O Poder e a Magia na Arte

OS mais antigos objetos artificiais foram feitos pelas espécies humanas pioneiras, Homo habilis e Homo erectus, há cerca de 2,5 milhões de anos atrás. Eram lascas de pedras talhadas para produção de utensílios empregados em diversas tarefas: cortar carne, madeira, vegetais comestíveis etc. Também haviam ferramentas maiores rudimentares como martelos, cutelos, raspadores e pontas de lanças para caça e defesa de ataques de outros animais ou mesmo humanos. Tais artefatos compunham as chamadas “indústrias olduvaniana e achaulense”, por terem sido encontrados nas gargantas Olduvai, no centro-leste da África, e em Saint Acheul, no norte da França [1].
Muito tempo passou até que os humanos começassem a fabricar artefatos mais delicados e de melhor acabamento. O que aconteceu por volta de 40 mil anos atrás, na Europa, com os instrumentos inventados pelos Homo sapiens. Ossos e chifres foram acrescentados às matérias primas empregadas na produção de objetos com mais de cem tipos diferentes de formato e utilidade. Ferramentas eram usadas também na confecção de roupa de pele, na gravação de figuras, pequenas esculturas, instrumentos musicais e pinturas em paredes de cavernas, além das armas já conhecidas feitas em pedra e madeira. Algumas peças – como contas e pingentes – indicavam o uso de objetos de adorno e distinção pessoal, típicos da mentalidade humana atual [2].

As representações figurativas de animais e humanos já apareciam na época Aurignaciana (Paleolítico Superior, cc. 40 mil anos atrás) em estatuetas, gravações e pinturas encontradas em cavernas localizadas nos lugares habitados pelos seres humanos, do velho continente à Oceania, menos nas Américas – que ainda não tinham sido ocupadas antes de 12 mil anos. A exatidão e beleza das imagens revelam um apuro estético e habilidade técnica elevada na reprodução de detalhes e efeitos tridimensionais [3].

Função Mágica

Além de finalidades utilitárias, decorativas, defensivas e de caça, as peças pré-históricas descobertas no Paleolítico Superior (de cerca de 40 a 10 mil anos atrás) sugerem um novo uso, mágico ou religioso, até então desconhecido, dependendo da interpretação mais provável das imagens pintadas, gravadas e esculpidas achadas nas cavernas. Por analogia com os aborígenes e caçadores-coletores modernos, tais figuras pré-históricas seriam parte de rituais mágicos e xamânicos dedicados à melhoria do desempenho nas atividades perigosas que os caçadores teriam de exercer [4]. Instrumentos musicais e a acústicas de algumas cavernas reforçam a ideia de que os rituais eram acompanhados por música, canto e dança. Nesses locais, uma população moradora na região ou mesmo de outros sítios mais afastados poderia se reunir ali, para eventos espirituais e religiosos [5].
Ao lado das ilustrações realistas dos animais caçados, símbolos abstratos representavam as visões obtidas pelos autores em seus transes ou uso de drogas ritualísticas de cultos xamânicos. Formas geométricas, espirais e pontos foram reproduzidas da lembrança de estados alterados de suas mentes em rituais que eram estampados nas paredes das cavernas. Algumas figuras quiméricas ou antropomórficas mesclaram homens e animais. Paisagens arquétipas de montanhas, campos e florestas faziam fundo para os personagens e animais em primeiro plano. Desse modo, muito simbolismo, abstrações e figurativismo já vinham sendo os estilos praticados de forma estética ou espiritual, desde a pré-história com função mágica.

As artes, enquanto criam ordem e sentido a partir do aparente caos da existência diária, também alimentam nossa ânsia pelo místico. Somos atraídos pelas formas sombrias que fluem para dentro e fora do subconsciente. Sonhamos com o insolúvel, com lugares e épocas inacessivelmente distantes (WILSON, E.O. Consiliência, cap.10, p.222).

O desenvolvimento das funções puramente artísticas foi gradual, desde o paleolítico. Acompanhou a evolução da linguagem e moldou a mentalidade humana atual no paleolítico superior. Os artefatos e costumes ampliaram os usos dos objetos fabricados e incluíram uma concepção mágica nas coisas, em sua relação com o mundo. Não obstante, o propósito e a finalidade última dos objetos construídos não mascaravam seu objetivo utilitário. Mesmo quando a arte paleolítica ganhou uma aura mágica, o encantamento produzido visava alcançar um resultado que fosse útil materialmente nas atividades essenciais para a sobrevivência humana, seja na caça, fertilidade do solo ou das mulheres, por exemplo.
A arte xamânica adquiria maior respeitabilidade e temor à medida que as habilidades dos caçadores e coletores fossem bem-sucedidas, após cada culto. Os conselhos dos xamãs e a arte transformavam-se, assim, em fonte de poder. A mente primitiva, desconhecedora das relações físicas na matéria, ficava então conectada ao mistério que a arte da magia procurava revelar. O medo do desconhecido, as sensações místicas e estéticas ficaram, desse modo, entrelaçados, desde as manifestações artísticas mais remotas [6].

O medo ancestral das forças naturais esculpido e divinisado em marfim de mamute e em pedra nas figuras antropomórficas do homem-leão e da mulher-leoa, em uma caverna de Stadel (Alemanha) e no Egito antigo. Há 40 mil anos, como há dois mil anos e agora.

O avanço das técnicas de caça e dos armamentos empregados tornavam-se mais eficazes e a crença no poder místico do xamã e seus amuletos encantados também crescia. Com o passar do tempo, os antigos xamãs assumiram os postos de sacerdotes e conselheiros dos líderes das caçadas, enquanto seus adornos mágicos eram vistos como obras sacras.

Para os caçadores-coletores de Kalaari e outros caçadores-coletores contemporâneos, a experiência da vida diária mescla-se, imperceptivelmente, com suas adjacências mágicas. Espíritos habitam árvores e rochas, animais pensam e o pensamento humano se projeta para fora do corpo com uma força física (…) [P]odemos (…) habitar as produções da arte com a mesma sensação de beleza e mistério que nos arrebatou no início. Nenhuma barreira se ergue entre o mundo material da ciência e a sensibilidade do caçador e do poeta (WILSON, E.O. Op.Cit., cap. 10, pp.225 e 227).

Magia e Poder

Enquanto o conhecimento limitado da natureza permitir, sempre haverá espaço para se aproveitar da ignorância humana. Assim, o charlatanismo, a demagogia e os usurpadores assumiram papel de destaque na sociedade, por conta do medo do desconhecido e das leis da física. A arte prosseguiu, portanto, a serviço do misticismo e da política, onde foi empregada como meio de propaganda e alienação da população.
A partir do momento em que as crenças em poderes mágicos foram atribuídas aos amuletos, pinturas e estatuetas ungidos pelos xamãs, a arte ganhou uma função ou aura (nos termos do filósofo e crítico marxista Walter Benjamin, 1892-1940) transcendental que vai acompanhá-la através dos tempos. Magia e poder foram incorporados às artes, por conta da fantasia criada em torno do carisma de artesãos, sacerdotes ou impostores que prometiam efeitos extraordinários e moldavam a mente humana sempre que estivessem correlacionadas à maior eficácia nas atividades humanas.
No início do século XX, Benjamin foi um dos primeiros a apontar – mesmo nos objetos produzidos em larga escala – a capacidade das obras de arte mudar o comportamento do público, em relação ao que lhe é oferecido [7]. Em sua análise sobre o movimento surrealista, que se iniciava naquela época, acreditava ser possível conduzir o êxtase provocado pela apreciação artística para a transformação revolucionária da sociedade [8].
Contudo, para Benjamin, a produção em massa levaria a função estética da arte e o culto a beleza a cederem lugar a novos valores políticos.

Por essa espécie de divertimento, pelo qual ela tem o objetivo de nos instigar, a arte nos confirma tacitamente que nosso modo de percepção está hoje apto a responder a novas tarefas. E como, não obstante, o indivíduo alimenta a tentação de recusar essas tarefas, a arte se entrega àquelas que são mais difíceis e importantes, desde que possa mobilizar as massas (BENJAMIN, W. “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução” §XV, p.26).

Assim, a reprodução em massa poderia, nessa acepção, transformar o modo como as artes seriam cultuadas na modernidade. A “aura” mística que exercia um papel fundamental nos antigos cultos seria transformada, na política da era moderna. Enquanto regimes fascistas, na interpretação de Benjamin, procurariam estetizar a política, alçando seus líderes a condições de heróis, santos ou semideuses, algo para ser cultuado, os comunistas, procurariam politizar a arte [9].
Entretanto, a despeito do que pensava Benjamin, o culto à personalidade não era uma exclusividade do populismo ou fascismo, mas uma característica de todo regime totalitarista, incluindo o comunismo. Fascistas e comunistas estetizavam a política, enquanto tentavam politizar a arte, através do culto à personalidade de seus líderes, por meio da propaganda e de estilos que impunham uma imagem a ser cultivada pelas massas em torno de seus governantes. Benjamin, não sobreviveu para ver a ascensão do culto à personalidade dos líderes comunistas e seus regimes totalitários. Suicidou-se em 1940, depois de seu visto ter sido negado na fronteira entre a Espanha e a França, logo após a ocupação nazista.
Theodor Wiesengrund-Adorno (1903-1969) conseguira fugir para os Estados Unidos – cuja sociedade burguesa e capitalista criticava – dois antes da tentativa frustrada de Benjamin. Pode então sobreviver o suficiente para testemunhar a regressão estética provocada que o realismo socialista promovia na produção artística soviética. A polarização ideológica que os protestos esquerdistas, por sua vez, faziam na politização absoluta da arte “uma cópia lamentável e autoritária da realidade” (ADORNO, Th. Teoria Estética, p.262). O realismo socialista conduziria, segundo Adorno, ao desaparecimento completo da arte livre e autônoma. Um processo de troca no qual a arte se acomoda às condições da indústria cultural , do mesmo modo que o kitsch no modelo capitalista [10]. A perda da espontaneidade da obra retoma a reificação fetichista dos rituais mágicos ancestrais, expurgadas as personalidade e inspiração do autor.
A despeito de toda manipulação ideológica dos regimes totalitaristas, os vestígios da função mágica na arte nunca puderam desaparecer de todo, nas intenções dos artistas e seu público. Para outro crítico da arte marxista – expulso do partido comunista austríaco, em 1948 -, Ernst Fischer (1899-1972): “a arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente” (FISCHER, E. A Necessidade da Arte, cap. 1, p.20).
Ao imaginar a possibilidade de mudar as coisas por meios mágicos, o artista assumiria, a princípio, poderes mágicos. A descoberta da força das ferramentas em transformar as coisas abre a imaginação humana para concepçções mágicas que estavam na origem da arte. Ao transformar a forma bruta da matéria em uma forma idealizada na mente, vislumbravam-se os aspectos mágicos que distinguiriam o artista dos demais semelhantes.

A função decisiva da arte nos seus primórdios foi, inequivocamente, a de conferir poder: sobre a natureza, sobre os inimigos, sobre o parceiro de relações sexuais, sobre a realidade (…) [A] arte pouco tinha a ver com a “beleza” e nada coma contemplação estética (…). [E]ra um instrumento mágico, uma arma da coletividade humana em sua luta pela sobrevivência (FISCHER, E. A Necessidade da Arte, cap.2, p.45).

Charlatanismo Totalitário

O poder transformador das artes permaneceu unido à ilusão da magia, mesmo após o advento da indústria cultural dominar as técnicas de reprodução em massa dos objetos fabricados para o consumo imediato. A propaganda consumista e a ideologia populista trataram de alimentar o culto às celebridades e aos políticos demagogos que sufocaram o debate crítico e toda tentativa de impedir a regressão no gosto e a infantilização do público.
O consumo doentio foi insuflado pelo fetichismo aos objetos colecionáveis, criando os acumuladores compulsivos e a obesidade mórbida. A permanência desse feitiço nas artes dá-se pelo fracasso da promessa emancipatória do modernismo e de seu apelo racional e a luta pela libertação dos indivíduos do fanatismo ideológico e teológico.

A idolatria que prevalece nas religiões politeístas – como hinduísmo e candomblé – e nas monoteístas – catolicismo e ortodoxia cristã, com seus santinhos e ícones – fazem dos seus seguidores, alvos fáceis do charlatanismo religioso e sua extensão política, nas ditaduras e autocracias que sustentam a fé cega dos eleitores ou fiéis enfeitiçados pela crença na magia e no sobrenatural que o conhecimento iluminista não foi capaz de iluminar. A arte, por si só, não pode libertar a espécie humana de sua estupidez servil e do medo ancestral pelo desconhecido.

Notas

1.Veja LEAKEY, R. A Origem da Espécie Humana, cap. 2, pp. 46 a 50.
2.Veja LEAKEY, R. Op.Cit, cap. 5, p. 95.
3.Veja WILSON, E.O.Consiliência, cap.10, p. 216.
4.Veja LEAKEY, R. Idem, cap.6, p. 108 e WILSON, E.O. Op.Cit., cap.10, pp. 223 a 225
5.Veja LEAKEY, R. Ibdem, cap. 6, pp.110 e 111
6.Veja, WILSON. E.O. Idem, cap.10, pp. 218 a 227.
7.Veja BENJAMIN, W. “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução”, §XII, p.21.
8.Veja BENJAMIN, W. “O Surrealismo”, pp. 83 e 84.
9.Veja BENJAMIN, W. Op.Cit., “Epílogo”, p.28.

10.Veja ADORNO, Th. Op.Cit., p.59.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Th.W. Teoria Estética. – Lisboa: Edições 70, 2006.
BENJAMIN, W. Textos Escolhidos. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
FISCHER, E. A Necessidade da Arte. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
LEAKEY, R.E. A Origem da Espécie Humana. – Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
WILSON, E.O. Consiliência. – Rio de Janeiro: Campus, 1999.

O Que é Plausível?

Ao mundo nunca faltaram charlatães: Esta ciência, desde tempos imemoráveis, tem sido muito fértil em professores (LA FONTAINE, J. de. O Charlatão, in Fábulas, liv. VI, fab. XIX).

PLAUSIBILIDADE não é um conceito filosófico, muito menos científico. Dicionários de várias línguas modernas costumam definir o termo como uma qualidade de “plausível”. Por plausível, entende-se algo que seja superficialmente razoável, justo ou admissível. Algo digno de crença e persuasivo. A palavra deriva do latim plausibilis, que quer dizer apenas “digno de aplauso”. Portanto, nada que possa servir para orientar o verdadeiro conhecimento. No entanto, foi com base em uma crença superficial “plausível” que charlatães e burocratas de organizações internacionais, como a organização mundial de saúde (OMS) e o estadunidense instituto nacional de alergia e doenças infecciosas (NIAID), promoveram o totalitarismo sanitário em varios países do mundo. Medidas sem qualquer comprovação científica, como uso de máscaras obrigatório a toda população e fechamento da economia, foram adotadas apenas tendo por fundamento supertições “plausíveis”, que do ponto de vista desses burocratas cientificistas seriam suficientes para mudar todo um parâmetro adotado em décadas de desenvolvimento da medicina.
Na lógica clássica, argumentos propostos e sustentados apenas na sua possibilidade, são considerados problemáticos, pois podem ou não ser verdadeiros. Tem-se somente a impressão de que se apoiam em sua simples possibilidade. Uma proposição problemática contém uma contradictio in adjecto, uma contradição em termos ou parte de um argumento. A rigor, proposições com valor de verdade são aquelas que afirmam algo atual, assertóricas, ou apodícticas, que apontam sua necessidade. Possibilidade e a necessidade são as modalidades principais de um juízo, passível de argumentação.
A probabilidade, por sua vez, constitui um ramo consolidado da matemática e pode ser calculado de diversas maneiras. Juízos de probabilidade refletem um grau de confiança que alguém possui de que um acontecimento possa ocorrer. O que se explica rigorosamente em fórmulas matemáticas.

O Charlatão, ilustração de Jean I.I.G. Grandville (1803-1847), para a fábula de La Fontaine.

Qualquer juízo que se funde em “plausibilidade” não pode ser expresso de outra forma, que não a posteriori. Isto é, depois de um evento acontecer de fato, a fim de que possa ser aplaudido, como diz sua origem etimológica. Um ato ou obra podem ser considerados plausíveis se forem realizados adequadamente de acordo com o projeto e sua verossimilhança com os fatos. Portanto, nenhum argumento ou teoria científica, digna do nome, pode se basear antecipadamente em argumentos “plausíveis”, como fizeram as famigeradas agências internacionais em relação aos procedimentos sanitários adotados por políticos autoritários ao redor do mundo. Todo tipo de absurdo e atentado contra os direitos individuais foram praticados sem evidências científicas que os justificassem, com o aval de burocratas cientificistas e charlatães. Esse cientificismo e charlatanismo contou com o apoio e a má fé da imprensa marrom internacional e dos políticos de tendências totalitárias em todo ocidente, que exploraram o medo das pessoas para impor suas medidas nada “plausíveis”, dadas as consequências nefastas para economia mundial e saúde física e mental das pessoas.

Referência Bibliográfica

LA FONTAINE, J. de. Fables. – Paris: Garnier, 1868.

Ars Sophistica

A lógica clássica dividia-se entre a analítica e a dialética. A analítica examinava a forma do pensamento e tinha como núcleo principal a silogística. A dialética, por sua vez, cuidava das questões relativas ao uso da razão e do entendimento. Em sua concepção original, a dialética tratava de expor os princípios falsos por trás dos argumentos empregados e, nesse sentido, era aplicada por Platão a desmascarar seus rivais sofistas.
Contudo, a aparência de conhecimento verdadeiro foi muito explorada por oradores e primeiros advogados, na Grécia antiga. Essa aparência lógica acabou por transformar-se em uma ars sophistica (técnica sofística), cuja utilização estava voltada para conduzir o povo envolvido por sua retórica. O próprio Platão denunciou essa manobra manipuladora por parte dos demagogos e sofistas que ensinavam a arte da disputa polêmica através da palavra. Seus “ensinamentos” eram cobrados em dinheiro e favores que Sócrates e Platão condenavam.
Os falsos argumentos usados pelos sofistas foram, em seguida, elencados por Aristóteles em sua obra intitulada Dos Argumentos Sofísticos, onde foram apontadas as falhas de raciocínio mascaradas na aparência de silogismos formais. A sabedoria de fachada dos sofistas aproveitava a aparência formal de um silogismo “correto” a fim de explorar a ignorância dos seus interlocutores. Os argumentos falaciosos empregados pelos falsos sábios serviam de sustentação para políticos demagogos controlarem a população.
As falácias têm essa característica notável de fornecer aparência de verdade em uma estrutura de pensamento que conduz a conclusões equivocadas. Dividem-se em falácias formais ou linguísticas e informais ou extralinguísticas. As primeiras derivam de erros cometidos na formação estrutural das inferências. As outras decorrem de equívocos no raciocínio sobre o conteúdo dos enunciados que aparentam uma forma correta, mas seu valor semântico é falso. Quando o próprio emissor não se dá conta do erro e acredita na veracidade da inferência proposta, ocorre o paralogismo. Porém, quando se utiliza deliberadamente de um raciocínio incorreto para enganar os outros, sofismas são gerados. A desonestidade intelectual é uma marca típica dos sofistas menores – que sucederam a Protágoras e Górgias de Leontini, por exemplo. Seus sofismas foram produzidos para enganar uma audiência, a fim de angariar apoio para seus objetivos escusos.
Não obstante, desde o início, eventualmente, os sofistas se viam enrolados com seus próprios sofismas. Diógenes Laércio conta em Vidas e Doutrina dos Filósofos Ilustres que Protágoras de Abdera, o primeiro sofista a cobrar honorários por seus “ensinamentos”, teve de criar um dilema contra seu discípulo Euatlo, que se negava a pagá-lo por não ter vencido nenhuma polêmica até então. Para Protágoras, Euatlo deveria pagar de qualquer maneira, pois, se o tivesse vencido, deveria receber por essa vitória; de outro modo, caso seu aluno vencesse, também deveria receber por causa do êxito obtido com suas aulas (Veja DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas…, liv. IX, cap. 8, p. 266). Paradoxalmente, o mesmo sofisma poderia ser usado contra seu professor, por um estudante inteligente que invertesse os papéis dos personagens da anedota.
O ceticismo moral e epistêmico que os sofistas tinham pelos dogmas estabelecidos, originalmente, se degenerou em falsidades assumidas pelo propósito de manipular uma plateia. A sofística tornou-se um ativismo cego que buscava triunfar nos debates contra seus oponentes, sem se importar com critérios de verdade. O que vale dizer que pouco interessava a procura pelo conhecimento verdadeiro. Por conseguinte, todos os valores morais e epistêmicos eram relativizados. A oposição ferrenha contra a verdade sustentava-se na percepção apressada de que na natureza o direito do mais forte se sobrepõe à lei estabelecida pelas sociedades, sem considerar a noção de “sucesso do mais apto”.

Entretanto, toda essa impostura alcançava êxito, enquanto a ignorância sobre os assuntos prevalecesse sobre os palestrantes. De outro modo, a estupidez humana não conseguiria suplantar os argumentos bem formados por uma razão reta. Raciocínios contraditórios, sem fundamento ou consequência, e que vão além da verdade são falsos, por definição. Quem se deixa seduzir pelas aparências subjetivas das coisas se afunda nos erros dos velhos sofistas aos atuais multiculturalistas pós-modernos.

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Dos Argumentos Sofísticos, trad. Leonel Vallandro e Gerd Borheim. – São Paulo: Abril Cultural, 1973.
DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, trad. Mário G. Kury. – Brasília: UnB, 1977.
KANT, I. Lógica, trad. Guido A. de Almeida. – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.
PLATÃO. Republica, trad. Mª H.R. Pereira. – Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1990.

Meta Physis

O neologismo criado por Andrônico de Rhodes (séc. I a.C.) serviu não só para classificar os textos de Aristóteles agrupados “depois da Física”, mas também para batizar todo um campo do conhecimento que tratou de desenvolver a filosofia primeira aristotélica. A rigor, Aristóteles não fora o primeiro a tratar de encontrar a causa primeira de todas as coisas. Os conceitos principais da nova disciplina já vinham sendo abordados desde os primeiros pensadores jônios de forma assistemática, que depois passou a ter um nível de argumentação mais avançado, a partir de Sócrates e Platão.
Aristóteles teve o mérito de desenvolver todo um sistema para o estudo das questões metafísicas. Isso influenciou todas as escolas posteriores. Embora ele mesmo tenha começado a discutir suas ideias na Academia de Platão, no desenrolar dos problemas da matéria, acabou por se afastar do idealismo platônico e adotou método próprio, cuja solução mesmo Aristóteles não se dava por satisfeito.

Correntes Metafísicas

Com o passar do tempo, o termo “metafísica” deu nome à matéria da filosofia primeira, que não se restringia mais à busca específica da causa inicial, porém procurava explicar as substâncias materiais, organização do mundo e a possibilidade de conhecimento. Ao questionar aspectos que iam além da mera pesquisa dos fenômenos naturais, a metafísica veio a ser considerada a principal disciplina a investigar todos assuntos que não se limitavam a seu aspecto físico. Daí, a metafísica ter se tornado conhecida por enfrentar assuntos transcendentais antes de qualquer outra ciência.
Várias correntes seguiram essa linha de investigação, até esgotar seus argumentos originais, na era contemporânea. No helenismo, céticos discutiam contra os dogmáticos. A teologia medieval tornou-se um tema da metafísica, incluindo a filosofia árabe do período. O ceticismo moderno veio abalar os seus alicerces, durante o renascimento. No iluminismo, a solução da crítica transcendental racionalista parecia resolver as dúvidas dos céticos. Contudo, o romantismo alemão procurou ir além das limitações da crítica racional. Em seu ponto máximo, os niilistas acabariam com tudo de uma vez. A fenomenologia procurou se livrar desse desespero trazendo para o estudo do mundo das aparências toda a metafísica. O século XX viu uma nova crítica da sociedade, tal como os antigos cínicos, pôr em xeque as questões metafísicas diante da atomização dos indivíduos e o massacre tecnológico da indústria cultural. Por sua vez, o existencialismo heideggeriano procurou criar uma nova metafísica, retornando ao pensamento original dos pré-socráticos. Por fim, os pragmáticos resolveram liquidar a questão, ao considerar uma teoria verdadeira, até que uma nova teoria provasse o contrário.
Todas essas correntes, apesar de suas divergências, discutiam pontos em comum relacionados com os princípios materiais (causa primeira); a relação do corpo com a mente; a substância das coisas (essência e acidente); causalidade (determinismo e livre arbítrio); o estudo do ser (ontologia); o método científico mais adequado (lógica ou idealismo); a questão da verdade; o relativismo e, atualmente, a tecnologia. Essas são as principais questões temáticas da metafísica.
Biblioteca em Chamas

Questões metafísicas inflamaram as mentes de muitos pensadores, por séculos. VIEIRA DA SILVA. La Bibliothèque en Feu, do museu Calouste.

Gnosiologia e Epistemologia

DE acordo com o Dicionário Oxford de Filosofia, de Simon Blackburn, gnosiologia é um termo antigo para a atual epistemologia. Gnosis, em grego, significa “conhecimento” tal como episteme, que também está associada à ciência, metodologia etc. Textos de teologia adotam com mais frequência o termo “gnosiologia” quando se referem ao estudo do conhecimento das coisas espirituais. Contudo, não há nada na teologia que se possa chamar de “conhecimento”. Afinal, deuses, anjos e demônios não passam de questão de fé e crença que não encontram respaldos na realidade. Dependem de quem acredita apenas, sem qualquer comprovação.

A epistemologia procura estabelecer uma teoria do conhecimento, cujos temas principais são a origem do saber; o papel da razão e da experiência nesse processo; a formação da certeza e a possibilidade do erro, na crítica do ceticismo; além do modo como novos conceitos são criados a partir da observação do mundo. Isso tudo resume-se à busca da verdade com base na experiência (empirismo) ou no significado dos conceitos (linguística).
O conhecimento empírico se sustenta também em princípios lógicos, que se confundem com a metafísica. Mas os axiomas que fundamentam a experiência se apoiam antes na realidade e na prática da linguagem, do que em qualquer pressuposto transcendental.

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Metafísica. – Porto Alegre: Globo, 1969.
DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
HUME, D. Investigação Sobre o Entendimento Humano. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
PLATÃO. Teeteto. – Belém: Universidade do Pará, 1973.
QUINE, W. v. Relatividade Ontológica e Outros Ensaios. – São Paulo: Abril Cultural, 1985.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. – São Paulo: Abril Cultural, 1989.

Mapas

Um bom mapa sempre se faz necessário para uma boa orientação. Sobretudo, quando se quer fazer uma viagem por lugares desconhecidos, a falta de informação pode ser questão de vida ou morte. Os mapas-múndi são a representação gráfica de uma visão de mundo partilhada por uma cultura durante uma determinada época. Nesse sentido, ilustram a perspectiva filosófica e os interesses dominantes. A relação entre mapas e riqueza foi captada por expressões cotidianas como “mapa da mina” ou “mapa do tesouro”. De fato, a posse de planisférios precisos sempre contribuiu para o enriquecimento de comerciantes, aventureiros, conquistadores e industriais em busca de mercadorias, territórios ou matéria prima para manufatura.
Os babilônios foram os mais antigos desenhistas de mapas que se tem notícia. Por volta de 2.300 a.C., eles já projetavam em tábuas de argila os primeiros traçados de áreas terrestres. Geógrafos gregos do terceiro século antes de Cristo admitiam a forma esférica da Terra. Nesse mesmo período, do outro lado do globo, os chineses usavam linhas paralelas de norte a sul e lesta a oeste. Seus mapas eram muito precisos, mas incompletos, como os ocidentais de então. Na Idade Média, os europeus restringiam o mundo conhecido a seu continente, Ásia e norte da África. Os árabes, desenhavam seus mapas-múndi com conceitos de latitude e longitudes bem definidos e incluíam o Oceano Índico e territórios ao sul do Equador, onde comercializavam.

Imagem: MERCATOR, G.Mapa Múndi; Fonte: Bloch Editores.

Na época das grandes navegações, as antigas cartas geográficas do tempo de Cláudio Ptolomeu (127-145) mostraram-se logo ineficazes e ultrapassadas. Convencidos, definitivamente, que a Terra era redonda, os primeiros modernos tiveram de encontrar um modo de representar no plano os pontos geográficos de um esfera. Nos séculos XIII e XIV, as cartas náuticas —representação de áreas marítimas— passaram a ser mais detalhadas, incorporando a Rosa dos Ventos para orientação de bússolas.
O geógrafo belga Gerhard Kremer (1512-1594), cujo apelido latino era Gerardus Mercator, inventou um método que consistia em simular a projeção da sombra da Terra num cilindro que a envolvesse perpendicularmente, tangenciando o equador. O método de Mercator permitia fazer a projeção do globo terrestre sobre uma superfície plana, auxiliando a criação de rotas retilíneas aos navegadores. Desenrolado o cilindro o mapa-múndi obtido apresentaria, no entanto, distorções cada vez maiores à medida que a distância fosse aumentando da linha do equador para os polos. Com isso, a Groenlândia e a Antártica apareciam maiores do que realmente eram na realidade. Mesmo sem poder representar fielmente os polos sul e norte, os mapas de Mercator eram utilizados pelos navegadores que evitavam esse rumo, e ainda hoje, a projeção por ele inventada é usada no desenho de mapas múndi.
 Os levantamentos topográficos científicos foram adotados a partir do século XVIII. Atualmente, fotografias aéreas e monitoramento por satélites fazem da ideias de globalização uma realidade visível a qualquer um que possua computadores ligados a rede mundial. As minas e os tesouros dos exploradores antigos estão ao acesso de um simples botão.

 

Motivação

O tema da motivação, em filosofia, vem sendo tratado por autores ligados à ética, epistemologia e teoria da ação. Na ética, o objetivo é saber se os princípios morais são suficientes para motivar a boa conduta humana ou se este só age em função de algum interesse por bens ou um tipo de vida em especial. Para Immanuel Kant (1724-1804), uma lei moral só teria validade se fosse motivada incondicionalmente, ou seja, por si mesma. Outros, como David Hume (1711-1776), pensavam que isso só seria possível se houvesse um sentimento moral que orientasse as ações.

A falta de motivação acarreta em inação. DÜRER, A. Melancolia, gravura de 1514.


A teoria da ação parte, então, para desvendar até que ponto as decisões humanas são livres, tendo em vista que as motivações para agir podem ser causadas por estímulos internos ou externos. Se a vontade for condicionada externamente, as motivações determinariam de fora para dentro o comportamento do indivíduo, a despeito de seu livre arbítrio. Nesse caso, não haveria como responsabilizá-lo por nada que fizesse. Uma motivação interna, determinação psicológica, poderia garantir um mínimo de responsabilidade ao sujeito, embora não fosse suficiente para estabelecer sua autonomia. George Moore (1873-1958), Burrhus F. Skinner (1904-1990) e Ernst Tugendhat são exemplos de autores que abordam essa questão de diversos ângulos.
O papel da motivação na formação do conhecimento é estudado pela epistemologia contemporânea, às vezes, com o apoio da neurologia que, depois de O Erro de Descartes, de António Damásio, contribui decisivamente para delimitação das fronteiras entre sentimentos e razão, tendo como ponto de contato as motivações.

Referências Bibliográficas

DAMÁSIO, A. O Erro de Descartes. – São Paulo: Cia das Letras, 1996.
DEWEY, J. Vida e Educação. – São Paulo: Abril Cultural, 1985.
HABERMAS, J. “Conhecimento e Interesse”, in Tecnologia e Ciência como “Ideologia”. -Lisboa: Edição 70, 1987.
HUME, D. Uma Investigação sobre os Princípios da Moral. – Campinas: Unicamp, 1995.
KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
MOORE, G. “El Libre Albedrio”, in Ética. – Barcelona: Labor, 1929.
SEARLE, J. Mente, Cérebro e Ciência. – Lisboa: Edição 70, 1984.
SKINNER, B.F. Tecnologia de Ensino. – São Paulo: Herder, 1975.
TUGENDHAT, E. Lições sobre Ética. – Petrópolis: Vozes, 1997.

Opinião e Certeza Subjetiva

OS antigos helenos distinguiam a doxa (opinião) da episteme (conhecimento). Para eles, a opinião poderia fundar uma técnica qualquer – a arte de fazer sapatos, por exemplo -, mas não seria suficiente para fundamentar a ciência ou conhecimento verdadeiro. A separação entre opinião e conhecimento científico vem daí. Enquanto a primeira permite a confecção de objetos apoiada numa prática generalizada, o segundo fornece os princípios que fazem dessa prática algo válido em geral. A opinião tem sua fundamentação em concepções subjetivas e quando essas são partilhadas por uma comunidade, as opiniões individuais somadas formam o senso comum. Ao contrário das ciências, o senso comum não procura justificar suas opiniões por meio de experiências que falsifiquem suas posições. Simplesmente, assumem uma verdade baseada na tradição ou em crenças.

Certeza Subjetiva

Um crítico certeiro do Subjetivismo

A forma de certeza fundada no sujeito que é a base da subjetividade. A certeza subjetiva não se apoia em observações, por confiar plenamente em suas convicções racionais internas, difere da certeza objetiva, que busca sustentação em conhecimento obtido através da observação sistemática de fenômenos que se repetem e podem ser percebidos por todos. René Descartes (1596-1650) procurou no interior do sujeito racional um tipo de verdade indubitável que pudesse servir de apoio a todo conhecimento verdadeiro. Encontrou na expressão “cogito, ergo sum” (penso, logo sou) aquela condição que a seu ver não poderia ser rejeitada sem contradição. Tudo isso, porque a certeza objetiva era vulnerável ao ataque de uma crítica cética, já que do fato de um fenômeno se repetir inúmeras vezes, não se segue isso vá ser assim sempre. Ludwig Wittgenstein (1889-1951), muitos anos depois, questionou essa certeza subjetiva cartesiana, afirmando que a simples proposição “eu sei” não basta. Afinal, é necessário apontar objetivamente que um erro não é possível em um caso determinado. Aos céticos da certeza objetiva, Wittgenstein perguntava se faz sentido duvidar da aparente certeza sobre o acontecimento observado, se ele estivesse amparado num uso apropriado da linguagem. Com isso, foi possível restaurar uma certeza objetiva sob nova perspectiva: a de uma prática linguística que influenciou toda filosofia contemporânea.

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES, Metafísica. – Porto Alegre: Globo, 1969.
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia. – Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
DESCARTES, R. Meditações. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
WITTGENSTEIN, L. Da Certeza. – Lisboa: Edições 70, 1990

Do Dogma à Falha

A grosso modo, existem pelo menos cinco tendências a caracterizar a formação do conhecimento humano: a dogmática, a cética, a relativista, a eliminativista e a crítica. Em graus variáveis, os dogmas são posições que acreditam estar apoiadas em certezas indubitáveis, seja uma revelação divina, seja axiomas – a sua maneira, estoicos e cartesianos partilham dessa postura. O ceticismo, inaugurado por Pirro de Élida (366-275 a. C.), ataca essa pretensão com argumentos que visam mostrar serem as questões filosóficas insolúveis. Por conseguinte, sugeriam a “suspensão do juízo” (epoche) em geral ou sobre um assunto específico. Os relativistas, tradicionalmente associados às ideias de Protágoras de Abdera (490-420 a.C.), afirmam que uma verdade universal não existe, mas apenas relativa à perspectiva humana. Por sua vez, há quem diga, os eliminativistas, ser ilusória qualquer pretensão de verdade passível de conhecimento no estágio atual da cognição e que só novas pesquisas apresentarão um parâmetro mais de acordo com essa aspiração.

Immanuel Kant

Em seu tempo, Immanuel Kant (1724-1804) defrontava-se com o dogmatismo de Christian Wolff (1679-1754), por um lado, e o ceticismo de David Hume (1711-1776), por outro, como alternativa, propôs um teoria crítica, onde se admitia restrições à racionalidade humana, embora dentro desses limites fosse possível o conhecimento universal dos fenômenos. No Prefácio de sua Crítica da Razão Pura (1781), Kant lançou essa ideia da seguinte forma:

“Por uma crítica assim, não entendo uma crítica de livros e de sistemas, mas da faculdade da razão em geral, com respeito a todos os conhecimentos a que pode aspirar, independente de toda a experiência; portanto, a solução do problema da possibilidade ou impossibilidade de uma metafísica em geral e a determinação tanto das suas fontes como de sua extensão e limites; tudo isso, contudo, a partir de princípios.” (KANT, I Crítica da Razão Pura, A XII).

Toda sua Crítica é dedicada ao estabelecimento dessa tese que, em resumo, considera impossível o conhecimento da coisa em si, mas viável na forma de fenômenos, isto é, do modo como as coisas se apresentam no mundo. Embora o projeto kantiano seja vulnerável a muitas objeções, o pensamento crítico passou a ser reconhecido por essa postura intermediária entre o dogmatismo e o ceticismo. O aspecto delimitador da razão, típico do criticismo, proporcionou uma sexta variante chamada falibilismo, de Charles S. Peirce (1839-1914), para quem as crenças justificadas pela razão estão prontas a serem revistas, caso novos dados fornecidos levem a isso. Tudo por causa das limitações naturais impostas ao entendimento humano.

Referências Bibliográficas

BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia. – Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
DIOGENES LAERCIO. Vidas e Doutrinas de Filósofos Ilustres. – Brasília: UnB, 1977.
HUME, D. Investigação sobre o Entendimento Humano. – São Paulo: Abril Cultural, 1980.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. – Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.
PEIRCE, Ch. S. Escrito Coligidos. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Enfim, Só!

AINDA que filósofos contemporâneos comunitarianos -Alasdair MacIntyre e Michael Sandel- considerem o isolamento e a neutralidade filosófica impossível, de fato, a relação pessoal de grande parte dos filósofos com a sociedade nunca foi tranquila e afetuosa. Pelo lado teórico, muitas correntes defendem o solipsismo metodológico no estudo de processos cognitivos, isto é, apesar do desenvolvimento psíquico ser afetado pelo meio ambiente, apenas os estados mentais internos e subjetivos do indivíduo criariam e determinariam a posição que este adotaria perante o mundo, de uma perspectiva solitária. Porém, do ponto de vista prático, frequentemente, a postura crítica dos filósofos frente a concepções dogmáticas do senso comum geram conflitos que reforçam a estranheza e a sua imagem de pessoas solitárias, introspectivas e individualistas.
Durante o governo dos Trinta Tiranos (404-403 a.C.), na Atenas antiga, a filosofia foi proibida de ser ensinada na cidade em que teve origem, dado seu aspecto subversivo. Diógenes de Sinope (400-325 a.C.), alguns anos depois, pregaria uma vida natural quanto a dos cães, a escola Cínica, chegando mesmo a morar num barril afastado das convenções e hierarquias de uma sociedade corrupta. O avanço dos bárbaros sobre o império romano, já tomado pelos cristãos, na Idade das Trevas, ajudou a consolidar o afastamento entre a filosofia e a convivência mundana, uma vez que os textos remanescentes haviam sido arquivados nas bibliotecas dos mosteiros beneditinos, dominicanos e franciscanos, com acesso restrito aos doutos da igreja. Por volta do século VI, o entendimento do grego antigo morria com Boécio (475-524), último medieval europeu capaz de traduzir diretamente do grego antigo aos obras dos filósofos helenos.
A solidão entre os filósofos varia de acordo com o grau de pessimismo diante da condição humana. Ao leito de morte, Thomas Hobbes (1588-1679) teria dito que se sentia contente por ter encontrado um “buraco pelo qual possa escapar desse mundo”. Immanuel Kant (1724-1804), embora não fosse propriamente pessimista, pois gostava de se confraternizar com os amigos nos fins de semana, era tão metódico em sua vida cotidiana que jamais soube dividir seu tempo com a companhia duradoura de outra pessoa, vivendo a maior parte de sua vida sozinho, tendo apenas um criado que cuidava de sua casa. Em Parega e Paralipomena (1851), Arthur Schopenhauer (1788-1860), outro filósofo solitário e pessimista escreveu:

É unicamente para um homem dessa têmpera [o gênio] que a ocupação permanente consigo mesmo, com seus pensamentos e suas obras, é uma necessidade irresistível; para ele, a solidão é bem-vinda, o lazer é o bem-supremo; quanto ao resto, pode passar sem ele e, quando o possui, torna-se-lhe frequentemente um peso. Somente desse homem podemos dizer que seu centro de gravidade cai inteiramente dentro dele. (SCHOPENHAUER, A. Parerga e Paralipomena,cap. II)

Voluntária ou forçada pela loucura, a solidão foi companheira de Henry David Thoreau (1817-1862), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Georg Cantor (1845-1918), Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e Martin Heidegger (1889-1976) —que depois da Segunda Grande Guerra (1939-1945) buscava refúgio no que restava da Floresta Negra germânica— entre uma multidão de outros tantos.

A Subversão do Poder

Apesar dessa introspecção adotada por muitos, a lista de filósofos envolvidos com o poder começa com Tales de Mileto (c. séc. VI a.C.) e irá além do último doutor formado por qualquer departamento de filosofia, nas diversas universidades espalhadas pelo mundo. Uma vez provado o fruto da “árvore do conhecimento”, não há como resistir à tentação de denunciar “o rei está nu” ou ainda “deus está morto”. A filosofia possui o germe subversivo que transforma tudo que toca. Na antiguidade, ela foi um dos fatores responsáveis pela lenta ampliação dos direitos políticos que alterou a estrutura da cidade-estado e permitiu a formação de impérios, na Europa. A previsão do eclipse de 28 de maio de 585 a.C., feita por Tales, foi decisiva para encerrar o combate entre os seus compatriotas iônios e os lídios e medos, que vendo a noite tomar o lugar do dia, logo procuraram fazer as pazes e respeitar os ritos helenos, segundo narra Heródoto (484-425 a.C.), no livro I de sua História. Aristóteles (384-322 a.C.), por sua vez, considerava a vida política inevitável para um filósofo poder desfrutar a felicidade (eudaimonia) de uma vida contemplativa.
Entre os medievais, Sto. Agostinho (334-430) e Dante Alighieri (1265-1321) vinculavam o poder secular ao poder divino. No Renascimento, Niccolo Maquiavel (1469-1527) justificou o governo dos Médicis com uma teoria em que a virtude (virtu) dos governantes estava em poder realizar os seus fins, como uma habilidade para empregar os meios necessários para tanto. No início da era moderna, o empirista Francis Bacon (1561-1626) sentenciava que “ciência e poder do homem coincidem” (BACON, F. Novum Organum, livro I, § III), enquanto Thomas Hobbes (1588-1679) fundava o Estado moderno em seu Leviatã (1651).
Metodologia da Pesquisa

Imagem de quadro O Geógrafo (1669), de Jan Veemer.

A figura do filósofo encerrado numa “torre de marfim”, nunca passou de mera retórica. Até mesmo Immanuel Kant (1724-1804), teve problemas com o rei da Prússia, Frederico Guilhermo II, quando lançou A Religião dentro dos Limites da Razão (1793). A suposta neutralidade da epistemologia e da lógica, também, foi posta em xeque por autores como Thomas Samuel Kuhn (1922-1996), Paul Feyerabend (1924-1994) e Michel Foucault (1926-1984) em suas críticas à razão e o método científico.
Em todos os tempos, a filosofia constituiu numa ameaça ao poder. Por vezes, foi perseguida e nunca foi bem vista por tiranos. De fato isso seria uma contradição a filosofia ser admitida no seio de um aparato estatal, afinal como mostrou Louis Althusser (1918-1990), a escola é um importante aparelho ideológico do Estado (AIE) e seria um incômodo que isso fosse denunciado de dentro das instituições, com a inclusão da disciplina filosofia no currículo escolar. Não obstante, aqui vai a melhor definição de poder, fornecida pela filósofa Hannah Arendt (1906-1975):

“O ‘poder’ corresponde à habilidade humana de não apenas agir, mas de agir em uníssono, em comum acordo. O poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a um grupo e existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido. Quando dizemos que alguém está ‘no poder’ estamos na realidade nos referindo ao fato de encontrar-se essa pessoa investida de poder, por um certo número de pessoas, para atuar em seu nome. No momento em que o grupo, de onde origina-se o poder (potentas in populo, sem um povo ou um grupo não há poder), desaparece, ‘o seu poder’ também desaparece” (ARENDT, H. Da Violência, cap. II).

Referências Bibliográficas

ARENDT, H. Da Violência. – Brasília: UnB, 1985.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.- São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BACON, F. Novum Organum. – São Paulo: Abril Cultural, 1973.
CIORAN, E.M. Breviário de Decomposição.- Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
DANTE. Da Monarquia. – São Paulo: Brasil, 1960.
DIÓGENES LAÉRCIO. Vida e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. – Brasília: UnB, 1987.
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. – Rio de Janeiro: Graal, 1979.
HEIDEGGER, M. O Caminho do Campo. – São Paulo: Duas Cidades, 1969.
HERÓDOTO. História. – Rio de Janeiro: W.M. Jackson, 1964.
HOBBES, Th. Leviatã. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
MARX, K. A Ideologia Alemã. – São Paulo: HUCITEC, 1993.
RAWLS, J. Uma Teoria da Justiça. – Lisboa: Presença, 1993.
SCHOPENHAUER, A. Regras de Conduta para Bem Viver. – Rio de Janeiro : Vecchi, 1950.
THOREAU, H. “Caminhando”, in Desobedecendo. – São Paulo: Círculo do Livro, 1986.
VOLTAIRE, F-M. A. Cândido. – Rio de Janeiro: Newton Compton, 1996.