Ibdem, B 123.
17- KANT, I.
Crítica da Razão Prática, A 4 (referência da 1ª edição).
18- Sobre o
Faktum da razão ver KANT, I.
Op. Cit., A 9, A 56, A 72 e A 187 e ss.
19- Do parágrafo 62 ao 74 da Investigação sobre o Entendimento Humano, Hume desenvolveu seu argumento em torno da necessidade e da liberdade. Assumindo a determinação natural de todos os eventos físicos e a uniformidade que liga a ocorrência de um objeto após outro, se a conjunção constante dos objetos e a decorrente inferência mental permite relacionar uma coisa com outra, então a necessidade é derivada universalmente nestas circunstâncias. O reconhecimento de tal contexto, mesmo nas ações voluntários humanas reduziria a noção de liberdade a duas concepções: uma em que ela se oporia à necessidade negando a determinação e afirmando o acaso, o que, pela suposição de não existe nada sem que haja uma causa para sua existência (
ex nihilo nihil), é absurdo; o único conceito aceitável, então, seria o de agir ou não agir de acordo com as possibilidades dos fatos e da determinação da vontade, imersa na cadeia causal natural. Uma pessoa só é livre para ir e vir se não estiver presa a correntes e sua coordenação motora assim o permite etc…
20- KANT, I.
Idem, A 92.
21- Ver HUME, D.
Investigação sobre o Entendimento Humano, §§ 34-6.
22- KANT, I.
Crítica da Razão Prática, A 93.
23- KANT, I.
Op. cit./i>, A 88 – 97.
24- HUME, D. Investigação sobre o Entendimento Humano, § 36 e ss.
25- Ver HUME, D.
Uma Investigação sobre os Princípios da Moral, seção I, p. 26.
26- Confira a 5ª seção de HUME, D
Op. Cit., partes I e II, pp 79 – 101.
27- Veja TUGENDHAT, E.
Lições sobre Ética, 3ª lição, p.57.
28- Ver HOBBES, Th.
Leviatã, cap. XIII.
29- HOBBES, Th.
Op. cit., cap. XV, p. 94.
30- Confira HOBBES, Th.
Idem, cap. V, p. 27 e ss e cap. XIII, p. 77.
31- Ver APEL, K-O.
“Como Fundamentar Uma Ética Universalista de Corresponsabilidade…”, p. 15.
32- HABERMAS, J.
“De l’Éthique de la Discussion”…, p.195.
33- As regras propostas por Alexy no ensaio
“Eine Theorie des praktischen Diskurses” (
Uma Teoria dos Discursos Práticos),
in OELMÜLLER,W (org.)
Normenbegründung, Normendurchsetzung (
Fundamentação de Normas, Imposição de Normas), em 1978, e depois utilizadas por Habermas em
“Notas Programáticas Para a Fundamentação de Uma Ética do Discurso”, texto de 1983.
34- Toda essa discussão está em HABERMAS, J.
“Notas Programáticas para Fundamentação da Ética do Discurso”, in Consciência Moral e Agir Comunicativo, § 8a-b, p. 122-31, e ALEXY, R.
“Discourse Theory and Human Rights”, in Ratio Juris, vol 9, nº 3, p. 217.
35- ALEXY, R.
Op. cit., p. 217.
Referências Bibliográficas
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_____. Uma Investigação sobre os Princípios da Moral; trad. José O. De A. Marques. – Campinas: Unicamp, 1995.
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