Os Pitagóricos

Friedrich Nietzsche*

A filosofia dos pitagóricos deve ser mencionada, de acordo com o esquema organizado por Aristóteles, no final do período que debateu as ideias sobre a causa original e antes da teoria platônica das Ideias. A Metafísica. de Aristóteles, demonstra o desenvolvimento extraordinariamente diverso de suas ideias fundamentais e seu poder de influenciar cada novo sistema [1]. Neste contexto, a sua ascensão é talvez um pouco mais tardia que a do atomismo: basta dizer que nem Empédocles [2], nem os atomistas sabiam alguma coisa sobre eles. O primeiro a tornar-se conhecido, Filolau, provavelmente foi notado por causa da sua obra em três volumes, Da Natureza (Peri Physeos), designada mais tarde pelo nome místico Bacchai [de Baco]. É originário de Tarento e veio a finar na última década do século V a.C. em Tebas, sendo contemporâneo próximo de Lísis e Timeu, tendo Eurito como seu aluno. Segundo Aristoxeno [3], que até certo ponto ainda os via, a escola científica termina com os alunos de Filolau e Eurito: Xenófilos, Fânton, Equécrates, Diocles, e Polimnestos – destes Equécrates é um que aparece no Fédon. Existem duas gerações deles. [August] Boeckh [apresenta] as doutrinas pitagóricas de Filolau ao lado dos principais pontos de suas obras [4].
Para compreender seus princípios fundamentais, é preciso partir do eleatismo. Como é possível uma pluralidade? Pelo fato de o não-ser ter um ser. Portanto, identificam o não-ser ao Apeiron de Anaximandro, ao absolutamente Indeterminado, àquilo que não tem nenhuma qualidade; a isso opõe-se o absolutamente Determinado, o Peras. Mas ambos compõem o Uno, do qual se pode dizer que é ímpar, delimitado e ilimitado, inqualificável e qualificado. Dizem, pois, contra o eleatismo, que, se o Uno existe, foi em todo caso formado por dois princípios, pois, nesse caso, há também uma pluralidade; da unidade procede a série dos números aritméticos (monádicos), depois os números geométricos ou grandezas (formas espaciais). Portanto, a Unidade veio a ser; e, há também uma pluralidade. Desde que se têm o ponto, a linha, as superfícies e os corpos, têm-se também os objetos materiais; o número é a essência própria das coisas. Os eleatas dizem: “Não há não-ser, logo, tudo é uma unidade”. Os pitagóricos: “A própria unidade é o resultado de um ser e de um não-ser, portanto há, em todo caso, não-ser e também uma pluralidade”.
A primeira vista, é uma especulação totalmente insólita. O ponto de partida me parece ser a apologia da ciência matemática contra o eleatismo. Lembramo-nos da dialética de Parmênides. Nela, é dito da Unidade (supondo que não existe pluralidade): 1) que ela não tem partes e não é um todo; 2) que tampouco tem limites; 3) portanto, que não está em parte nenhuma; 4) que não pode nem mover-se nem estar em repouso etc. Mas, por outro lado, o Ser e a Unidade dão a Unidade existente, portanto a diversidade, e as partes múltiplas, e o número, e a pluralidade do ser, e a delimitação etc. É um procedimento análogo: ataca-se o conceito da Unidade existente porque comporta os predicados contraditórios e é, portanto, um conceito contraditório, impossível. Os matemáticos pitagóricos acreditavam na realidade das leis que haviam descoberto; bastava-lhes que fosse afirmada a existência da Unidade para deduzir dela também a pluralidade. E acreditavam discernir a essência verdadeira das coisas em suas relações numéricas. Portanto, não há qualidades, não há nada além de quantidades, não quantidades de elementos (água, fogo etc.), mas delimitações do ilimitado, do Apeiron; este é análogo ao ser potencial da hyle de Aristóteles. Assim, toda coisa nasce de dois fatores opostos. De novo, aqui, o dualismo. No notável quadro estabelecido por Aristóteles [5]:
limitado – ilimitado
ímpar – par
uno – múltiplo
direita – esquerda
masculino – feminino
imóvel – movimento
reto – curvo
luz – trevas
bom – mau
quadrado – oblongo
De um lado, têm-se, portanto: delimitado, ímpar, uno, direita, masculino, imóvel, reto, luz, bom, quadrado. De outro lado, ilimitado, par, múltiplo, esquerda, feminino, móvel, curvo, trevas, mau, oblongo. Isso lembra o quadro-modelo de Parmênides. O ser é luz e, portanto, sutil, quente, ativo; o não-ser é noite e, portanto, denso, frio, passivo. O ponto de partida que permite afirmar que tudo o que é qualitativo é quantitativo encontra-se na acústica. Tomando duas cordas de igual comprimento e espessura e esticando ambas uma ao lado da outra com pesos diferentes, observamos que os sons podem ser reduzidos a relações numéricas definidas. Em seguida, prendemos uma ponte móvel (magadion) sob uma das várias cordas apertadas e pressionamos a mesma em dois pontos diferentes: ela [a ponte] divide as cordas em duas partes iguais, dando, a cada metade, uma oitava mais alta que a corda não dividida. Quando prendemos ambas numa proporção de 2:3 (logos hemiolios), ouvimos a quinta (dia pente); como 3:4 (epitritos), a quarta (dia tessaron). O instrumento foi chamado de cânone (kanon). Pitágoras dividiu a corda em doze comprimentos sob sua superfície e, ao fazê-lo, atribuiu os números 6, 8, 9 e 12 à oitava, quarta, quinta e [principal] como padrão dos comprimentos da corda. Como a quinta é cerca de um tom inteiro mais alto que a quarta, Pitágoras observou em seu cânone, além disso, a relação numérica do tom inteiro (tonos): a proporção 8:9 (epogdoos logos). Então os números sagrados são derivados aqui desta forma: os números 1, 2, 3 e 4 contêm os intervalos consonantais (simphona) – a saber, 1:2, a oitava; 2:3, a quinta; e 3:4, a quarta. Juntos eles constituem a tetraktys. Se somarmos as unidades deles, a dekas é criada. Adicionar esses números aos números 8 e 9, que incluem o intervalo de tom inteiro, resulta em 1 + 2 + 3 + 4 + 8 + 9 = 27. O número de parcelas individuais produz o número sagrado 7. Platão parte do número 7 na sua construção do espírito do mundo no Timeu [6].
A música, com efeito, é o melhor exemplo do que queriam dizer os pitagóricos. A música, como tal, só existe [vorhande] em nossos nervos auditivos e em nosso cérebro; fora de nós, ou em si mesma (no sentido de Locke), compõe-se somente de relações numéricas quanto ao ritmo, se se trata de sua quantidade, e quanto à tonalidade, se se trata de sua qualidade, conforme se considere o elemento harmônico ou o elemento rítmico. No mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o ser do universo, do qual a música é, pelo menos em certo sentido, a imagem [Abbild], exclusivamente com o auxílio de números. E tal é, estritamente, o domínio da química e das ciências naturais. Trata-se de encontrar fórmulas matemáticas para as forças [Kräfte] absolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido, pitagórica [7]! Na química, temos uma mistura de atomismo e de pitagorismo, para a qual Ecphantus na Antiguidade passa por ter aberto o caminho.
A contribuição original dos pitagóricos é, pois, uma invenção extremamente importante: a significação do número e, portanto, a possibilidade de uma investigação exata em física. Nos outros sistemas de física, tratava-se sempre de elementos e de sua combinação. As qualidades nasciam por combinação ou por dissociação; agora, enfim, afirma-se que as qualidades residem na diversidade das proporções. Mas esse pressentimento estava ainda longe da aplicação exata. Contentou-se, provisoriamente, com analogias fantasiosas.
Aristóteles descreve assim: nas ciências matemáticas,

posto que nelas os primeiros princípios são os números, por natureza, acreditavam [os pitagóricos] ver nisto – mais do que no fogo, na terra e na água (múltiplas semelhanças com as coisas que são e as que se geram, por exemplo, que tal propriedade dos números é a Justiça, e tal outra é a Alma e o Entendimento, e tal outra a Oportunidade e, analogamente, o mesmo nos demais casos), e além disso, viam nos números as propriedades e proporções das harmonias musicais – ; posto que as demais coisas na sua natureza toda pareciam assemelhar-se aos números, e os números pareciam ser os primeiros de toda a natureza, supuseram que os elementos dos números são elementos de todas as coisas que são, e que o firmamento inteiro é harmonia e número (ARISTÓTELES. Metafísica, 985b 25 a 986a 3).

Como, por exemplo, consideravam o número 10 perfeito e o epítome de toda a essência do número, sustentavam também que havia dez corpos movendo-se nos céus; porque apenas nove eram visíveis, no entanto, eles transformaram a anti-terra no décimo. Eles consideram como elementos do número o par e o ímpar, e destes [eles sustentam] que [o par] é ilimitado e [o ímpar é] limitado, enquanto a unidade consiste em ambos (porque é par e ao mesmo tempo ímpar). Dessa unidade origina-se o número, e o universo consiste em números.
Todos os números são divididos em números pares (hartios) e ímpares, e qualquer número é resolvido parcialmente em par e parcialmente em ímpar (perissos) elementos. Aqui, eles concluíram que par e ímpar são as condições gerais de existência das coisas. Pois bem, eles equiparavam o ímpar ao Limitado e o par ao Ilimitado, porque o primeiro estabelece um limite para a divisão; o outro, não. Assim, todas as coisas originam-se do Limitado e do Ilimitado. Os limitados e os ímpares são considerados perfeitos (observe o significado popular dos números ímpares). Eles chamavam esses ímpares de “gnomones” também: um gnomone é um número que corresponde a um número quadrado, produzindo outro número quadrado; isto, porém, é uma propriedade de todos os números ímpares.
12 + 3 = 22
22 + 5 = 32
32 + 7 = 42
Bem, adicionar os números ímpares à unidade produz apenas números quadráticos e, portanto, números de uma forma simples (etc.), contra a qual obtemos de qualquer outro modo – [por exemplo,] somando os pares à unidade ou somando pares e ímpares – números dos mais diversos tipos. Bem, sempre que os pitagóricos percebiam qualidades opostas, eles consideravam o superior limitado e ímpar e o inferior ilimitado e par. Se as condições de existência das coisas são de composição oposta, era necessário um vínculo para que algo surgisse delas. Isto é, segundo Filolau, harmonia [afinação]: “A harmonia é a unificação de muitos (elementos) mistos que são conflitantes e uma concordância dos discordantes” [8]. [Isto é] unidade de diversidade e concordância em duas opiniões divididas. Se a oposição entre os elementos está em todas as coisas, então a harmonia também está em tudo. Tudo é número, tudo é harmonia, porque todo número definido é uma harmonia do par e do ímpar. Harmonia é caracterizada como uma oitava, no entanto. Temos na oitava a relação 1:2, que resolve a oposição principal em harmonia. Nesta noção notamos a influência de Heráclito.
Mencionamos, ao caracterizar o seu método de equações, que a justiça consiste em multiplicação de iguais como – em outras palavras, de números quadrados; por esta razão [o número] 4, ou especialmente 9 (o primeiro número quadrado ímpar), foi denominado justiça. O número 5 (a união do primeiro número masculino e primeiro feminino) é chamado de casamento, a unidade de razão, porque é imutável. Duplicidade [é chamada] opinião, porque é alterável e indefinida. Este ou aquele conceito tem o seu lugar no mundo nesta e naquela região. Por exemplo, a opinião [tem o seu lugar] na região da Terra (porque a Terra ocupa a segunda posição na série dos corpos celestes); momento oportuno (kairos), na região solar (ambos expressos pelo número 7). Os cantos do quadrado são dedicados a Rhea, Demeter, Hestia, e as divindades da terra, porque o quadrado forma os limites da superfície do cubo, mas de acordo com Filolau, o cubo é considerado a forma fundamental da terra. Os ângulos do triângulo são consagrados às divindades da destruição – Hades, Dioniso, Ares, e Cronos – porque a forma fundamental do fogo é a tetraktys formada por quatro triângulos equiláteros [9].
O sistema da década é especialmente importante: já que para eles [os pitagóricos] todos os números depois de dez parecem ser apenas repetições dos dez primeiros, parecia que todas as potências do número estavam contidas nas dekas; que significa grandeza, onipotência, a conclusão de todas as coisas, início e guia feminino para a vida divina e terrena. É a perfeição: por isso [encontramos] enumerações de dez partes onde se diz que a totalidade da realidade é descrita (tabela de opostos, sistema de corpos celestes). Eles dizem da tetraktys, “que contém a fonte e a raiz da inesgotável natureza” [10]. Juramentos foram feitos [tais como] “Não, por aquele nos deu a tetraktys” [11]. Eles (e.g Thrasyllus) adorava organizar as coisas em séries de quatro partes. A unidade é a primeira de onde se originam todos os números, e é por isso que se diz que as qualidades opostas são unificadas: “Pois se você somá-la a um número par produz um ímpar, e se você somar a um número ímpar produz um par; o que não seria capaz de fazer a menos que partilhasse de ambas as naturezas” [12].
No caso da dedução das dimensões geométricas, eles equiparam a unidade ao ponto, a duplicidade à linha, a trindade à superfície e o número 4 ao sólido. Com a figura, porém, acreditavam ter deduzido o próprio corpóreo. Bem, diz-se que sua composição elementar depende da forma do corpo. Dos cinco sólidos regulares, ele [Filolau, 13] atribuiu o cubo à terra, o tetraedro ao fogo, o octaedro ao ar, o triângulo isósceles [do isocaedro] à água e os dodecaedros [ao éter e] a todos os elementos restantes; ou seja, ele assumiu que as menores partes existentes desses vários materiais teriam a forma dada. O fato de o número de materiais fundamentais ser cinco pressupõe um período posterior a Empédocles, o que significa a influência de Empédocles sobre Filolau. Eles tinham em mente a Cosmogonia: no começo o fogo surge no centro do universo (chamado de Um ou de Monas, o senhor do universo, a torre de vigia de Zeus). A partir daqui, diz-se que as partes circundantes do Ilimitado são atraídas por ele e assim se tornam limitadas e definidas (lembra-me do conceito de Ilimitado de Anaximandro). Este efeito continua até a construção do universo chegar ao fim (o fogo heraclitiano é empregado para produzir um mundo definido a partir do Ilimitado de Anaximandro).
O mundo é construído como uma esfera (Empédocles ou Parmênides) no ponto médio [da qual está] o fogo central, em torno do qual dez corpos celestes desenvolvem de oeste para leste, sua dança circular [ocorrendo] na maior distância do céu de estrelas fixas; depois disso [vêm] os cinco planetas (Saturno, Jupiter, Marte, Vênus, Mercúrio); a isto [são acrescentados] o Sol, a Lua, a Terra e a anti-terra como o décimo; o limite mais externo é formado pelo fogo da circunferência. Ao redor do fogo central move-se a Terra, e entre os dois [move-se] a anti-terra, de tal forma que a terra está sempre com a mesma face voltada para o fogo central e anti-terra, e consequentemente, nós que estamos do outro lado podemos perceber os raios do fogo central não diretamente, mas a princípio indiretamente por meio do sol. Os pitagóricos consideravam a forma da Terra como esférica – um avanço astronômico extremamente significativo. Considerando que anteriormente a fixidez da Terra era pressuposta e a mudança dos dias era inferida a partir do movimento do Sol, aqui temos uma tentativa de explicá-la a partir do movimento da Terra. Se apenas o fogo central fosse abandonado e a anti-terra fosse unificada com a Terra, então a Terra se moveria em torno de seu próprio eixo. Diz-se que Copérnico herdou sua ideia diretamente de Cícero e Plutarco, por causa de Filolau [14].
Uma consequência do movimento dos astros é a doutrina da harmonia das esferas. Todo sólido que se move rapidamente emite um som. As estrelas constroem juntas uma oitava, ou, o que dá no mesmo, uma harmonia – portanto, não uma harmonia no nosso sentido, mas sim a corda afinada do antigo heptacorde [um instrumento musical grego]. Mais precisamente, quando todas as notas da oitava soam juntas, não há “harmonia”. Por nós não o ouvimos eles esclarecem da seguinte forma: chega até nós como uma forja aos seus ocupantes: desde o nascimento ouvimos o mesmo ruído; na sua presença, nunca chegamos a notar a quietude por contraste. Essa noção originalmente se referia apenas aos planetas, pois, caso contrário, dez sons teriam sido produzidos, embora a harmonia exija sete, à maneira do heptacorde. O que os olhos veem ao observar as estrelas é o que os ouvidos ouvem nos sons dos tons.
O fogo da circunferência tinha a missão de manter o mundo unido: por isso chamaram-no de necessidade (anagke). [August] Boeckh provou que isso significa a Via Láctea. Além do fogo circunferencial encontra-se o Ilimitado. Arquitas perguntou se um homem poderia esticar o braço ou um galho na beira do mundo; se isso puder ser feito, então deve haver algo além [do mundo], ou seja, o corpo ilimitado (soma apeiron) e localizado (topos), que vem a ser a mesma coisa. Uma segunda razão: se se dissesse que um movimento ocorreu, então, pelo corpo em movimento criar espaço sobre o qual outros cruzariam os limites do universo, o mundo acabaria por fervilhar (kymanei to holon, überwallen).
É entre os pitagóricos que, pela primeira vez, a noção de altos e baixos no mundo, ou melhor, de maior ou menor distância do centro, é abandonada. Eles chamam aquilo que está mais próximo do meio de direita e o mais distante de esquerda; o movimento dos corpos celestes ocorre de oeste para leste: o meio ocupa o lugar de honra à direita dos corpos cósmicos. Eles consideravam a parte superior do mundo mais perfeita. :Eles distinguem o círculo de fogo externo do círculo de estrelas, e estes dos que estão acima e abaixo da lua: Olympus, a circunferência mais externa; Cosmos, as estrelas do céu; e Uranos, a região inferior. Em um [Olympus], [temos] os elementos em toda a sua pureza (a saber, o limitado e o ilimitado); o segundo [Cosmos] é o lugar do movimento ordenado; e o terceiro [Uranos], o do Devir e do Desaparecer. Sempre que as estrelas voltam a atingir a mesma posição, não apenas as mesmas pessoas, mas também o mesmo comportamento ocorrerão novamente [15].

DIGGES, Th. Caelestiall Orbis, 1576.

[Os pitagóricos tinham] pouco a dizer sobre questões psicológicas ou epistemológicas. Seria relevante, se Filolau tivesse reduzido a composição física ao número 5; animação ao número 6; razão, saúde e aquilo “que ele chama de luz” [16], o 7; e amor, amizade, inteligência e criatividade para 8. Então [há] a famosa proposição de que a alma é uma harmonia, ou seja, a harmonia do seu corpo. A razão está situada no cérebro; [têm as suas] vida e sensação no coração; enraizamento (rizozis) e germinação (anaphisis) [o têm] no umbigo; a procriação [ocorre] nas partes reprodutivas. No primeiro, está o cerne da humanidade; no segundo, o dos animais; no terceiro, está o das plantas; e no quarto, o de todos os seres. Sem número o conhecimento é impossível. Nisso, não se admite inverdades; só isso torna cognoscível a relação das coisas. Tudo deve ser limitado, ilimitado ou ambos; sem fronteiras, entretanto, nada seria cognoscível.
Caso se pergunte a que se pode vincular a filosofia pitagórica, encontra-se, inicialmente, o primeiro sistema de Parmênides, que fazia nascer todas as coisas de uma dualidade; depois, o Apeiron de Anaximandro, delimitado e movido pelo fogo de Heráclito. Mas estes são apenas, evidentemente, problemas secundários; na origem há a descoberta das analogias numéricas no universo, ponto de vista inteiramente novo. Para defender essa ideia contra a doutrina unitária dos eleatas, tiveram de erigir a noção de número, foi preciso que também a Unidade tivesse vindo a ser; retomaram então a ideia heraclitiana do polemos, pai de todas as coisas, e da Harmonia que une as qualidades opostas (a essa força, Parmênides chamava Aphrodite) [17]. Simbolizava a gênese de todas as coisas a partir da oitava. Decompuseram os dois elementos de que nasce o número em par e ímpar. Identificaram essas noções com termos filosóficos já usuais. Chamar o Apeiron de Par é sua grande inovação; isso porque os ímpares, os gnomones, davam nascimento a uma série limitada de números, os números quadrados.

Com isso, queimam uma ponte a Anaximandro, que reaparece aqui pela última vez. Mas identificam esse limite com o fogo de Heráclito, cuja tarefa é, agora, dissolver o indeterminado em tantas relações numéricas determinadas; é essencialmente uma força calculadora [eine rechnende Kraft]. Se houvessem tomado emprestado de Heráclito a palavra Logos, teriam entendido por ela a proporção (aquilo que fixa as proporções, como o Peras fixa o limite). Sua ideia fundamental é esta: a matéria, que é representada inteiramente destituída de qualidade, somente por relações numéricas adquire tal ou tal qualidade determinada. Essa é a resposta dada ao problema de Anaximandro. O vir-a-ser é um cálculo. Isso lembra a palavra de Leibniz, ao dizer que a música é exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi [18]. Os pitagóricos teriam podido dizer o mesmo do universo, mas sem poder dizer quem faz o cálculo.

Notas

*. NIETZSCHE, Fr. “The Pythagoreans”, in The Pre-Platonic Philosophers, cap 16.
1. ARISTÓTELES. Metafísica, liv. 1, cap. 9, 990b.
2. Empédocles, segundo PORFÍRIO. Vida de Pitágoras, teria dado testemunho de conhecer e ser influenciado pelos pitagóricos. É o fragmento 129 do que restou sobre o pensador de Agrigento. [Nota da tradução].
3. DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, liv.VIII, cap. 1, §46.
4. BOECKH, August. Philolaus des Pythagoreers Lehren nebst den Bruchstücken seines Werkes. – Berlim, 1819, SCHAARSSCHMIDT, C. Die angebliche Schriftstellererei des Philolaus und die Brüchstücke der ihm zugeschriebenen Bücher, – Bonn, 1864. Várias afirmações foram criticadas por Zeller, todas de Val. Rose [Nietzsche refere-se aqui a ZELLER, Eduard. “Pythagoras und die Pythagorassage”, in Vortraege und Abhandlungen, – Leipzig, 1865, 30-50, e ROSE, Valentine. De Aristotelis librorum ordine et autoritate, – Berlim, 1854, 2]. De acordo com DIÓGENES LAÉRCIO. Op. Cit., liv.VIII, cap. 7, §84, Filolau teria nascido e morrido em Crotona, sul da Itália, por volta do século V a.C.
5. ARISTÓTELES. Metafísica, liv. 1, cap. 5, 986a.
6. Cf. WESTPHAL. Rudolph. Rhythmik und Harmonik, 64 (1826-92) e ROSSBACH, A. Metric der Griechen, vol. 1 de Griechische Rhythmik und Harmonik nebst der Geschichte der drei musichen Disziplinen, 2 vols. – Leipzig: Teubner , 1867-68.
7. Aqui Nietzsche se refere à dinâmica noção de força iniciada por Boscovich e refletida nas ciências, especialmente atômica e química. Lancelot Law Whyte falou de Boscovich que “Pitágoras estendeu para abranger o processo” (WHYTE, ed. Roger Joseph Boscovich: Estudos de sua vida e obra no 250º Aniversário de seu Nascimento. – Londres: Allen e Unwin, 1961, p. 124.
8. FILOLAU, frag. 10: Esti gar harmonya polymigeon enosis kai dicha phroneonton symphrasis.
9. TEON DE SMYRNA. Mathematical Useful for Undestanding Plato, part.2, §§XL a XLIX, atribui os sólidos geométricos ao 4, bem como a sensação; o nove à razão; o 5 é o meio termo da década; o casamento é associado ao 6 que é o produto do primeiro par e de ímpar. [Nota da tradução]
10. SEXTO EMPÍRICO. Adversus Mathematicos 7, 94-95: Pegen aenaon physeos rizoma t echoysan.
11. SEXTO EMPÍRICO. Op. Cit. idem: ou ma ton ametera kephala paradonta tetraktyn. TEON DE SMYRNA. Op.Cit.<, part 2, §XXXVIII fornece a seguinte versão do juramento: “Juro por aquele que concedeu a tetraktys às gerações vindouras, fonte da natureza eterna, em nossas almas”.
12. TEON DE SMYRNA. Idem, part.1, §5. [Nota da tradução]
13. De fato, nos fragmentos restantes de Filolau há a menção ao quinto elemento, o éter – também chamado de Olympus -, entre os quatro tradicionais. Entretanto, a associação feita aos cinco sólidos geométricos lhe é posterior. Foi feita depois de Teetetos de Atenas ter construído os cinco sólidos e Platão e os acadêmicos terem-nos relacionados aos cinco elementos. Até Filolau, os pitagóricos reconheciam apenas três poliedros regulares: o cubo (DIÓGENES LAÉRCIO. Idem, liv.VIII, cap. 4, §83 atribui a Arquitas de Tarento a descoberta do cubo), a pirâmide de base triangular e o dodecaedro (IÂMBLICO. Sobre a Vida dos Pitagóricos, 18, 88 diz que Hipasos de Metaponto foi o primeiro a descrever o dodecaedro). Foi Teetetos o primeiro a construir o octaedro e o isocaedro, que junto aos outros três receberam o nome de “figuras platônicas”, após a famosa discussão no diálogo Timeu, de Platão (veja EUCLIDES. Elementos, XIII). [Nota da tradução]
14. CÍCERO. Academica, liv. 2, cap. 39; [PSEUDO] PLUTARCO. Placita Philosophorum, liv.3, cap. 13. Ironicamente, o Vaticano também tomou o heliocentrismo como uma doutrina pitagórica em sua pressão contra Copérnico. Nietzsche consistentemente associou Copérnico com Boscovich.
15. Essa é uma tardia variação pitagórica do eterno retorno do mesmo. Nietzsche, precisamos lembrar, acreditava que os neopitagóricos teriam sido influenciados por Heráclito, de quem a ideia do eterno retorno do mesmo pode ser atribuída. Porfírio atribui “a doutrina… do retorno periódico dos eventos” a eles (veja DIELS, Hermann. Die Fragmente der Vorsokratiker: Griechish und Deutsch, ed. Walther Kranz, 3 vols. – Berlim: Weidmannsche Buchhandlung, 1934-37, 14.8a. Por SIMPLICIO. In Physics. 732:30, Eudemo diz: “Se alguém fosse acreditar nos pitagóricos, que resultam que as mesmas coisas individuais retornarão, então eu poderia falar a você de novo sentado como você está agora, com esse ponteiro em minha mão, e tudo mais será como agora, e assim é razoável supor que o tempo é o mesmo como agora”. ESTOBEU, Eclogas Physica, 1.20.2, atribui um tipo de eterno retorno aos pitagóricos. Veja também NIETZSCHE, Fr. “Do Uso e Abuso da História para Vida”, in Últimas Meditações. – Cambridge: CUP, 2007, §2, p.70: “No fundo, de fato, o que uma vez foi possível poderia apresentar-se como uma possibilidade por uma segunda vez apenas se os pitagóricos estivessem certos em acreditar que quando a constelação dos corpos celestes repetirem a mesma posição, os eventos na Terra repetiram nos mais ínfimos detalhes; assim, sempre que as estrelas ficam em certa relação, um estoico e um epicurista farão uma conspiração para matar César, e uma diferente conjunção mostrará outra descoberta da América, por Colombo”.
16. [PSEUDO] IÂMBLICO. Theologumena Arithmeticae: to hyp auton legomenon phos. Nietzsche não forneceu fonte para esta frase, que vem de Pseudo-Iâmblico.
17. Veja PARMÊNIDES. Fragmento 18.

18. LEIBNIZ, Gottlib W. Coleção de Epístolas, ep. 154: “um exercício oculto de aritmética, sem que o espírito saiba que está calculando”. É a mesma passagem da correspondência de Leibniz citada por Arthur Schopenhauer em O Mundo como Vontade e Representação (vol.1, liv.3, §52). Schopenhauer “parodia” a fórmula leibniziana com sua própria interpretação: “música é um exercício oculto de metafísica, sem que o espírito saiba que está filosofando” (vol.1, liv.3, §52, p.343); e ainda comenta: “Mas além, graças ao dito de Leibniz, corroborado de muitas maneiras, a música, abstraindo seu significado estético ou interior, e considerada apenas externa e empiricamente, nada mais é do que um meio de aprender diretamente e in concreto números muito grandes e relações numéricas complexas, que de outro modo seriam passíveis de conhecimento apenas através de conceitos abstratos. Dessa forma, pela reunião destas duas concepções distintas da música, ambas corretas, podemos chegar a uma concepção que torne possível uma filosofia dos números, semelhante à de Pitágoras ou ainda à dos chineses no I Ching, e então esclarecer o sentido daquela proposição dos pitagóricos citada por Sexto Empírico (Idem, liv. VII, §94): to arithmo de tá pant epeioken (Todas as coisas são semelhantes ao número)” (SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representação, idem).

Fontes

NIETZSCHE, Fr. The Pre-Platonic Philosophers; trad. Greg Whitlock . – Chicago: University Illinois Press, 2006.
____. “Pitágoras de Samos”, in Pré-Socráticos; trad. Rubens R.T. F°. – São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Os Pensadores).

O Mundo de Schopenhauer

A despeito da aparente facilidade de leitura que o estilo de Arthur Schopenhauer (1788-1860) sugere, seu sistema filosófico, descrito em O Mundo como Vontade e Representação (1818), traz algumas dificuldades de interpretação devido a certas novidades propostas. Tais como a consideração da “vontade” como a coisa em si; seus graus de objetivação; a superação do “sujeito” sobre o “indivíduo”, através do conhecimento puro das ideias, etc. Ao final, a supressão da vontade e das representações torna-se ilusória e nada sobra para salvaguardar o conhecimento racional humano do mundo real. Esse dualismo, na esteira de Platão (429-348/47 a.C) e de Immanuel Kant (1724-1804), acaba por ser esmagado pela realidade concreta e material, dominada, pelas paixões, e não haveria nada que a pretensa razão pudesse fazer, a não ser contemplar as ideias eternas, caso conseguisse alcançá-las.
Schopenhauer considera o mundo das ideias concebido por Platão o único verdadeiro e digno de conhecimento. Entretanto, admite que, depois de Kant, os obstáculos impostos ao acesso imediato às coisas em si – participantes da realidade platônica – por meio dos fenômenos, disponíveis ao entendimento, segundo as formas da sensibilidade, seria impossível de atingir. Ainda mais com a concorrência dos desejos da vontade humana. A fim de buscar o conhecimento verdadeiro, a mente do sujeito racional deveria passar por um processo de objetivação da vontade – o reconhecimento de sua interferência na capacidade de entendimento das ideias -, para só então penetrar no mundo das ideias eternas.
Na Crítica da Razão Pura (1781), a vontade livre exerce um papel pequeno, mas crucial na resolução do conflito entre o querer e a liberdade de agir, observado na terceira antinomia, que trata da liberdade em face do determinismo nas leis naturais. O conceito de livre arbítrio, para Kant (autor da Crítica), estaria ligado a questões práticas e não transcendentais. O que significa que poderia ser demonstrado pela experiência, sem precisar apelar para argumentos metafísicos.
Sob essa ótica empírica, a razão seria restrita a um uso regulador das ações , conforme um fim específico. Nesse sentido, a razão poderia fornecer leis pragmáticas (de ação) para conduta humana, mas não puras, isto é, determinadas apriori. A razão pura, por outro lado, poderia também estabelecer leis práticas puras, sem ser condicionada empiricamente. Tais leis seriam as leis morais do uso prático da razão pura [1]. Sendo a vontade “livre”, a razão trabalharia para resolver o problema sobre o que se deve fazer em relação a um fim supremo da natureza [2]. Do contrário, uma vontade determinada apenas por impulsos sensíveis, patologicamente, seria “simplesmente animal”.
Se seres humanos possuem a capacidade de ultrapassar as impressões exercidas pela sensibilidade sobre os desejos, então, a razão refletiria acerca do que é bom e útil para todos. Assim, a razão humana poderia propor leis objetivas sobre o que deve acontecer, diferente das leis determinadas pela natureza. Daí, a liberdade ser uma condição das ações que podem ser deliberadas racionalmente. Vale dizer que essa liberdade prática pode conviver com as causas naturais que determinam a vontade, sem contradição com o determinismo. Embora a liberdade transcendental exija uma completa separação da razão em relação às condições empíricas, para ser uma liberdade real. Tal limitação, no entanto, não impediria o uso prático da razão.

A questão relativa à liberdade transcendental refere-se meramente ao saber especulativo e podemos deixá-la de lado, como totalmente indiferente , quando se trata do que é prático (KANT, I. Crítica da Razão Pura, A 804 ou B 832).

Em suma, na arquitetônica kantiana, a razão fundamentada logicamente, não é um fenômeno que se submeta à sensibilidade. Sendo assim, seria forte o suficiente para determinar as ações da vontade livre, segundo as leis recíprocas da moral, na cadeia causal que influencia seus desejos, em sua condição empírica natural. Nesse sentido, é facultado à razão prática ditar os comandos que afetam o agir humano, a priori, independente de sua origem animal. O modo como essa liberdade transcendente inicia uma série de fenômenos não é um problema que comprometa a razão prática, pois diz respeito apenas à razão pura.

A Vontade do Mundo

Schopenhauer não concordava com isso. E toda crítica demolidora dirigida aos filósofos acadêmicos de seu tempo começava por sua incompetência em responder às limitações impostas por Kant ao conhecimento da coisa em si. Em O Mundo como Vontade e Representação, considerou a vontade a própria coisa em si e o mundo da representação o palco onde as ideias se apresentam como fenômenos ou objetos para o sujeito do conhecimento busca sua compreensão. Por conseguinte, a representação não seria mais do que a objetividade da vontade em diferentes graus [3].
Assim, a vontade objetivada é a ideia que se mostra como seu objeto imediato. Porém, a mediação do corpo e da matéria impediria que a coisa em si, a vontade concreta fosse conhecida imediatamente pelo sujeito, segundo Schopenhauer. Para tanto, a superação das limitações corporais do indivíduo teria de ocorrer, a fim do sujeito atingir o conhecimento das ideias [4].
O conhecimento imediato do objeto favorece a vontade e – ao contrário do que pensava Kant – tudo que o princípio de razão descobre lhe é útil também, pois esse conhecimento serve aos interesses da vontade [5]. Para ser livre, o sujeito precisa libertar-se das coisas individuais e da própria vontade. Só assim, torna-se um sujeito puro capaz de perceber as verdadeiras conexões dos objetos. O sujeito puro do conhecimento, então, pode contemplar as ideias eternas que formam a vontade, sem, no entanto, se deixar dominar por esta. Enquanto se mantiver como indivíduo corporal, estará preso apenas ao conhecimento das coisas materiais e isoladas. Precisa, portanto, elevar-se além de si mesmo para transformar-se em um sujeito puro do conhecimento, um observador do mundo como representação que pode ser separado do mundo como vontade [6].
Como coisa em si a vontade é a fonte de todo fenômeno que aparece como representação. Ao descobrir isso, o sujeito pode se libertar da individualidade e da própria servidão da vontade. A obra de arte genial contribui para tanto. Pois é o único conhecimento passível de examinar a essência do mundo e os verdadeiros conteúdos dos fenômenos, indo além do que a ciência pode tratar através do princípio de razão, pelo uso livre da intuição estética.

Caricatura de Schopenhauer, por Edmundo Rodrigues, 1962.

Em geral, os outros conhecimentos estão submetidos à vontade, como a ciência empírica, que depende da sensibilidade. A ciência, por funcionar por meio do princípio de razão está presa à corrente causal determinada pela natureza, ao passo que a arte estaria livre para examinar o objeto por si mesmo, até ressaltar o conhecimento puro, isento de vontade. Quando o conhecimento se afasta da vontade, o sujeito deixa de ser individual e passa a dominar o puro conhecimento, sem necessidade do princípio de razão, que o relaciona com a vontade de saber a causa das coisas. A contemplação do objeto em si leva ao conhecimento de sua forma eterna, sua ideia. Assim, ao objetivar tudo que leva à vontade o sujeito ascende à coisa em si. O mundo das representações fenomênicas desaparece e fica só a vontade que é a ideia objetiva perfeita, cujo acesso se dá por meio de uma intuição natural [7].

As ideias – enquanto fenômenos trabalhados pelo princípio de razão – representam um conhecimento limitado das coisas individuais. Saber que a vontade é a fonte de todos os fenômenos e da coisa em si subjacente conduz à afirmação ou negação do domínio da vontade [8]. Os desejos do indivíduo têm origem na necessidade. A libertação proporcionada pelo conhecimento intuitivo abstrai a individualidade e o ser humano pode então libertar-se do serviço da vontade [9]. A contemplação estética do conhecimento puro sobrepõe-se à vontade, pois revela, pela sua objetivação, a essência em uma representação da coisa em si. O objetivo de todas as artes é a apresentação dessas ideias. Apesar da vontade e a essência da vida serem uma constante, a capacidade de conhecer a representação pura, independente do princípio de razão, através das artes, livra que a contempla de “toda dor e apresenta um espetáculo imponente” [10]. Não obstante, esse conhecimento do artista de gênio é de curto alcance e não vai mais longe do que o de um santo em sua resignação, que atinge a salvação eterna fora da vida [11].

Um Verdadeiro Nada

A resignação do homem santo resulta em um calmante ao querer. A negação dos desejos constitui, para Schopenhauer, a santidade absoluta que conduz à verdadeira salvação. O que ocorre quando a intuição consegue superar o princípio de individuação [12]. Em seu mais alto grau a objetivação da vontade abandona a noção de indivíduo. Mas nem mesmo a supressão da própria vida consegue destruir a vontade. A libertação da vontade só pode acontecer quando acontece a descoberta do conhecimento puro [13].
O princípio de razão está preso à necessidade de manutenção dos fenômenos. A liberdade pertence à coisa em si. A manifestação real do livre arbítrio vem depois que se descobre o conhecimento puro da vontade, por fora de seus motivos particulares. Uma regeneração que, de acordo com Schopenhauer, correspondia ao livre arbítrio.

A [liberdade] não se produz antes que a vontade, chegada ao conhecimento da natureza em si, tenha tirado deste conhecimento um calmante e se tenha, por si mesmo, subtraído à ação dos motivos, ação que depende de um outro modo de conhecimento em que os objetos são apenas fenômenos (SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representação, l. IV, §70, p.523).

Apenas os seres humanos seriam capazes de atingir tal liberdade e conhecimento. As outras criaturas estariam ligadas à necessidade que domina a natureza. Assim, a verdadeira virtude não faz parte da vontade, mas do conhecimento libertador. A transformação da faculdade de conhecer que leva à supressão completa da vontade gera a virtude e a justiça, pois a vontade está sujeita a servir o mal, por suas falhas e defeitos [14].
Depois de condenar o princípio de razão por atender as necessidades da vontade e esta por representar o próprio mal do mundo, resta ao sujeito apenas o socorro de uma intuição natural que momentaneamente, eleva o gênio artístico dos sofrimentos da vida, mas que não é suficiente para libertá-lo em definitivo das aflições humanas. O último recurso para a regeneração do caráter humano vem da resignação santa que só pode ser alcançada por intervenção da graça. O sistema de Schopenhauer teve, por isso, de enfrentar as críticas de niilismo que ressaltavam de sua obra principal. O autor nega que haja a defesa de um mal absoluto em sua obra, embora reconheça que poucos têm acesso ao “reino da graça” [15]. Uma vez posto o mundo de representação, como a negação do ser, ao espelhar a vontade, quando esta é suprimida, todos os fenômenos refletidos também desapareceriam, incluindo o próprio universo. Entretanto, sem a vontade, aquilo que desaparece é o verdadeiro nada. O que fica é o conhecimento puro, ao qual a contemplação é a “única coisa que nos pode consolar de uma maneira durável” (SCHOPENHAUER, A. Op.cit., §71, p.531).

Esse é o melhor meio de dissipar a sombria impressão que o nada nos produz (…) Para aqueles que se converteram e aboliram a Vontade, é o nosso mundo atual, este mundo tão real com seus sois e todas suas vias lácteas, que é o nada (SCHOPENHAUER, A. Ib., §71, p. 531).

A Intuição no Lugar da Razão

Uma vez que o princípio de razão estava a serviço da vontade, já não poderia mais proporcionar a superação dos desafios impostos à sobrevivência da alma humana. Sem ter como reconduzir a razão ao trono da metafísica, do qual havia sido deposta, a vontade assumiu seu lugar de domínio das coisas em si e dos fenômenos correspondentes. O conhecimento empírico que restava à razão não tinha a capacidade de apreender a coisa em si, por estar restrito às aparências das formas de sensibilidade – espaço e tempo -, que refletem apenas as coisas materiais. Isso seria um obstáculo intransponível para filósofos dualistas, como Schopenhauer, que acreditava em um mundo transcendental composto pelas ideias eternas. Se a razão não poderia compreendê-lo completamente, então, um outro modo de conhecer teria de ser estabelecido.
Schopenhauer procurou então recuperar o modo intuitivo, que Kant também havia questionado ao negar a existência de uma intuição inteligível – pois se algo fosse conhecido, não poderia ser apenas uma mera intuição, mas a própria coisa conhecida e, sendo inteligível, não seria uma intuição. Enquanto algo permanecer como intuição, nada claro e distinto poderá ser dito sobre ele. No entanto, Schopenhauer se socorria do terceiro gênero de conhecimento assumido por Baruch Spinoza (1632-1677), a ciência intuitiva [16].
Por atender aos desejos da vontade, a razão sempre estaria – no sistema de Schopenhauer – presa ao mundo das representações fenomênicas, sem nunca atingir o conhecimento puro das ideias eternas. Porém, quando, pela força do espírito, a intuição tomasse conta da consciência, a contemplação isolada do objeto revelaria sua respectiva ideia, ao mesmo tempo, em objetiva imediatamente a vontade, ou seja, na forma de uma coisa em si.

Em tal contemplação, de um só golpe, a coisa individual se torna a ideia de sua espécie, e o indivíduo que intui, o sujeito puro do conhecimento (SCHOPENHAUER, A. Ib., liv. III, §34, p.232).

Assim, “livre da individualidade e da servidão da vontade”, o sujeito conhecedor conseguiria o acesso ao conhecimento transcendental que o liberta da morte e das dores do mundo. Uma influência que Schopenhauer herdara de Spinoza. Em sua Ética (1677), Spinoza já havia identificado na imaginação, ou opinião vaga, a fonte de toda falsidade. A razão e a ciência intuitiva seriam as causas do conhecimento verdadeiro das ideias adequadas. A maior virtude e esforço da alma seria procurar compreender as coisas por meio das ideias adequadas fornecidas pela intuição. Todo esse conhecimento metafísico transcendental proviria da observação tomada a partir do ponto de vista da eternidade (sub aeternitatis specie). Para Spinoza, o ponto de vista da eternidade seria passível de ser atingido devido a alma ser igualmente eterna. As afecções afetariam a alma apenas enquanto estivesse presa ao corpo material.

Quanto maior é o número de coisas que a alma compreende pelo segundo e terceiro gêneros de conhecimento, tanto menos ela sofre por parte das afecções que são más e tanto menos teme a morte (SPINOZA, B. Ética, liv. V, prop. XXXVIII).

Schopenhauer aprendera essa lição de Spinoza [17] e a usava contra Kant, em auxílio às limitações do princípio de razão. A compreensão intuitiva das coisas, que a arte de gênio trazia como bálsamo momentâneo, ajustava-se à contemplação sacra, a fim de obter em definitivo, um conhecimento pleno da coisa em si. Embora isso necessitasse da intervenção do reino da graça.

Vemos, com efeito que a verdadeira virtude e santidade de alma tem sua origem primeira, não em uma vontade predeterminada (…), mas no conhecimento (…). É exatamente a mesma conclusão que se destaca do desenvolvimento de nossa ideia principal (SCHOPENHAUER, A. Ib., liv. IV, §70, p.526).

Sem embargo, o recurso à intuição não pode transformar a sensibilidade em conhecimento sem antes passar por um processo cognitivo que depende de um raciocínio, seja este puro ou empírico. Portanto, essa solução emprestada de Spinoza não pode resolver por si mesma todos os problemas que o sistema de Schopenhauer tem de enfrentar. Ao associar a vontade à coisa em si, não tem como eliminar seus efeitos nocivos, sem jogar fora, com o mundo das representações fenomênicas, o próprio mundo das ideias platônicas, onde pretendia contemplar as ideias verdadeiras. Por isso, Schopenhauer colocou-se em um beco sem saída que terminou por dar em nada todos seus esforços para fugir à dor e ao sofrimento do mundo da vida.
Tal situação resultou em uma contradição insolúvel que não escapou à crítica ácida de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) em seu primeiro ensaio sobre o autor.
Isso deve acontecer fora da esfera do espaço e tempo, sem a mediação da causalidade. Mas o que provém de um mundo assim, despojado de qualidades mundanas, deve ser ele mesmo a coisa em si, segundo Schopenhauer. Ora, ou o intelecto permanece eternamente unido à coisa em si como um novo predicado, ou não pode haver intelecto algum, porque um intelecto nunca poderia ter surgido.
Porém existe um intelecto. Disso se segue que não poderia ser uma ferramenta do mundo das aparências, como gostaria Schopenhauer, mas seria a coisa em si, isto é, a vontade (NIETZSCHE, Fr.W. Sobre Schopenhauer, §IV).

As contradições existentes no mundo imaginado por Schopenhauer não impediram que sua obra influenciasse as gerações posteriores. Suas críticas à filosofia acadêmica permanecem válidas e, mesmo contra sua vontade, seu nome foi inscrito na listas dos filósofos românticos alemães mais importantes

Notas

1. Veja KANT, I. Crítica da Razão Pura, A800 ou B828.
2. Veja KANT, I. Op.Cit., A801 ou B829.
3. Veja SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representação, l.III, §30.
4. Veja SCHOPENHAUER, A. Op.cit, §32.
5. Veja SCHOPENHAUER, A. Idem, §33.
6. SCHOPENHAUER, A. Ibidem, §34, p. 233.
7. SCHOPENHAUER, A. Ib., §34, p. 234.
8. Veja SCHOPENHAUER, A. Ib., §35, p. 238.
9. SCHOPENHAUER, A. Ib., §38.
10. SCHOPENHAUER, A. Ib., §52, p. 345.
11. Veja SCHOPENHAUER, A. Ib., l. IV, §52, p. 346.
12. Veja SCHOPENHAUER, A. Ib., idem, §68, p. 514.
13. Veja SCHOPENHAUER, A. Ib., §69.
14. Veja SCHOPENHAUER, A. Ib., §70, p. 525.
15. Veja SCH0PENHAUER, A. Ib., §71, p. 528.
16. Veja SPINOZA, B. Ética, liv. II, prop. XL, esc. II.

17. Veja SCHOPENHAUER, A. Ib., liv. III, §34, p. 232.

Referências Bibliográficas

KANT, I. Crítica da Razão Pura, trad. Manuela P. dos Santos e Alexandre Fr. Morujão. – Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.
NIETZSCHE, Fr.W. “On Schopenhauer”, in Writings from the Early Notebooks; trad. Ladislaus Lob. – Cambridge: CUP, 2009.
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representação, trad. M.F. Sá Correia. – Porto: Rés, s/d.
SPINOZA, B. Ética, trad.Joaquim de Carvalho et al. – São Paulo: Nova Cultural, 1989.

Baumgarten Inventa o Gosto

O termo “estética” é de origem helênica. Significa aquilo que é perceptível ou observável pelos sentidos (aisthetikos), isto é, o sensível. Seu uso original estava ligado ao estudo das sensações do ser, no mundo sensível. A acepção moderna, que permanece até hoje, de “ciência das sensações”, que abarca a teoria do belo, iniciou-se na obra do filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) intitulada Aesthetica (1750-58), em dois volumes. Para ser mais preciso, o primeiro uso moderno surgiu na tese desse autor, Meditações sobre o Poema, que faz parte do volume inicial de Estética. Dois volumes dividiram, então, a obra. O primeiro (“Metafísica) tratando das questões transcendentais que atingem a arte e o segundo (“Estética”), abordando efetivamente os conceitos fundamentais da nova “ciência”.
As coisas sensíveis são os objetos de estudo da ciência estética (episteme aisthetike) ou simplesmente estética [1]. Immanuel Kant (1724-1804) não aceitava o uso amplo do termo. Em sua Crítica da Razão Pura (1781), restringia sua aplicação a uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori, mas não das coisas sensível, em geral, muito menos dos julgamento de gosto. Em uma nota sobre o assunto, deixa sua posição clara ao dizer:

São os alemães os únicos que atualmente se servem da palavra estética para designar o que outros denominam crítica do gosto. Esta denominação tem por fundamento uma esperança malograda do excelente analista Baumgarten, que tentou submeter a princípios racionais o julgamento crítico do belo, elevando as suas regras à dignidade de uma ciência. Mas esse esforço foi vão. Tais regras ou critérios, com efeito, são apenas empíricos quanto às suas fontes (principais) e nunca podem servir para leis determinadas a priori, pelas quais se devesse guiar o gosto dos juízos; é antes o gosto que constitui a genuína pedra de toque da exatidão das regras. Por esse motivo é aconselhável prescindir dessa denominação ou reservá-la para a doutrina que expomos e que é verdadeiramente uma ciência (…) (KANT, I. Crítica da Razão Pura, I part., §1, A21 e B35).

Kant usava “estética” em dois sentidos: como teoria das formas puras de uma experiência sensível universal (sensibilidade) e como forma pura da reflexão de uma experiência única, um juízo estético particular. Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), por sua vez, dedicou ao tópico suas leituras sobre o campo da beleza, da arte ou belas artes, especificamente. Considerava “estética” uma palavra pouco satisfatória, a manteve em seus estudos, por já ter se tornado padrão em sua época – logo posterior a de Kant -, e não por indiferença quanto a seu emprego generalizado no senso comum.
Como um nome poderia ser mantido, a expressão que considerava apropriada para sua ciência era Filosofia da Arte ou mais precisamente, filosofia das belas artes.

Foi Baumgarten quem denominou de estética a ciência das sensações, esta teoria do belo (…) Na verdade, o termo estética não é o que mais propriamente convém (…) Conservemos, pois, o termo Estética, não porque o nome nos importe pouco, mas porque este termo adquiriu direito de cidadania na linguagem corrente, o que é já um argumento em favor de sua conservação (HEGEL, G.W.F. Estética, vol. 1, cap. 1, I sec., §III, p. 85/6).

Desse modo, a despeito das críticas de Kant e das ressalvas de Hegel, prevaleceu o emprego de Estética a todo tema referente, não só à sensibilidade, mas a todo trabalho onde se empregasse conceitos de beleza ou se fizesse juízo de gosto. Ainda no tempo de Baumgarten, o assunto era tido por superficial e distante do cerne da pesquisa filosófica. Diversos elementos constituíram, no entender de Baumgarten, o discurso sobre as sensações, partindo desde as representações sensíveis até as palavras aplicadas para descrevê-las.

Discurso Perfeito

A principal função da estética de Baumgarten era, tal como na poética aristotélica, construir bons poemas. A diferença entre as duas noções de poema residia na restrição feita pelo autor alemão, em relação ao estagirita. Enquanto, para Aristóteles, os poemas continuavam sendo produtos da atividade técnica humana, mesmo que procurasse abordar apenas as obras literárias – textos escritos, em geral – em sua Poética, Baumgarten limitava o conceito a uma expressão refinada da linguagem. Para este, um poema é definido como um “discurso sensível perfeito” que contribui para o conhecimento das representações. Quanto mais claras forem as representações, mais perfeitos seriam os poemas [2].
Em sua tarefa de representar as coisas sensíveis, um procedimento poético provoca afetos. A representação total da imaginação, feita com maior clareza sobre sua extensão – aquilo de que fala -, é também um procedimento poético. A pintura, semelhante ao poema, procura compor a ideia sensível do objeto. Contudo, as imagens poéticas – descritas – contribuem com mais elementos a unificar as figuras. E, nesse processo, a memória ajuda a formar o reconhecimento do objeto, ainda que retratado de modo confuso [3].

Na construção de um poema perfeito, deve-se reduzi-lo a um só tema, que é melhor do que a abordagem de vários assuntos. Uma ordem lúcida da sucessão de representações é o método poético mais indicado. A concisão, no entanto, não deve prejudicar o grau de perfeição da obra a ponto de a deixar incompleta [4].

Questão de Gosto

A relevância de Estética foi além da difusão de um novo conceito de teoria da arte. Esse trabalho acrescentou a essa área de estudo a investigação sobre os “juízos de gosto”, ou estéticos, que são feitos sobre a perfeição dos objetos sensíveis. Também apresentou critérios necessários para essa formação de juízo – clareza, simetria e ornamentação da figura [5]. Manteve, não obstante, a ideia de que a “imitação da natureza” seria a essência das obras de arte.
Assim, definiu a estética como sendo a ciência das coisas sensíveis, distante da lógica – que estudaria as coisas inteligíveis -, nos moldes em que autores anteriores haviam definido.

(…) Já os filósofos gregos e os padres da Igreja sempre distinguiram cuidadosamente as coisas sensíveis (aistheta) das coisas inteligíveis (noeta) (BAUMGARTEN, A.G. Ibd., §116).

O juízo, ou faculdade de julgar, perceberia a perfeição ou imperfeição de um objeto. O gosto, ao tratar do juízo sensível, se baseia nos cinco sentidos para se formar. Enquanto a crítica corresponde à capacidade intelectual de produzir julgamentos estéticos [6]. O gosto, portanto, é o julgamento dos sentidos.
Dessa maneira, a estética assumiu a condição de uma ciência do conhecimento sensitivo. Sendo assim, poderia ser aplicada a todas às artes que afetassem os sentidos, englobando a imaginação. Seu objetivo era aperfeiçoar o conhecimento sensitivo, o que significava, em uma palavra, constituir a beleza [7]. As imperfeições do conhecimento são responsáveis pelas distorções e deformidade do juízo estético, ocasionadas pela vulgaridade, falsidade, obscurantismo e pelo gosto dúbio apressado.
Baumgarten acreditava que um verdadeiro esteta possuiria um talento refinado inato [8].

Os talentos mais eminentes e universais de todos os tempos (…) ensinam a posteriori que a aptidão para pensar de modo belo e a aptidão para pensar de modo lógico se ajustam bem e podem coexistir em um único espaço, (…) segundo a disciplina mais rigorosa dos filósofos e dos matemáticos (BAUMGARTEN, A.G. Ib, ide., §43).

O talento natural reuniria o conhecimento lógico e estético de modo coerente. Suas potencialidades não deveriam ser negligenciadas por uma educação indolente que venha a corromper as qualidades internas por meio da hipocrisia, violência, orgias, pobreza de espírito e vulgaridade, deturpando “tudo aquilo que parecia pensado com graça e elegância, de modo belo” [9].
Por conseguinte, uma verdade estética poderia ser alcançada através de um conhecimento sensível que não fosse deformado. Acima da estética, apenas a verdade “estético-lógica” que seria a expressão da maior verdade metafísica, uma vez que liga o conhecimento sensível ao conhecimento lógico: um “analogon” da razão. Do contrário, haveria a falsidade estética, subjetiva, em desarmonia com os objetos do pensamento, passíveis de serem percebidos sensitivamente, como as imagens dos sonhos ou as produzidas pela imaginação, em geral. Tudo que ferisse a unidade do tempo e espaço na obra de arte deveria ser rejeitado como falsidade estética. Por outro lado, a pretensão de verdade estética, que não atingisse a certeza absoluta e que não contivesse nenhuma falsidade explícita, poderia ser aceita como verossímil.

E assim, será esteticamente verdadeiro, isto é, verossimilhante, aquilo que, sensitiva e intelectualmente, é absolutamente certo (…), aquilo que é lógica e esteticamente provável (BAUMGARTEN, A.G. Ib., seç. XXIX, § 485).

A aceitação da verossimilhança como verdade estética explica-se pela necessidade de se preencher as lacunas do conhecimento sobre um fato ou objeto que não se compreende totalmente. Entretanto, ter-se-ia um zelo estético pela verdade no interesse em se preservar a beleza necessária ao pensamento. O intelecto humano não seria capaz, segundo Baumgarten, de alcançar a verdade lógica máxima. Daí a importância de se ter um tal “zelo pela verdade” absoluta e universal a ser buscada.

Aquele que distingue bem a verdade estética, aquele que, em relação às verossimilhanças, representa de modo mais belo as coisas que narra, as coisas que inventa através das várias ficções e, enfim, quando for um poeta, através das próprias ficções poéticas (…) não será julgado, onde faltam argumentos, que está a mentir, se argumenta de modo belo ou então se revelar belamente como seu zelo pela verdade procurou toda espécie de verossimilhança (…) (BAUMGARTEN, A.G. Ib., seç. XXXVI, §613).

A despeito de diversas irregularidades – inconsistência e circularidades – a Estética de Baumgarten logrou estabelecer um campo de estudo para a teoria da arte e suas disciplinas. Também foi exitosa em separar a arte das várias técnicas que correspondem os afazeres humanos, indo além do que os antigos e medievais entendiam sobre a beleza produzida por ação humana. Pode ainda criar um roteiro de discussões que não seriam, em parte ou no geral, seguido pelos filósofos e artistas posteriores, mas formavam uma base de argumentação que influenciou profundamente o romantismo alemão e as artes modernas e contemporâneas. Depois de Baumgarten, quem quisesse tratar dos assuntos ligados aos juízos estéticos teria então que postular ou refutar os novos conceitos estabelecidos, graças a sua obra original e inovadora.

Notas

1. Veja BAUMGARTEN, A.G. Estética, part. I, §116.
2. Veja BAUMGARTEN, A.G. Estética part. I., §§ 6 a 13.
3. Veja BAUMGARTEN, A.G. Op.cit., idem, §§26 a 42.
4. Veja BAUMGARTEN, A.G. Idem, id., §§67 a 72.
5. Veja BAUMGARTEN, A.G. Ibdem, ib., §97.
6. Veja BAUMGARTEN, A.G. Ib., part II, cap. 1, seç. IX, §§607 e 608.
7. Veja BAUMGARTEN, A.G. Ib., “Estética Teórica”, vol. II, part. 1, cap. I, seç. 1, §14.
8. Veja BAUMGARTEN, A.G. Ib., idem, seç. II, §29.

9. BAUMGARTEN, A.G. Ib, ide., seç.III, §50.

Referências Bibliográficas

BAUMGARTEN, A.G. Estética. – Petrópolis: Vozes, 1993.
HEGEL, G.W.F. Estética. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. – Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.
____. Critique de la Faculté de Juger. – La Flèche: Gallimard, 1985.

Filosofia Moderna

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Thoreau

Henry David Thoreau
(Concord, 1817 – 1862)

Filósofo transcendentalista norte-americano formado em Letras pela Universidade de Harvard. Discípulo de Ralph Waldo Emerson (1803-1882), chegou a ser preceptor de sobrinhos deste filósofo, residentes em Staten Island. Defendia o individualismo irrestrito e a busca de cada um do seu próprio caminho. Em 4 de julho de 1845, decidiu morar sozinho numa cabana construída por ele mesmo às margens do lago Walden, em meio à floresta de Concord. Essa temporada durou até 6 de setembro de 1847. Em 1846, numa de suas idas à vila de Concord, foi preso por se negar a pagar impostos a um Estado que mantinha a escravidão e sustentava uma guerra contra o México (entre 1846-1848). Passou uma noite na prisão e logo foi solto. Em 1849, publicou Desobediência Civil, onde conta sua experiência na prisão. A vida na floresta de Concord foi narrada no livro Walden (1854), um marco da consciência ecológica. Tornou-se conferencista engajado contra escravidão e ajudou diversos escravos a conseguir a liberdade. Seu exemplo inspirou vários líderes pacifistas no século XX, como o escritor Tolstoi e o político Gandhi. Pouco antes de morrer, lançou Caminhando (1862), enquanto Journals (Diário) foi publicado em 12 volumes, em 1906.

“(…)Hoje em dia há professores de filosofia, mas não há filósofos. Contudo é admirável ensinar filosofia porque um dia foi admirável vivê-la. Ser um filósofo não é apenas ter pensamentos sutis, nem sequer fundar uma escola, mas amar a sabedoria a ponto de viver segundo seus ditames uma vida de simplicidade, independência, magnanimidade e confiança. É solucionar alguns problemas da vida não só na teoria, mas também na prática. O sucesso dos grandes eruditos e pensadores assemelha-se ao dos cortesãos, não é um sucesso de soberano ou de homem. Arranjam meios de viver sempre em conformidade, da mesma forma que o fizeram seus pais, e de modo algum são os genitores de uma raça de homens mais nobres (…)” (THOREAU, H. D. Walden, “Economia”, p. 28).

Democracia x Socialismo

AO contrário de Nietzsche, Alexis Charles-Henri Cièrel de Tocqueville (1805-1859) é um nome muito conhecido entre os grandes filósofos políticos, quando o assunto diz respeito à democracia moderna. É o autor de obras clássicas como Democracia na América (1835/40) e Antigo Regime e a Revolução (1856).
Em 1848, Tocqueville participou de perto dos debates em torno dos rumos da efêmera Revolução de Fevereiro de 1848. Na assembleia constituinte que se seguiu, se pronunciou contra tentativas de transformar o projeto de constituição em uma base para implantação de um regime socialista na França. O discurso intitulado “Discours à l’Assemblée Constituinte sur la Question du Droit au Travail” denunciou o viés socialista de uma proposta sobre o direito ao trabalho. Para Tocqueville, a emenda apresentada visava transformar todos os trabalhadores desempregados em membros da classe operária industrial, cujo estado francês era o maior empregador, na época.

(…) e, como ele [o estado] é o empresário industrial que encontramos em todos os lugares, o único que não pode recusar o trabalho e o que geralmente impõe a menor tarefa, ele é invencivelmente levado a se tornar o principal e, em breve, de alguma forma, o único empreendedor do setor. Uma vez lá, o imposto não é mais o caminho para operar a máquina do governo, mas o grande caminho para alimentar a indústria. Assim, acumulando em suas mãos todo capital dos indivíduos, o Estado finalmente se torna o único proprietário de todas as coisas. Ora, isto é o comunismo (TOCQUEVILLE, A. “Discours à l’Assemblée Constituinte sur la Question du Droit au Travail”, in Œuvres complètes, vol. IX, p. 536-552).

A partir disso, o autor passou a descrever os principais traços do socialismo, em geral. Ideologia esta interessada em impor valores materialistas, a destruição da propriedade privada e da liberdade individual.

Agora, um terceiro e último traço, que, a meu ver, descreve melhor os socialistas de todas as escolas e cores, é uma profunda desconfiança em relação à liberdade e à razão humana; é um profundo desprezo pelo indivíduo tomado em si mesmo, como pessoa; o que os caracteriza é uma tentativa contínua, variada e incessante de mutilar, reduzir e impedir a liberdade humana em todas as maneiras; é a ideia de que o Estado não deve ser apenas o diretor da sociedade, mas deve ser, por assim dizer, o mestre de todo homem; seu tutor, seu pedagogo; que, por medo de deixá-lo errar, ele deve constantemente se colocar ao lado dele, acima dele, ao seu redor, para guiá-lo, mantê-lo, detê-lo; em uma palavra, é o confisco, como eu disse anteriormente, em maior ou menor grau, da liberdade humana. Assim, se no final eu tivesse que encontrar uma fórmula geral para expressar o que o socialismo me parece, eu diria que é uma nova fórmula para a servidão (TOCQUEVILLE, A. Op.cit., idem).

A Revolução de 1848 teve reflexos em outros países da Europa. Em março, na Alemanha, o arsenal de Berlim foi tomado pelos revoltosos.

De acordo com Tocqueville, a Revolução Francesa não tinha por objetivo apenas questões materiais, mas havia interesses nobres, como o amor à pátria, a virtude e generosidade. Também havia o respeito à propriedade privada e à liberdade do indivíduo. A democracia se opunha, portanto frontalmente ao socialismo.

Não, senhores, democracia e socialismo não se apoiam mutuamente. Estas não são apenas coisas diferentes, mas contrárias. Seria por acaso a democracia conivente em criar um governo mais hostil, mais detalhista, mais restritivo do que todos os outros, com a única diferença de que seria eleito pelo povo e que atuaria em nome do povo? Mas então o que você teria feito, senão dar à tirania um ar legítimo que não possuía, e assim assegurar-lhe a força e a onipotência que lhe faltava? A democracia expande a esfera da independência individual, o socialismo a restringe. A democracia dá todo o seu valor possível a cada um, o socialismo faz de cada homem um agente, um instrumento, um número. Democracia e socialismo têm apenas uma coisa em comum, igualdade; mas note a diferença: a democracia visa a igualdade na liberdade e o socialismo quer igualdade no constrangimento e na servidão (TOCQUEVILLE, A. Op.cit., ibdem).

Tais valores fariam da democracia perfeitamente compatível com os princípios cristãos. Nada autorizaria ao estado interferir nos livre mercado e impor suas regras, muito menos tiranizar os indivíduos em função de um melhor governo ou isolá-los para protegê-los deles mesmos. Assim, Tocqueville apelava para que a Revolução de Fevereiro de 1848 fosse uma democracia cristã e nunca socialista (veja (TOCQUEVILLE, A. Op.cit., idem, pp. 551 e 552). Efetivamente, a proposta socialista de direito ao trabalho foi derruba e os ideais de Alexis Tocqueville tiveram uma vitória fugaz. Em tempo, os estalinistas costumam chamar sua ditadura do proletariado pelo pleonasmo eufemístico de “democracia popular”.

Referência Bibliográfica

TOCQUEVILLE, A. “Discours à l’Assemblée Constituinte sur la Question du Droit au Travail”, in Œuvres complètes. – Paris: Michel Lévy, 1866.

Da Servidão Voluntária

LEITURA recomendável e muito oportuna para os períodos nos quais as pessoas aceitam passivamente a violação crescente de suas liberdades e direitos, em troca de uma suspeita segurança e proteção, é o opúsculo imortal do jurista francês Étienne de la Boétie (1530-1563). Publicada postumamente em 1571, “Discurso sobre a Servidão Voluntária” aborda a forma servil que muitos passam a respeitar os abusos de governantes que pouco a pouco se tornam tiranos que subjugam seus próprios eleitores, mesmo sob o pretexto de lhes preservar a vida, integridade física ou a paz. De la Boétie era amigo próximo do inventor dos ensaios modernos, Michel de Montaigne (1533-1592), a quem o texto foi apresentado antes de sua publicação não autorizada.
Alguns críticos consideram Da Servidão Voluntária obra da juventude de Montaigne. Mas o próprio autor dos Ensaios (1580) tratou de endereçar os verdadeiros créditos a seu amigo Étienne.
De La Boétie foi o primeiro autor moderno a descobrir a verdadeira natureza do poder e como os tiranos conseguem usurpá-lo com a conivência de outros indivíduos. Apontou a fraqueza de vontade humana que se curva perante a força bruta de umas poucas pessoas. Muitos esperam que no futuro a tirania caia, mas o vício em servir aos “poderosos” superam até mesmo os limites da covardia. Com o passar do tempo, a memória da liberdade acaba por ceder aos falsos benefícios da servidão. A cupidez toma o lugar da razão.
No entanto, para combater o tirano bastaria que as pessoas apenas pararem de servi-lo. O auto-engano de uma troca vantajosa de sua liberdade por uma suposta segurança é que escraviza os povos.

Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada, da mesma forma que a raiz, sem umidade e alimento, se torna ramo seco e morto (DE LA BOÉTIE, É. Discurso sobre a Servidão Voluntária).

A liberdade é o maior bem. Para mantê-la, basta que se negue apoio ao tirano. A servidão é uma doença mortal para os direitos dos indivíduos, que pode surgir mesmo em democracias, onde os futuros tiranos são eleitos e se alimentam do medo das pessoas cada vez que estas aceitam o aumento gradativo da servidão. O hábito de obedecer sem questionar é a primeira causa da servidão voluntária. A perda da coragem vem a seguir. O prazer da diversão e a garantir de subsistência vêm em troca da submissão. Até mesmo a religião se alia aos usurpadores no sentido de aliviar as dores dos que sofrem seu jugo. Porém, o número daqueles que protegem os tiranos sempre foi menor da multidão subjugada.

Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos. Foram sempre esses os que lograram aproximar-se dele ou ser por ele convocados, para serem cúmplices das suas crueldades, companheiros dos seus prazeres, alcoviteiros de suas lascívias e com ele beneficiários das rapinas. (…) Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano (…) para que eles ocultem as suas avarezas e crueldades, para serem executores no momento combinado e praticarem tais malefícios que só à sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça (…) (DE LA BOÈTIE. È. Op. cit.).

Os maus são atraídos pelo mal, que lhes permite repartir os espólios da tirania. A ambição os move. Aproveitam-se da ignorância da maioria, que a divide, enquanto os corruPTos se unem. A má educação se alia à estupidez que submete a população.
O “Discurso sobre a Servidão Voluntária” antecipou em um século a concepção contratualista de Thomas Hobbes (1588–1679), onde o poder soberano surge do acordo de cada indivíduo para garantia da paz entre todos. Muito antes de Immanuel Kant (1724-1804) cunhar o lema do Iluminismo, De La Boétie “ousou pensar” e propôs, como Henry David Thoreau (1817-1862), a desobediência civil no intuito de solapar os usurpadores do poder. Uma compreensão clara da origem do poder no consentimento de cada um faria com que o hábito de servir aos tiranos não prosperasse. Entretanto, poucos têm consciência disso ainda no século XXI.

Referências Bibliográficas

DE LA BOÈTIE, É.Discours de la Servitude Volontaire. Disponível na internet via https://www.singulier.eu/textes/reference/texte/pdf/servitude.pdf. Arquivo consultado em 2020.
____.Discurso sobre a Servidão Voluntária. Disponível na internet via https://www.culturabrasil.org/zip/boetie.pdf. Arquivo consultado em 2020.

Romantismo

Romantismo

(sécs. XVIII-XIX)

Imagem: DELACROIX, Eugène. A Liberdade guiando o Povo; fonte: Museu do Louvre, 1830.

O bom selvagem e o direito à rebelião contra o déspota foram as inspirações de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que, aliadas ao sucesso inicial da Revolução Francesa (1789), impulsionaram o movimento Romântico, na Europa. Depois da Crítica do Juízo (1790), de Immanuel Kant (1724-1804), o idealismo alemão tratou de fazer uma releitura própria do romantismo, colocando a arte e a estética, sobretudo, no centro do processo de transformação da consciência moderna que já se iniciara. Autores e críticos de arte, como os irmãos August Wilhelm Schlegel (1767-1815) e Friedrich Schlegel (1772-1829) e o barão Georg Friedrich Philipp von Hardenberg, o poeta Novalis (1772-1801), não se entendiam quanto ao aspecto burguês ou libertário do movimento, mas, no entanto, os filósofos Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) e Georg W. F. Hegel (1770-1831), atribuíam à religião revelada cristã um papel fundamental para conscientização do espírito absoluto. Burguesia e cristianismo não foram, entretanto, os únicos componentes contraditórios daquela época. Some-se a isso as diversas tendências socialistas e as unificações nacionalistas e tem-se o caldo cultural que fermentou o conflitante século XX, com reflexos na era contemporânea e atual, com todos seus erros e acertos.

“Vimos já que na terceira forma da arte, no romantismo, a interioridade, o sujeito, o conteúdo da obra de arte abandona o seu tranquilo silêncio, a sua unidade absoluta com a forma, a sua matéria, a sua representação exterior, para regressar a si próprio, reentregando a liberdade à exterioridade que, por sua vez, regressa a si mesma, quebra a união com o conteúdo, torna-se-lhe estranha e indiferente. É a poesia, no sentido mais geral, que constitui a realização desta forma. Com efeito, na poesia, o sujeito e a forma seguem cada um o seu caminho e particularizam-se.” (HEGEL, G.W.F. Estética: A ideia e o ideal, cap. IV, p.152).

Direito de Propriedade

Texto sobre PolíticaO direito de propriedade é um ponto que desde a origem da filosofia política moderna alimentou divergências fundamentais. Thomas Hobbes (1588-1679), que com justiça é considerado o primeiro autor moderno de filosofia política, considerava o direito de propriedade como algo derivado das leis civis. Isto é, o poder de propor regras sobre os bens que os seres humanos poderiam gozar seria um atributo da soberania do Estado:

porque antes da constituição do poder soberano (…) todos os homens tinham direito a todas as coisas, o que necessariamente provocava a guerra. Portanto, esta propriedade, dado que é necessária à paz e depende do poder soberano, é um ato deste poder, tendo em vista a paz pública (HOBBES, Th. O Leviatã, II, cap. XVIII, p. 110).

Gravura de Thomas Hobbes feita por William Faithorne, em 1676.

Para Hobbes, o direito de propriedade seria um direito do soberano por instituição, uma vez que a lei natural ditada pela razão estabelecia os limites à liberdade de cada um fazer o que quiser para sua própria sobrevivência e reprodução, em função do estabelecimento de um Estado encarregado de manter a paz e, portanto, regulador do direito de propriedade.
Contudo, John Locke (1632-1704), um dos fundadores do pensamento liberal, defendia que a propriedade era uma consequência natural do trabalho humano:

(…) nenhum trabalho do homem podia tudo dominar ou de tudo apropriar-se, e nem a fruição consumir mais do que uma pequena parte, de sorte que era impossível para qualquer homem (…) usurpar o direito de outro ou adquirir para si uma propriedade com prejuízo do vizinho, que ainda disporia de espaço para posse tão boa e tão extensa (…), como antes de ter-se dela apropriado (LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o Governo, cap. V, § 36, p. 48).

Na perspectiva de Locke, o motivo que guiava os seres humanos à convivência em sociedade seria a manutenção da propriedade, principal objetivo do governo. Ao contrário de Hobbes, o Estado concebido por Locke não poderia retirar a propriedade de qualquer um sem o consentimento do proprietário.
Ainda hoje, o direito à propriedade privada continua sendo assunto de muita polêmica. Depois de Karl Marx (1818-1883) e Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) a distinção entre propriedade privada dos bens de produção e do consumo reacendeu a questão sobre o direito do Estado intervir na propriedade privada. Assunto que permanece no centro do debate entre os defensores atuais do liberalismo e do socialismo remanescente da Queda do Muro de Berlim, em 1989.

Referências Bibliográficas

HOBBES, Th. O Leviatã. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
LOCKE, J. O Segundo Tratado sobre o Governo. – São Paulo: Abril Cultural, 1978.

Ecce Nietzsche

VONTADE DE PODER é uma coletânea de escritos avulsos de Friedrich W. Nietzsche (1844-1900), selecionada e publicada por sua irmã, Elisabeth Föster-Nietzsche, após sua morte. Trata-se de obra de valor filosófico duvidoso, devido ao critério editorial adotado que nada corresponde ao estilo assistemático do pensador alemão. No entanto, vontade de potência é uma noção fundamental na obra de Nietzsche e, felizmente, pode ser interpretada a partir de seus textos principais, lançados em vida.
No livro Assim Falou Zaratustra (1885), Nietzsche escreveu:

“Vontade de conhecer a verdade” chamai vós, os mais sábios dentre os sábios, àquilo que vos impele e inflama? (…)
É essa a vossa vontade, ó os mais sábios dentre os sábios, como vontade de poder, e também quando falais do bem e do mal e das apreciações de valor (…)
Onde encontrei vida, encontro vontade de poder; e ainda na vontade do servo encontrei a vontade de ser senhor. Que o mais fraco sirva o mais forte, a isto induz a sua vontade, que quer dominar outros mais fracos: esse prazer é poder no menor de todos, assim também o maior se abandona a si mesmo e, por amor ao poder – põe em risco sua vida (…)
E este segredo a própria vida me confiou: “Vê”, disse, “eu sou aquilo que deve sempre superar a si mesmo”. (NIETZSCHE, F.W. “Do Superar a Si Mesmo”, in Assim Falou Zaratustra, segunda parte).

Em sua obra Além do Bem e do Mal (1886):

A questão é saber se consideramos a vontade como realmente eficiente, ou se acreditamos na causalidade da vontade, se for assim (…) estamos obrigados a fazer esta experiência, e colocá-la como hipótese, como uma causalidade da vontade. A “vontade”, naturalmente, não pode laborar mais que sobre uma “vontade” e não sobre uma “matéria” (…), numa palavra, deve chegar a colocar a proposição de que sempre que se constatam “efeitos” devem-se à ação de uma vontade sobre outra vontade. Todo processo mecânico, na medida em que é alimentado por uma força eficiente, revela precisamente uma “vontade-força”. Suponho, finalmente, que se chegasse a explicar toda nossa vida instintiva como desenvolvimento da vontade -da vontade de potência, é minha tese – teria adquirido o desejo de chamar a toda energia, seja qual for, vontade de potência (NIETZSCHE, F.W. Além do Bem e do Mal, segunda parte, § 36).

E em A Genealogia da Moral (1887):

Faço ressaltar este ponto capital do método histórico, porque vai contra os instintos dominantes atuais, os quais preferiam o azar absoluto, e ainda o absurdo mecanicista, à teoria de uma “vontade de poder” que intervenha em todos os casos. (…)

Ver além das dificuldades momentâneas permite que escolhas racionais se sobreponham à conservadora seleção natural.

Por esta idiossincrasia se inventou a “faculdade de adaptação”; isto é, uma atitude de segunda ordem, uma “reatividade”, e até se definiu a vida como uma adaptação interior, cada vez mais eficaz, às circunstâncias exteriores (Herbert Spencer). Mas com isto se desconhece a essência da vida, a “vontade de domínio”, e passa-se por alto a preeminência elementar das forças espontâneas, agressivas, conquistadoras, usurpadoras, transformadoras, e que sempre estão produzindo novas exegeses e novas direções, submetendo a suas leis própria adaptação. Assim se nega também a soberania das funções mais nobres do organismo, funções em que a vida se manifesta como ativa e plástica (…)(NIETZSCHE, F.W. A Genealogia da Moral, segundo ensaio, § XII)

Em geral, costuma-se definir a vontade como uma capacidade de desejar um fim e querer realizá-lo, enquanto potência seria aquilo que permite mudar algo em estágios diferentes. A “vontade de potência”, assim, seria uma capacidade de transformar algo em um fim desejado. Para Nietzsche, isto seria a condição principal da vida, transformar os seres viventes em coisa superior, mais forte. A vontade de potência, em suma, seria uma energia vital que se manifestaria nas formas ativas e criativas da natureza, sempre como uma força dominadora, façanha mais nobre dos seres vivos, quando tudo se apresenta plenamente.
Tudo isso, entretanto, resta sobre valores injustificáveis da vida como superação do mais fraco pelo mais forte. Nietzsche deixa isto como um postulado não demonstrado e que valoriza preferencialmente ideais germânicos, ao invés dos latinos, a grosso modo, sem argumentos suficientes para tanto, quase como uma profissão de fé dos valores guerreiros góticos. Eventualmente, a vontade de potência vital poderia resultar num equilíbrio de forças e não numa superação, sem perda da criatividade ou que não gerasse uma inação. Hipótese que ele não considera.

Crença Nietzcheana

O conceito de “crença”, em filosofia, diz respeito a uma disposição do sujeito para tomar proposições ou algo como verdadeiro. A crença na verdade de alguma coisa pode ser gerada por motivações racionais ou não. No caso de Nietzsche, a crença do sujeito numa verdade é um preconceito que deve ser superado por pessoas de “espírito livre”. Em Além do Bem e do Mal, ele ataca sobretudo as crenças filosóficas construídas com base em procedimentos lógicos:

A falsidade de um juízo não pode constituir, em minha opinião, uma objeção contra esse juízo (…) Admitir que o não-verdadeiro é a condição da vida, é opor-se audazmente ao sentimento que se tem habitualmente dos valores. Uma filosofia que se permita tal intrepidez se coloca, apenas por este fato, além do bem e do mal (Primeira parte, § 4).

Por outro lado, no senso comum, Nietzsche criticava também a crença de que uma introspecção profunda pudesse ser suficiente para o encontro da verdade:

o Vulgo acredita que o conhecimento consiste em chegar ao fundo das coisas; por outro lado, o filósofo deve dizer-se: ‘Se analiso o processo expressado na frase ‘eu penso’, obtenho um conjunto de afirmações arriscadas’(…) (idem, §16).

Noutro lugar, mais precisamente em A Genealogia da Moral, Nietzsche nos oferece uma direção para o tipo de filosofia que tem em mente:

A nossa fé na ciência baseia-se numa crença metafísica, numa parte de grande incêndio milenário, que é o resplendor da fé cristã e da fé platônica: que Deus é a Verdade e que a verdade é divina(…) A ciência necessita de uma justificação. Perguntai às filosofias antigas e modernas; nenhuma se lembra, de que necessita justificação; em todas há esta lacuna. Por quê? é que o ideal ascético dominou em todas as filosofias e a verdade foi posta como Deus e não como problema. Desde o momento em que se nega o Deus do ideal ascético, há que propor este problema do valor da verdade. A vontade da verdade necessita de uma crítica; é preciso por em dúvida o valor da verdade… (Terceiro ensaio, § XXIV).

Referências Bibliográficas

NIETZSCHE, Fr.W. Assim Falou Zaratustra. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
____. Além do Bem e do Mal. – Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
____. A Genealogia da Moral. – São Paulo: Moraes, 1991.