Livro Eletrônico sobre Falácias

INSERIDO em Discursus novo livro eletrônico sobre Falácias. Uma coleção recolhida na seleção de falácias do sítio, acrescida de dois artigos: “Da Silogística” e “Como Desmascarar a Pseudociência”.

Disponível através de: https://forumdediscursus.wordpress.com/wp-content/uploads/2021/11/falacias-1.pdf

Os Herdeiros da Terra

UMA das consequências preocupantes da Tragédia dos Comuns deriva do problema em torno do “controle populacional”. A superpopulação é uma das questões que recaem sob a forma de comuns – ações nas quais os agentes procuram tirar o melhor proveito de um bem público. A tentativa de respondê-la por meio de um “apelo à consciência” se mostra inócua diante dos ganhos imediatos oferecidos pela ocupação dos espaços disponíveis. Essa ineficácia, por sua vez, revelaria a característica autoeliminante da própria consciência.
A tragédia dos comuns remete a um experimento mental idealizado por Garrett Hardin (1915-2003), biólogo evolucionista, que o publicou no artigo The Tragedy of the Commons (1968), na revista Science. Onde se descreve a situação vivida por uma comunidade rural na qual os fazendeiros compartilham uma área devoluta que margeia suas propriedades. À medida que esse terreno vazio é ocupado pelas cabeças de gado que se multiplicam a cada safra, diminuem a área e a quantidade de pasto disponível para todos. Até chegar o momento em que a grande quantidade de rebanho no local passa a exigir o fornecimento de ração extra a um custo muito maior do que o originalmente gasto, antes de se iniciar a ocupação da área comum. Pois, o tamanho maior do rebanho pertencente a cada fazendeiro só se sustentava devido a existência de alimento “grátis”, fornecido pelo bem comum natural que agora se esgotara.
Esse fenômeno se repetiria, segundo Hardin, no crescimento populacional existente em toda Terra. Enquanto os recursos naturais fossem suficientes para sustentar as novas gerações que chegavam, cada vez em maior número, a população poderia crescer livremente sem maiores obstáculos. Contudo, assim que o limite de sustentabilidade do planeta fosse alcançado, logo os altos custos para sua manutenção seriam cobrados. Os recursos escassos subiriam a preços maiores do que os suportados por cada um para sua subsistência. Nesse sentido, diante do direito de todos à liberdade de procriação, o apelo ingênuo à consciência por uma paternidade responsável não seria capaz de fornecer uma solução tão fácil, em qualquer momento – curto, médio ou longo prazo.
Sem que o remorso ou a culpa sejam instrumentos eficazes de controle – frente ao bem comum acessível – os pais conscientes enfrentam o dilema de veem outras famílias crescerem sem restrições, ao passo que a sua para de crescer ou diminui. Uma intervenção legal que limitasse a liberdade de procriação seria talvez a única saída a curto prazo para resolução da explosão populacional em escala planetária.
O fracasso do “apelo à consciência” decorreria do fato das pessoas que não se preocupam com a paternidade responsável – uma vez que não sentem os custos altos de sua ação – gerarem mais filhos do que as que antecipam tais dificuldades. Por conseguinte, a cada nova geração mais gente “sem consciência” nasceria e menos pessoas conscientes surgiriam, inversamente. A se repetir isto, com o tempo, as pessoas que se preocupam com o crescimento desordenado da população seriam levadas à extinção, provando que este tipo de consciência seria autoeliminante.

O argumento foi estabelecido no contexto do problema populacional, mas se aplica igualmente a qualquer instância na qual a sociedade apele a um indivíduo que explore os comuns no sentido deste se restringir ao bem geral – segundo sua consciência. Ao se fazer tal apelo, se estabelece um sistema seletivo que trabalha para eliminação da consciência da competição (HARDIN, G. The Tragedy of the Commons, pp. 1243-1248).

Limites para o Crescimento

A conclusão a que chega Hardin é que o apelo à consciência não serviria como solução para o problema dos comuns, muito menos para questões populacionais. Melhor seria impor restrições legais, como as que foram aplicadas na China e cujos resultados farão com que o país asiático perca o posto de mais populoso para a Índia até 2026 [1]. Entretanto, o êxito chinês pode ser explicado por outros fatores, além do planejamento estatal da população.
A China mantém um regime político ditatorial que ao longo dos últimas décadas veio liberando sua economia do controle estatal rígido. Isto permitiu à maioria de sua população se urbanizar e às mulheres assumirem um papel maior no mercado de trabalho e consumo. Todas essas variáveis contribuem – cada uma a seu modo – para redução do crescimento da taxa de natalidade [2].
Em países democráticos, onde dificilmente um governo ou partido consegue impor medidas impopulares – sem um longo debate e campanhas de conscientização -, um processo lento de envelhecimento vem a se verificar, não apenas em economias mais avançadas. Nos Brasil e Uruguai [3], já se prevê um declínio no número de habitantes, antes do fim do século XXI. Esse fenômeno acontecerá, independente de medidas determinadas de cima para baixo.
A razão para tanto pode estar em uma característica da mente que não fora considerada por Hardin, à época da publicação de seu ensaio, por só ter sido compreendida depois do lançamento de O Gene Egoísta, de Richard Dawkins, em 1976. Neste livro, Dawkins descreveu a forma de proliferação de ideias como memes, uma das mais eficazes maneiras de reprodução, sob critérios evolutivos. Diferente dos genes, que se transmitem sexualmente, os memes seriam capazes de se multiplicar e adaptar, sem o contato físico. Uma ideia subjacente a um meme se espalha em uma população e suas sucessivas gerações, graças ao atrativo interesse que tal ideia possa provocar nos indivíduos que tomam conhecimento de sua existência. Para isso, basta que a difusão feita seja de fácil entendimento por parte dos receptores da mensagem transmitida, portadora do próprio meme.
Nesse contexto memético, a comunicação entre as pessoas assume o papel do sexo, na genética. A assimilação de um meme, pela educação ou propaganda, por exemplo, fertiliza a mente dos envolvidos de modo similar à fecundação entre os casais. Os memes podem, não obstante, se propagarem com maior rapidez e robustez do que os genes, ao longo do tempo. Isso explica por que uma ideia bem sucedida é tão difícil de ser eliminada em uma determinada cultura. A morte do indivíduo ou de um grupo pode levar à extinção de um gene, mas não de uma ideia que se tornou meme [4].

(…) Os biólogos, como vimos, estão acostumados a procurar vantagens ao nível do gene (ou do indivíduo, do grupo, ou da espécie, de acordo com o gosto). O que não levamos em conta anteriormente é que uma característica cultural poderá ter evoluído da maneira como o fez simplesmente porque é vantajoso para ela própria (DAWKINS, R. O Gene Egoísta, p. 221).

O Meme do “Controle Populacional”

O lento declínio da espécie humana deverá se acentuar a partir da segunda metade do século XXI. Não obstante, em alguns países, como os já citados, isso vá ocorrer antes de 2050. Entretanto, apesar do decréscimo das faixas etárias de 0 a 59 acontecer desde 2010, efetivamente, o número de habitantes no planeta chegará aos 10 milhões na década dos 2060, para, só então, o total começar a baixar.
Isso significa que haverá, antes, um envelhecimento acelerado na espécie a provocar sérios impactos no sistema de saúde e seguridade no futuro próximo. Um choque a mais na administração dos recursos que não implicará necessariamente na sua escassez ou esgotamento de sua capacidade renovável, ou ainda de sua regeneração. Dos seis países aqui analisados – Alemanha, Brasil, China, Índia, Japão e Uruguai -, dois destes – Brasil e Uruguai – não terão sua biocapacidade comprometida ao longo do processo de crescimento-auge-declínio da população, segundo dados da rede de “pegada ecológica” que faz esse tipo de cálculo. De acordo com a estimativa, os dois países sul-americanos têm mais do que o dobro de biocapacidade de atender sua população, em 2018 [5].
A condição mais grave, em relação à gestão dos recursos renováveis, enfrenta o Japão, que tem hoje uma carência de 685% da sua capacidade natural para manter o bem estar de sua população. Não por acaso, este país vêm desde 2010 reduzindo o número de seus habitantes. Caminho que em poucas décadas também será trilhado pelas demais nações.
Desse modo, pode-se concluir que não foi por falta de recursos que a população humana iniciou esse processo de encolhimento, como presumia, no final do século XVIII, o economista e religioso inglês Thomas Robert Malthus (1766-1834). É de Malthus o primeiro “Ensaio sobre a População”, publicado que foi em 1798, a alertar sobre as consequências do crescimento geométrico descontrolado da população, frente à progressão aritmética dos meios de subsistência [6].
A Tragédia dos Comuns, de Hardin, herdou essa visão pessimista sobre o manuseio da natureza, atualizada pelas circunstâncias sombrias da época de seu lançamento. Todavia, embora não se possa garantir que ambos estivessem errados, considerando suas premissas locais e a visão dos jogos contra natureza, serem considerados de soma zero – na teoria dos jogos, a natureza faz o papel de um jogador que absorver os ganhos ou as perdas em sua interação com outros jogadores racionais -, novos argumentos sustentam a tese de declínio populacional sem ser decorrente da escassez de recursos, em face de outros fatores econômicos, como o aumento da escolaridade nas mulheres e do bem estar geral.
Contra Malthus, a “revolução verde” na agricultura e o vertiginoso desenvolvimento tecnológico observado desde a segunda metade do século XX se mostraram eficientes no acompanhamento da progressão humana. Contra Hardin, o meme do “controle populacional” foi eficaz para vencer a competição com o gene da procriação.
Não foi preciso que intervenções arbitrárias fossem implantadas em governos democráticos. A própria difusão do modo de vida ocidental – que incentiva mais anos de estudos para o sexo feminino, atraso na idade de gestação, redução da prole, enquanto proporciona aumento no padrão de vida – contribuiu para uma adoção de uma média menor a três filhos por parte da mulher [7].
De acordo com as observações do psicólogo estadunidense Steven Pinker, a “bomba populacional” foi desarmada muito antes dos recursos ambientais se esgotarem. A partir da década dos 2050, ocorrerá um gradual declínio no número de habitantes na Terra, após o pico alcançar entre 9 e 10 bilhões de pessoas [8]. As visões mais pessimistas sobre o futuro da humanidade foram revistas e, agora, três novos cenários são sugeridos para melhor avaliação.

3 Cenários

Os principais fatores que, desde já, determinarão o futuro da espécie humana não passam mais pela escassez de recursos ou pelo aquecimento global iminente. A falta de meios, a tecnologia mostrou, pode ser contornada pela substituição das matérias primas, de modo a otimizar o consumo de energia e o custo de produção. A mudança climática, embora seja inevitável, levará a uma adaptação dos hábitos de países temperados e frios ao cotidiano dos povos tropicais, que por sua vez terão de se acostumar a temperaturas máximas recordes. O que determinará, então, o limite do crescimento populacional será, ou já é, o grau de instrução das mulheres. Quanto mais anos de estudo, maior a tendência das mulheres terem filhos mais tarde e em número menor [9].
Isso ocorrerá na medida em que forem elevados os padrões de vida atuais da população, de acordo com os moldes ocidentais. Países mais ricos tendem a ter casais com fertilidade baixa – menos de dois filhos por mulher. Diante dessa realidade, são três as opções projetadas: 1. avanço das metas de educação entre as mulheres; 2. manutenção dos parâmetros de educação atuais; 3. aumento da pobreza e nenhuma melhoria na educação feminina.
No primeiro cenário – otimista -, as metas sugeridas para 2030 seriam plenamente atingidas e a população atingiria seu pico de 8,9 bilhões até 2060, quando começaria a cair para chegar aos 7,8 bilhões em 2100. Contudo, como já se prevê que esses objetivos não serão totalmente obtidos, um segundo cenário realista projeta que se pode ir aos 9,8 bilhões em 2080, declinando a 9,5 bilhões no fim do século – supondo que haverá um expansão média razoável na educação. Entretanto, se nada disso acontecer, se espera que uma sombra malthusiana cubra as 10 bilhões de pessoas, já em 2045, em um crescente que bateria 13,4 bilhões ao final do século XXI [10].

Três cenários para o futuro

A tendência por um ou outro cenário depende de tomadas de decisões políticas feitas desde já. Tais escolhas pactuam com crenças em sustentabilidade, paternidade responsável ou desenvolvimento permanente. A disputa ideológica entre essas concepções, por vezes conflitantes, decidirá qual futuro a humanidade seguirá: o caos desenvolvimentista ou o controle populacional. Essas ideias influenciarão na redução ou agravamento da pobreza extrema; no bom uso dos recursos ambientais e na sustentação de um padrão de vida elevado para um número menor de habitantes.
Nos dois principais fatores de redução da taxa de crescimento populacional, uma visão retrospectiva dos últimos anos é favorável à percepção de um contínuo decréscimo do número de habitantes na Terra. À medida que a educação das mulheres, e dos homens em geral, avança maior a conscientização por uma paternidade responsável. Em 2015, estimativas apontavam para um incremento de 15%, entre 1970 e 2010, do número de pessoas na faixa etária dos 15 anos com o grau primário de educação completo, abrangendo 85% de todo esse grupo. Com educação secundária já existiam mais de 60%, acima dessa faixa. Enquanto o ensino superior formava mais de 10% em todo mundo [11].
Tudo indica um cenário promissor para o fim deste século, com o ensino primário universalizado e cada vez mais anos estudados, tanto para homens como para mulheres. Ao lado da melhoria da renda e do surgimento de novas tecnologias sustentáveis, pode-se prever um grande potencial de redução gradativa dos habitantes, em 2100, a valores entre 9 e 7 bilhões de pessoas – segundo projeções da International Institute for Applied Systems Analysis (IIASA). Uma vitória dos memes de controle populacional e de sustentabilidade sobre os do voraz laissez-faire.
Por fim, os sinais de alarme acionados por pensadores pessimistas, como Malthus e Hardin, chamaram atenção de todos os que se preocupam com o futuro da humanidade. Uma vez que seus objetivos de controle da situação vêm sendo alcançados – não pela via apocalíptica imaginada -, o processo de conscientização do problema, através da educação feminina, recairá em uma visão mais ampla sobre o ponto de equilíbrio entre o número de habitantes e o bem estar geral desejável. O constante declínio do ser humano na Terra e o rápido envelhecimento da espécie, por outro lado, passam a formar um novo preocupante problema que poderá levar a um processo de autoextinção, por vias paradoxais, em menos de dois séculos.
A busca do ponto de equilíbrio entre as novas gerações e os idosos em maior número é o próximo desafio demográfico a ser enfrentado. O encontro desse meio termo garantirá uma vida melhor para todos, enquanto se afasta o risco do aumento da pobreza e uma queda na miséria para quem herdar a terra.

Notas

1. Em 2017, a população total da China era estimada em 1409 milhões de pessoas, com uma taxa média de crescimento anual de 0,5%, enquanto a Índia atingia 1339 milhões a 1,2% ao ano, no mesmo período. As projeções para 2026 estimam que haverá 1473 milhões de indianos, naquele ano, para 1466 milhões de chineses, mantidas as taxas apuradas pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).
2. Entre 1950 e 1995, a taxa de crescimento da faixa etária de 0 a 14 anos era de 3,9%, em média. No período de 2010 a 2015, havia caído para 0,4%. Um decréscimo, com taxas negativas, está previsto para acontecer a partir de 2030, quando se acredita que chegue a -1,4%, segundo a Divisão de População do Departamento de Assuntos Sociais e Econômicos da Nações Unidas (UNDESA).
3. Além do Brasil e Uruguai, Alemanha, Japão e outros países desenvolvidos vêm enfrentando o fenômeno do envelhecimento de sua população e por conseguinte da redução do número de habitantes. No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) projeta para 2047 o início do declínio da população brasileira. Naquele ano, a quantidade de brasileiros deverá chegar ao pico de 233.233 mil e começar a cair a uma taxa de -0,4% a.a. No vizinho Uruguai, o Instituto Nacional de Estatística (INE) estima que. por volta de 2040, o país alcançará 3.708 mil pessoas, para então apresentar decréscimo na metade dessa década. Por sua vez, a Alemanha já mostra queda na faixa de 0 a 59 anos, desde 2010, e a UNDESA calcula que depois de 2030 os alemães passarão de 82 milhões para 79 milhões em 2050. Situação na qual o Japão deverá estar em 2030, quando sua população atual de 127 milhões terá encolhido para 121 milhões. Desde 2010, os japoneses vêm diminuindo sua taxa de crescimento anual, em torno de -0,1% a.a., de acordo com o UNFPA.
4. Para a origem da memética, veja o capítulo 11 de O Gene Egoísta.
5. Ver Global Footprint Network, onde se elenca a capacidade de um ecossistema se regenerar e quanto as pessoas desse local consomem em proporção à área ocupada.
6. Ver MALTHUS, T.R. “Ensaio sobre a População”, p. 246, cap. I.
7. Ver PINKER, S. Enlightment Now, cap. 10, fig. 10-1.
8. Ver PINKER, S. Op. Cit., cap.10.
9. Ver LUTZ, W et al. Demografic and Human Capital Scenarios for the 21st Century, § 11.2.
10. Ver LUTZ, W et al. Op. Cit., §11.2
11. Ver The World in 2050, p.15

Referências Bibliográficas

DAWKINS, R. O Gene Egoísta; trad. Geraldo H.M. Florsheim. – Belo Horizonte: Itatiaia, 1979.
HARDIN, G. “The Tragedy of the Commons”, in Science, nº 162, 1968.
LUTZ, W et al. Demografic and Human Capital Scenarios for the 21st Century. – Laxenburg: Publications Office of the European Union, 2018.
MALTHUS, T.R. Ensaio sobre a População; trad. Antonio A. Cury. – São Paulo: Nova Cultural, 1996.
PINKER, S. Enlightment Now. – New York: Viking, 2018.
THE WORLD IN 2050. Transformation to Achive the Sustainable Development Goals. – Laxenburg: International Institute for Applied Systems Analysis, 2018.

A Imaginação Moral de Mark Johnson

O papel da imaginação é talvez a maior descoberta de Kant na Crítica da Razão Pura. (…) [A] mesma faculdade que provê esquemas para a cognição, provê exemplos para o juízo, a imaginação (ARENDT, H. “Da Imaginação”, in Lições Sobre a Filosofia Política de Kant, p. 102).

O confronto de diversos tipos de bens dificulta fortemente a tomada de decisão. Diante dos dilemas morais, a incerteza sobre o que fazer impede o recurso a uma listagem de princípios hierarquizados sob uma fundamentação última. Nesse sentido, a necessidade de uma justificação razoável para ação esbarra na impossibilidade de decidir-se sobre “a coisa certa a fazer”. Quando isso acontece, o melhor mesmo é apelar para a Imaginação Moral, livro que o filósofo estadunidense Mark Johnson lançou em 1993. Através dela, seria possível imaginar as várias alternativas de ação. Uma racionalidade imaginativa iluminada, crítica, exploradora e transformadora deve ser a base das deliberações morais, do auto-entendimento e do desenvolvimento moral [1].
Uma teoria da moralidade desse tipo, ao contrário da pretensão de uma moral que visasse a formulação de leis, não seria prescritiva, mas descreveria a natureza do problema moral, apontando os padrões de justificação e as diferentes tradições históricas de tal modo que se revelaria a estrutura imaginativa dos conceitos e argumentos morais. Essa descoberta implicaria numa melhor compreensão da situação em que surgem os problemas morais, permitindo a construção de soluções, sem o fornecimento de regras para ação [2].

Elementos Básicos da Imaginação Moral

Para entender como a imaginação moral afeta as boas ações, é preciso conhecer seus elementos básicos: a estrutura prototípica dos conceitos morais; o enquadramento das situações; o uso de metáforas; e as narrativas. Os conceitos básicos da moralidade têm uma estrutura prototípica que não podem ser reduzidos aos critérios de necessidade e suficiência da teoria da lei moral. Por se ater só aos aspectos centrais das categorias a teoria da lei moral não dá conta dos casos periféricos, onde só os recursos imaginativos são capazes de alargar os limites definidos.
Seis aspectos da estruturas prototípicas são relevantes para a deliberação moral. Primeiro, na socialização que envolve o corpo do agente na aprendizagem das situações morais protótipos. Nesse envolvimento pessoal, em segundo lugar, emoções são geradas, marcando as motivações adequadas para a ação. Ao longo do tempo, uma série de extensões imaginativas mudam o significado dos protótipos, caracterizando sua flexibilidade. Contextos narrativos constituem o quarto aspecto importante, pois ajudam a determinar o significado de cada protótipo, segundo uma situação particular respectiva. Em quinto, os protótipos são a base dos princípios morais, cujas leis são abstrações que deixam de lado as circunstâncias culturais. Por último, as estruturas prototípicas estão sujeitas a transformações imaginativas graduais que permitem que os conceitos sejam aplicados a situações novas [3].
O enquadramento das situações é feito pela estrutura imaginativa sem a preocupação de fornecer um espelho objetivo da realidade. Os preconceitos existentes podem ser esclarecidos pela compreensão dos quadros semânticos, segundo sua natureza particular, que proporciona a formação de muitos quadros sobre a mesma situação [4].
O uso de metáforas constitui o cerne da dimensão imaginativa da moral. Tal afirmação, no entanto, exige uma série de reformulações no entendimento da razão moral. Conhecer os detalhes de uma estrutura metafórica permite um melhor autoentendimento do sujeito, esclarecendo seus valores, propósitos e sua vinculação às ações. A análise metafórica indica quais são os conceitos universais na base da experiência humana que pervade todas as culturas. Não obstante essa característica universal varia de cultura para cultura. Os princípios gerais estão situados num modelo cultural e narrativo que especificam os modos corretos de agir. Para evitar as mudanças catastróficas das promovidas pelas transformações das metáforas, é necessária uma avaliação dos custos do alargamento dos conceitos morais mais profundos. A metáfora serve para fazer a ampliação da estrutura prototípica dos conceitos morais básicos, introduzindo novas entidades que surgem nos casos em que não foram previstas anteriormente. Sem a habilidade de raciocinar por metáforas, a aprendizagem dos conceitos morais não é possível. Elas podem compor, também, um sistema complexo de metáforas, no qual muitas podem estar ocultas, enquanto outras aparentes. A reflexão autocrítica das metáforas permite não só o autoentendimento, bem como o conhecimento de alternativas possíveis de ação.
Em suma, o profundo conhecimento reflexivo da natureza da metáfora é essencial para o conhecimento moral. As metáforas não são arbitrárias, nem desmotivadas. Algumas restrições impedem que as metáforas caiam no extremo subjetivismo ou relativismo. No primeiro caso, o subjetivismo é evitado por serem as metáforas partilhadas socialmente, ao passo que o relativismo é superado pelo reconhecimento dos fundamentos universais das experiências corporais [5].
Para Johnson, a vida tem ainda uma estrutura narrativa que torna possível a antecipação das consequências das decisões tomadas e compromissos estabelecidos, em suas condições concreta e particular. A comparação entre os resultados de diversas histórias é importante para o conhecimento moral e para educação. A ficção é um laboratório que explora as implicações do caráter das pessoas. Nesse contexto, o raciocínio moral é semelhante ao exame das narrativas pessoais, que são inerentes às culturas e às circunstâncias particulares que constituem a vida de cada um [6].

A Diferença da Imaginação Moral

O entendimento moral é, portanto, estruturado pela imaginação. Contudo, para entender como isso ocorre, são necessárias regras particulares e adequação destas às situações de fato. Deve-se aprender como aplicar leis morais, segundo a percepção do caráter, das situações e pelo uso de uma imaginação empática em relação aos outros. Essa tarefa é um guia que parte do entendimento moral e do autoconhecimento [7].
Assim, a imaginação empática assume um papel decisivo nessa investigação moral. Pois, ela é uma habilidade que as pessoas têm de imaginar situações diferentes no passado e no futuro, colocando-se no lugar do outro. Essa é a mais importante atividade da imaginação. Ao tomar decisões morais, é preciso conviver no mundo do outro e imaginar seus sentimentos e expressões. Pessoas moralmente sensíveis são capazes de realizar essa imaginação empática, uma passionata, onde a relação com o outro não é instrumentalizada. Só desse modo é que se pode conhecer algo em si, ou seja, usando a imaginação e a experiência dos sentimentos, metas e esperanças partilhados com a experiência com os outros. Esse tipo de imaginação não é meramente pessoal ou subjetiva, pois ela utiliza seu caráter transformador e comunitário, inserindo o sujeito num mundo mais ou menos comum aos outros. Por isso, a imaginação moral é pública e partilhada. Ela é o meio primário pelo qual as relações sociais são constituídas reciprocamente, delineando a possibilidade de qualquer moralidade que não recorra apenas à aplicação de regras [8].
A ação moral requer a realização de fins. A boa vontade não existe por si mesma. Ela depende da ação para ser realizada. Além da vontade, é preciso agir para promover o bem estar de todos. A imaginação permite antever as várias possibilidades de ação suas vantagens e prejuízos, em cada situação. A antevisão das alternativas oferecidas precisa de uma imaginação moral que abra novas formas de organização social. A reorganização permanente de parte das metáforas, proporciona a superação da identidade e contextos atuais. Sem opções imaginativas, nenhuma pessoa pode ser moral [9].
Todavia, a abertura do raciocínio, proporcionada pela imaginação moral, provoca alguns problemas de indeterminação que exige uma restrição às alternativas apresentadas. Tais limitações são fornecidas pela preexistência de quadros e valores, emboras estes também não sejam determinantes. Faz-se necessária uma certa habilidade para raciocinar sob um esquema imaginativo partilhado e transformar uma concepção metafórica em outra, através de um mapeamento metafórico. O raciocínio moral usa estruturas e conteúdos imaginativos dados pelas culturas e articulados pela experiência pessoal, visando explorar novas possibilidades de significados e formas de agir. O raciocínio moral pode ser restringido por outros conteúdos e estruturas metafóricos da comunidade, ao mesmo tempo em que está autoriza a transformação do entendimento moral. Como nos exemplos jurídicos, onde novas metáforas são criadas para possibilitar a ampliação dos direitos e deveres de alguém. Sem isso, a vida, diz Johnson, ficaria mais pobre [10].

A Dimensão Estética da Moral

Na visão de Johnson, a tradição iluminista considera a concepção de imaginação moral uma justaposição de dois termos contrários, já que as leis morais são fruto da razão e a transgressão a elas é provocada pelo uso criativo da razão. Para os iluministas, a imaginação seria meramente estética. Os juízos morais sobre casos particulares recairiam em conceitos particulares regidos por uma regra moral específica. A razão seria, por conta disso, capaz de aplicar a lei a casos concretos tendo por base conceitos morais partilhados. Ainda sob esse prisma, os juízos estéticos não envolveriam conceitos gerais, não sendo produto da razão, pois estariam ligados a sentimentos e à imaginação. Portanto, estética e moral seriam radicalmente diferentes.
Contra tudo isso, Johnson defende a hipótese de que a estética pervade todos os aspectos da vida. Ela considera as estruturas imaginativas, as atitudes, orientações e transformações que tornam coerente encontrar algum sentido na experiência. Nesse sentido, a moralidade emprega a imaginação, a fim de explorar as possibilidades de ordenação dos problemas, de melhoria dos critérios comunitários e o amadurecimento pessoal. Destarte, a imaginação é o meio pelo qual se transcende à experiência pessoal, visando sua transformação e encaminhamento das situações problemáticas. A dimensão estética da experiência fornece o significado desta e vislumbra a possibilidade de sua melhoria [11].
O que se quer com essa nova metáfora da moral como arte é investigar o papel da criação estética nas considerações da lei moral, revelando a natureza do raciocínio moral. Nem todas facetas da estética fazem parte desse tipo de raciocínio. As mais relevantes são o discernimento, a pesquisa, a criatividade, a técnica e a expressão.
O discernimento, através da observação atenta e sensível de uma situação, abre novas dimensões do mundo, permitindo prever o que fazer diante das circunstâncias. Algumas restrições dessa forma de percepção limitam a visão imaginativa das coisas, por meio de princípios gerais, hábitos, compromissos internalizados, segundo a natureza do corpo que observa, da sociedade e da cultura, não obstante o fato de inexistir um método algorítmico predeterminado. A pesquisa artística procura investigar as formas, os materiais, a linguagem expressiva, os relacionamentos e as instituições, no intuito de imitar a natureza das coisas. Sob o aspecto moral, uma investigação precisa esclarecer o melhor modo de agir, formar leis relacionadas com o entendimento das situações, à luz de vários projetos de ação e planos de curso.
A criatividade pode, de posse desse conhecimento, perceber e reagir a uma situação, propondo novas formas de relações; transformando o caráter, os problemas e acontecimentos; além de apresentar novas realidades. O fator histórico e evolutivo da experiência humana, exige uma contínua experimentação e, a despeito dos possíveis equívocos, novas formas evoluídas de relacionamento podem surgir. As pessoas criativas ultrapassam as práticas canônicas e mostram novos modos de pensar, relacionar e agir, como por exemplo, Nero, Van Gogh, André Breton, Hitler e Martir Luther King Jr. Porém, para que tudo isso aconteça, é preciso uma certa técnica de utilização dos materiais para torná-los objetos de arte. Na moralidade, essa técnica não pode ser fixada por procedimentos mecânicos que se apliquem ao contexto, mas ela permite que o conhecimento adquirido “componha” a situação e “arranje” novos relacionamentos. Por fim, a partir dessas qualidades expostas, a expressão artística manifestaria a compreensão que o sujeito tem de si mesmo e, em moral, o caráter e a identidade da pessoa revelar-se-iam em suas tomadas de decisão e ações.
Sem procurar abranger todo domínio da arte, a metáfora da moral artística é considerada apropriada para o reconhecimento do modelo de juízo moral que pervade a moralidade de modo imaginativo sob muitos aspectos. Logo, a separação tradicional entre estética e moral seria falsa [12].

Conclusão

O raciocínio moral apoia-se em vários tipos de estruturas imaginativas que exigem, primeiro, a compreensão da cognição humana, do ponto de vista moral, como amplamente ligada à imaginação e, em segundo lugar, o cultivo de uma imaginação moral que envolva os indivíduos uns com os outros. A teoria proposta por Johnson não estabelece leis morais. Sua intenção é apenas de servir como guia para a vida, desde um conhecimento de si e dos outros. Aqueles que se atém a regras são pessoas medrosas quanto às contingências da vida ou obtusas ou ambas as coisas.
A teoria ingênua da lei moral não consegue resolver satisfatoriamente os dilemas morais. Contingências imprevisíveis podem ser determinantes na escolha da melhor estratégia. De fato, tais acontecimentos não solucionam um dilema ou mostram a “coisa certa a fazer”, isso tudo requer discernimento, ponderação, previsão, investigação e uma imaginação “muito fértil” [13].
Obra da Imaginação

A imaginação de um artista representando a obra de outro: O Incêndio de Roma de Hubert Robert (1733-1808). Fonte: http://www.kunst-fuer-alle.de/index.php?mid=77&lid=1&blink=76&stext=caesar&cmstitle=Bilder,-Kunstdrucke,-Poster:-Caesar&start=80, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=6606073

O argumento de Johnson, em Moral Imagination, é no capítulo oito apresentado na íntegra. Ele parte da premissa que uma suposta teoria ingênua da lei moral seria incapaz de resolver os problemas morais por estar restrita a regras estreitas de casos protótipos, que, por sua vez impediria, a sua aplicação em situações periféricas e particulares. Para encontrar a melhor maneira de agir, o raciocínio moral recorreria a recursos da imaginação que estenderiam os limites dos conceitos morais aos contextos não previstos pela lei. Portanto, seria preciso uma imaginação moral adequada para esclarecer a natureza desse raciocínio específico e servir como guia de resolução dos casos problemáticos de situações concretas do cotidiano das pessoas.
A teoria da imaginação moral assume, então, a tarefa de explicar como o pensamento imaginativo pode auxiliar a escolha da ação moral apropriada, sem cair num subjetivismo e relativismo indesejável às considerações morais. A fim de evitar o primeiro, afirma-se que as estruturas imaginativas são partilhadas pelo conjunto da sociedade e pela respectiva cultura a qual se está inserido. Além disso, os conceitos e metáforas usados pela imaginação moral são aqueles que fazem parte da natureza corporal, social e cultural da espécie humana, o que, por outro lado, afastaria uma interpretação relativista.
Nesse sentido, defende-se que a moralidade não pode ser concebida de outra forma que não a imaginativa. Esse tipo de moral seria muito mais rico do que todas teorias da lei moral, sendo também hábil para envolver não só o sujeito da ação moral, bem como outros indivíduos concernidos. Isso porque, a imaginação teria recursos narrativos e criativos suficientes para incluir o relacionamento entre os indivíduos em circunstâncias simuladas imaginativamente, proporcionando a previsão da reação dos outros às ações preferidas pelo agente. Na construção desse cenário fictício, a ativação de algumas funções estéticas é feita no intuito de enriquecer as alternativas possíveis e propor novos tipos de realidades e modos de agir cooperativos. Eis, em poucas palavras, o argumento de Johnson.
Todavia, há alguns problemas em toda essa argumentação “inovadora”. A influência da imaginação na formação do entendimento humano não chega a ser uma novidade para a filosofia moderna. Desde Thomas Hobbes, pelo menos, a imaginação foi considerada um capítulo importante no processo de raciocínio [14]. Por seu turno, Hannah Arendt nos fez lembrar que na obra de Immanuel Kant a imaginação era uma faculdade fundamental para o estabelecimento de esquemas que conectassem a sensibilidade ao entendimento. Assim, na Crítica da Razão Pura, a imaginação é uma faculdade sintética pura que produz o esquema necessário para compreensão de um conceito sensível puro, como os da geometria [15]. Ao passo que na Crítica do Juízo, o entendimento está a serviço da imaginação, na tarefa de encontrar a validade de um exemplo, sob princípios que aspirem a uma adesão universal, como se fora um conceito objetivo [16].
Ora, se Kant -alvo principal das críticas de Johnson- admite um papel essencial para a imaginação na formação das leis naturais e juízos estéticos, deve haver um bom motivo para sua exclusão no caso da moralidade. E há! Na Crítica da Razão Prática, apenas o entendimento e não a imaginação pode fornecer um tipo de lei próprio da moral, porque só desse modo se poderia preservar contra a transformação de esquemas imaginativos em símbolos místicos da razão prática e contra o empirismo que coloca os interesses particulares no lugar das disposições morais que constituiriam, segundo Kant, o alto valor da humanidade [17].
A teoria da lei moral em Kant é bem mais complexa que a versão ingênua apresentada por Johnson. Quem viu o documentário de Peter Cohen, Arquitetura da Destruição (1991) e tem o mínimo de informação sobre a história do ocidente sabe que não se pode deixar ao cargo de artistas frustrados ou pseudos artistas o governo de um estado. Pois acontece o que ocorreu em Roma, no tempo de Nero e do circo romano, ou na Alemanha, à época do terceiro Reich. “Tudo isso é história”, dirão alguns, mas há um exemplo próximo e caro aos brasileiros: a nefasta metáfora da malandragem, esperteza e do famigerado “jeitinho” -divulgada ostensivamente pelos meios de comunicação- gerou uma das sociedades mais corruptas, das existentes, e a nação comprovadamente mais injusta do mundo atual.
A imaginação por si só não é capaz de encontrar seus limites, as diversas teorias da vanguarda estética, no século XX, acabaram por dissolver completamente o conceito de arte. Sem um critério racional, argumentativo e discursivo, não é possível compreender como a imaginação constituirá um guia lúcido para ação que possa ser considerado correto ou errado, bom ou mal. Que a imaginação exista e influencie o pensamento, ninguém nega, mas que ela sirva de parâmetro de moralidade é algo que precisa ser defendido racionalmente e aceito por todos envolvidos na criação moral imaginativa. Adotar os métodos estéticos em moral é o primeiro passo para o rompimento do que resta da concepção moral contemporânea.

Notas

1. Veja JOHNSON, M. Moral Imagination, cap. 8, pp. 185-187.
2. Veja JOHNSON, M. Op. Cit, idem, pp. 187-189.
3. Veja JOHNSON, M. Idem, ibdem, pp. 189-192.
4. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, p.192.
5. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 193-196.
6. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 196-198.
7. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 198-199.
8. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 199-202.
9. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 202-203.
10. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 202-207.
11. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 207-209.
12. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 210-215.
13. Veja JOHNSON, M. Ibdem, ibdem, pp. 215-216.
14. Veja HOBBES, Th. “Da Imaginação”, in Leviatã, cap. 2.
15. Veja KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 178-180.
16. Veja KANT, I. Critique de la Faculté de Juger, § 22.
17.Veja KANT, I. Crítica da Razão Prática, A 121-126.

Referências Bibliográficas

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KANT, I. Crítica da Razão Pura; trad. Alexandre F. Morujão e Manuela P. Dos Santos. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
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____. Critique de la Faculté de Juger; trad. Alexandre J.-L. Delamarre et al. – Paris: Gallimard, 1985.

A Vitória do Consumidor contra o Monopólio

O sucesso surpreendente da greve de caminhoneiros autônomos, no final de maio de 2018, marcou a história dos movimentos de trabalhadores no Brasil. Seus resultados foram diretamente proporcionais ao completo fracasso da política de valorização das rodovias e da cadeia industrial dos combustíveis fósseis do país. Os manifestantes obtiveram êxitos em todas as suas reivindicações econômicas e ainda avançaram vários pontos em sua pauta política. Contou com apoio maciço da população, dos seus patrões, motoristas de veículos coletivos, motociclistas e explícito de agentes de polícia federal, bem como do consentimento tácito das forças armadas.
Nos seus vários aspectos econômicos, o movimento dos caminhoneiros revelou os erros históricos do abandono de alternativas sustentáveis para o transporte de cargas e passageiros, seja por ferrovias ou vias aquáticas – marítimas ou fluviais. Mostrou também os equívocos em se insistir na concentração de recursos no monopólio estatal da produção de combustíveis fósseis, sem investimentos significativos na pesquisa tecnológica por outras fontes de energia limpa e em veículos elétricos. Na contramão de países desenvolvidos mais a China, que já produzem carros elétricos com autonomia superior a 300 quilômetros, no Brasil não há qualquer esforço público ou privado nesse sentido, enquanto, na Europa, Alemanha, Reino Unido e França já programam o banimento de veículos poluentes para as próximas duas décadas.
A origem do problema energético, no Brasil, não está, entretanto, apenas no preço dos combustíveis, mas no monopólio estatal que distorce todo setor de transporte e energia. A empresa responsável pela produção nacional não vende só essa mercadoria energética essencial, mas sobretudo impostos travestidos em gasolina, diesel e álcool, para cobrir os rombos criados por má administração e corrupção no governo, seu principal controlador. Diante do achaque diário praticado pelo monopólio, os caminhoneiros, como principal grupo de consumidores, reagiram da maneira que podiam: simplesmente pararam. Sem concorrência de preços e alternativa para o produto, não há que se falar em mercado livre. Vence a disputa por preço quem tiver maior poder de pressão.
No âmbito político, a grande greve de maio de 2018 pôs na lona uma quadrilha formada de políticos corruPTos – continuação do governo anterior, composto por uma organização criminosa, que foi deposto em 2016. Escancarou o arrocho cometido pela política de preços de um monopólio estatal que serve para cobrir o rombo fiscal provocado pelos interesses escusos de seus administradores indicados por partidos políticos, responsáveis pela corrupção generalizada nas empresas públicas. Na esteira da greve, o governo vigente só não foi derrubado, graças à proximidade das eleições marcadas para o final de 2018.

Imprensa: desenho de Calixto Cordeiro (1877-1957).

O movimento serviu ainda para destacar a rápida mobilização da população feita através de mecanismos de comunicação móveis. Com a ajuda de programas de troca de mensagens dos dispositivos móveis, os caminhoneiros puderam se comunicar com colegas e familiares, a fim de se atualizarem sobre a situação e obterem recursos para manutenção da greve. O uso dessa tecnologia avançada desorientou os meios de comunicação tradicionais e a própria rede mundial de computadores que permaneceram desinformados sobre como era feita toda mobilização. Por conta disso, a divulgação de notícias falsas sobre a paralisação, com intuito de desmoralizá-la, revelou a forma como esses meios são empregados para manipulação da opinião pública. Porém, a comunicação direta dos manifestantes com a população permitiu desmascarar a trama fantasiosa de um jornalismo arcaico que ainda se acha capaz de influenciar o pensamento dos outros, como faziam os antigos oligopólios de comunicação antes do advento da INTERNET.
Todo tipo de especulação foi lançado pelos pseudointelectuais e comentaristas desinformados, expondo seu despreparo em contraste com a eficácia da manifestação dos caminhoneiros autônomos, em escala continental. A imprensa marrom e seus supostos especialistas caíram mais uma vez em descrédito. Acostumados que estavam em apenas reproduzir comunicados de assessorias de imprensas de políticos e seus patrocinadores, sem o contraditório direto das partes envolvidas.

David com a cabeça de Golias (1610), Michelangelo da Caravaggio (1571-1610).

A vitória do movimento dos caminhoneiros autônomos serviu, por fim, para demonstrar, no plano teórico, a superioridade do individualismo metodológico sobre o método sociológico. Sem o controle de sindicato, de patrão ou de um líder heroico, cada um dos caminhoneiros provou que foram seus interesses individuais e não os coletivos de um grupo que motivaram sua mobilização. Foram o custo do frete de cada um e seus prejuízos individuais que os levaram à greve, não a vontade de uma entidade classista imposta de cima para baixo.
A paralisação foi, portanto, uma resposta dos principais consumidores de combustíveis ao achaque diário, ao qual vinham sendo submetidos pela política de preços imposta pelo monopólio estatal. A demonstração de que os indivíduos organizados conseguem vencer qualquer grupo monopolista, por maior que este seja.

Paradoxos e Dilemas

Além dos argumentos falaciosos dos sofistas, Aristóteles elencou diversos paradoxos [opiniões opostas] – como os de Zenão de Eleia (490-449 a.C.). Os paradoxos surgem quando premissas verossímeis são listadas em um silogismo que leva a conclusões absurdas. Por exemplo, uma série derivada de sorites [acúmulo] conclui que se uma pessoa não fica careta se perder um fio de cabelo, desse modo se perder um fio de cabelo por vez, infinitamente, ela nunca ficará careca, pois n.0 = 0.

Paradoxos são como ilusões de ótica da razão. ESCHER, Maurits C. Répteis, 1943.

Em geral, isso acontece em proposições autorreferentes como a afirmação “Esta frase é falsa” que, se for verdadeira, aquilo que afirma é falso e, portanto, não pode ser considerada verdadeira. Do contrário, se for falsa, a afirmação é correta e, assim, não pode ser falsa. O paradoxo do mentiroso é uma espécie desse tipo de argumento. Wittgenstein, em Fichas (§691), propôs, como solução para “o mentiroso”, questionar a qual proposição especificamente o falante estaria a acusar falsidade e, em caso de recorrência, exigir que o objeto da frase fosse apontado, pois nenhuma proposição pode ser considerada completa sem que haja uma representação correspondente.
Existem vários raciocínios paradoxais formados na história da filosofia. Eles demonstram as limitações existentes na maneira de compreendê-los. Para evitar seus erros, se deve mostrar que uma das premissas agrupadas não pode ser justaposta à inferência corretamente. Cada proposição deve ser analisada separadamente em seu devido contexto. Na expressão “esta frase é falsa”, deve-se desconsiderá-la por ser indemonstrável. Não se pode provar diretamente que algo assim não exista ou não seja verdadeiro. Tal como a antítese da antinomia que impede a demonstração da não existência de um ser supremo. Do mesmo modo, os céticos não conseguem demonstrar que provas não existem, pois, se o fizessem, uma prova teria de ser apresentada. Só é possível provar efetivamente que algo exista ou seja verdadeiro. Para tanto, é o bastante exibir o objeto em questão ou explicitar os fatos narrados.

Dilemas

Os dilemas também geram conclusões inaceitáveis. Na sua forma mais comum, esses raciocínios revelam a situação de que qualquer que seja a decisão tomada, o resultado da ação será sempre o mesmo. Tal como no caso da responsabilidade, que não existe em um universo determinista, pois as ações das pessoas já estão determinadas e, por outro lado, em ambientes aleatórios, não se pode apontar nenhum responsável por seus atos. Tudo correria por conta do acaso.
A solução para os dilemas está na restrição das opções dadas e na negação da disjunção existente no silogismo. Desse modo, em dilemas do tipo dos Prisioneiros, a resposta é sempre cooperar entre si, a fim de se evitar a deserção mútua.

A dúvida em seguir o caminho correto. DÜRER, Albrecht. Hércules entre o Prazer e a Virtude.

Apostador

Também conhecida como falácia de Monte Carlo, a falácia do apostador supõe que resultados anteriores do lance de dados ou de uma roleta, por exemplo, podem influenciar futuras jogadas. Ao se arremessar uma moeda comum para o alto, as chances desta cair com o lado da coroa para cima é de 1/2. Para que uma sequência do mesmo resultado aconteça três vezes, a probabilidade é de 1/8 – (1/2n), onde n é igual ao número de lances, no caso 3. Contudo, na quarta vez em que for jogada, a probabilidade de cair coroa continua sendo de meio, embora a realização de uma série de quatro lados iguais seja de 1/16.
O fato de um resultado estar ocorrendo regularmente não implica que o mesmo venha a se repetir na vez seguinte. Apenas as chances de que uma sequência diminuem exponencialmente, enquanto a probabilidade de um resultado isolado se dar permanece a mesma. Se os meios usados para o sorteio forem honestos, não há memória nos resultados anteriores que justifiquem a aposta em uma jogada posterior fora da projeção matemática.

A probabilidade de uma aposta não depende da expectativa do apostador

O Paradoxo da Democracia Renovado

Platão (c. 429-347 a.C.) foi o primeiro filósofo a fazer uma classificação crítica das formas de governo. Em várias obras, a partir do diálogo Político, passando pelo A República e, por fim, as Leis, o antigo ateniense distinguiu sete regimes, conforme o número de pessoas no poder. Assim, monarquia e tirania teriam apenas um governante. Aristocracia e oligarquia eram governados por poucas pessoas. Enquanto na democracia e nas demagogias, uma multidão participaria das decisões políticas. Haveria ainda um sétimo tipo de constituição de caráter meritocrático que comandaria sua concepção de cidade perfeita, a Kallipolis, descrita em A República.
Sobre a democracia, a melhor configuração seria aquela que respeitasse rigorosamente e constituição estabelecida. Por outro lado, um governo do povo onde demagogos promovessem o descumprimento geral das leis seria sua pior formação. Ao prevalecer a força de um demagogo em relação aos demais, a democracia poderia se transformar em uma tirania [1].
O descaso com as leis escritas e os costumes acaba por mudar a democracia a ponto de criar a tirania, na interpretação platônica. Portanto, antes mesmo de Aristóteles (c. 384-322 a.C.) dizer, já se sabia que a democracia é a mais imperfeita das formas de governo, mas a melhor entre as piores [2]. Um tipo de “estratégia maximin” para governança que o próprio Aristóteles considerava “completamente viciada”, pois não haveria melhor entre as más, senão menos má [3].
Sob a influência dos antigos filósofos, na idade Média prevaleceram as monarquias, as aristocracias e suas deformações – tiranias e oligarquias, fundadas no direito divino de governar. Depois de Thomas Hobbes (1588-1679), a forma de organização política ganha uma interpretação contratualista que expõe os sustentáculos do governo, que passaram a ser vistos como baseados nos acordos e pactos vigentes estabelecidos e não pela força bruta dos indivíduos ou vontade divina. Tais acordos, firmados de modo explícito ou tácito, entre os cidadãos e o poder soberano, independem do número de pessoas no controle do estado, que tem por função principal garantir a paz e o bom ordenamento da sociedade. O estado existiria como um “homem artificial” com plenos poderes para agir na proteção e defesa de seus cidadãos, toda vez que os contratos fossem violados e a paz ameaçada [4].
Não obstante, para que essas ações pudessem ser efetivas, um poder absoluto teria de ser transferido ao soberano e um rígido cumprimento dos contratos exigido. Apesar de sua exposição brilhante, poucos filósofos estavam dispostos a endossar o absolutismo defendido por Hobbes, pelo simples motivo do soberano não ser infalível como a racionalidade do “homem artificial” proposto, mas uma pessoa de carne e osso, sujeita a erros e decisões arbitrárias contra suas próprias obrigações contratuais.
Por isso, tal como Aristóteles e antes dele Platão, os principais filósofos políticos até Immanuel Kant (1724-1804) defenderam que a aristocracia era a melhor forma de governo, sendo que toda dificuldade deste regime estaria na escolha justa dos melhores para o comando da sociedade. Foi só depois da Revolução Estadunidense de 1776, que pensadores políticos modernos e contemporâneos passaram a ver a democracia como um dogma com valor intrínseco para as sociedades ocidentais, graças ao sucesso do republicanismo na América do Norte. O sufrágio universal passou então a ser tido como a melhor maneira de escolher aqueles que fossem os supostos melhores entre os cidadãos livres e iguais.
Contudo, no final do século XX, o intenso debate entre multiculturalistas de um lado – principalmente Michael Sandel, Charles Taylor e Alaisdair Macintyre – e liberais – como John Rawls (1921-2002), o mais importante filósofo político do último quarto do século passado -, fez surgir na evolução da Teoria da Justiça o conceito de povos decentes, tal como foi concebido por Rawls, em Direito dos Povos (1999), no intuito de preservar a tolerância à liberdade de organização das sociedades. Rawls admitiu a possibilidade de incluir no concerto das nações soberanas povos não liberais, com suas respectivas doutrinas abrangentes, desde que adotassem uma concepção razoável de justiça e razão pública. A tolerância a povos não liberais dar-se-ia sob dois critérios: primeiro, tais sociedades não devem ter objetivos bélicos, devem usar de diplomacia, para atingir seus fins pacíficos e respeitar a ordem política e independência de outras sociedades; segundo, um povo decente assegura aos seus membros os direitos humanos – “uma sociedade escrava não dispõe de um sistema de direito decente, pois sua economia escravista é impelida por um esquema de comando imposto pela força” [5]-, todos os cidadãos possuem deveres e obrigações morais além dos legais e suas instituições jurídicas estão baseadas em noções de justiça e bem comum, e não apenas pela força.
Povos de tradição não liberal que seguissem esses critérios poderiam ser incluídas entre as Sociedades Razoáveis e considerados povos decentes. O que vale dizer que países muçulmanos, budistas, hindus ou fundados em outras doutrinas religiosas ou filosóficas com regimes políticos monárquicos ou autocráticos poderiam ser tolerados, além das democracias ocidentais. Destarte, mesmo Rawls abria espaço para outras formas de governo poderem reger razoavelmente a vida dos povos, livrando-se do dogma democrático e da acusação de etnocentrismo.

Casos Paradoxais

A discussão multiculturalista contra o processo de globalização e os desafios impostos pelos pós-modernos aos princípios liberais desaguaram em situações paradoxais que se sucederam, desde o final do século XX. Em 1990, um ano após a Argélia ter promovido uma reforma constitucional, a Frente Islâmica de Salvação (FIS), grupo que defendia o estabelecimento de um estado fundamentalista religioso naquele país, venceu as eleições locais e em seguida as gerais, em 1991, conquistando 188 cadeiras no parlamento e deixando apenas 43 para os outros partidos. A FIS caminhava claramente para a vitória no segundo turno da eleição presidencial, quando o exército resolveu intervir com um golpe de estado que teve o apoio tácito dos países ocidentais (principalmente, França e Estados Unidos). Banida para a clandestinidade, a FIS promoveu uma série de atentados que levou a Argélia à beira da guerra civil, em 1994, com a formação do Exército Islâmico de Salvação (EIS), seu braço armado. Somente depois de 1997, com a política de conciliação do ex-ministro da defesa, Liamine Zéroual, alçado à presidência nas eleições realizadas em 1995 que foram acusadas de fraude, o clima de revolta arrefeceu até o abandono da luta armada pelo EIS, em 2000.
No Brasil, país que Eric Hobsbawn (1917-2012) considerava com razões “um monumento de injustiça social” [6], as eleições de 2004, com as de 2016, apresentaram em determinadas regiões, como a Baixada Fluminense – região metropolitana do Rio de Janeiro -, alto índice de candidatos com passagem na polícia, chegando ao cúmulo de 40% dos postulantes ao cargo de vereador serem acusados em processos criminais. O município do Rio de Janeiro, capital do Estado que leva o mesmo nome, elegeu pelo menos oito vereadores acusados de crimes como narcotráfico, corrupção, estelionato etc. entre os 50 que compõem a sua Câmara de Vereadores. Porém, foi na pequena cidade de Unaí, localizada no Estado de Minas Gerais, no interior do país, que se registrou o caso mais grave de afronta aos princípios democráticos. Lá, a surpreendente maioria de 72% dos votos válidos, cerca de 28 mil eleitores, consideraram Antério Mânica (do Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB), acusado de praticar o escravismo em suas fazendas, formação de quadrilha e assassinato, habilitado suficiente para assumir o cargo de prefeito em Unaí, cujo número de cidadãos chegava a 51 mil.
Mânica teve o apoio do então governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB), e do vice-presidente da república à época, José Alencar (1931-2011, que pertenceu ao Partido Liberal – PL – e depois veio a fundar o Partido Republicano Brasileiro – PRB). O paradoxo da democracia ficou evidente. Ainda que o prefeito de Unaí fosse inocente das acusações lançadas pela Polícia Federal, os cidadãos daquela cidade não consideraram relevante o fato de um provável escravista e assassino governar os destinos de seu município pelos próximos quatro anos. Mânica, que estava preso preventivamente, teve, por conta disso, sua prisão relaxada, enquanto o regime democrático viu, no início do terceiro milênio, os ideais da modernidade retrocederem à idade das trevas, pela vontade livre e soberana dos cidadãos de Unaí. Não contentes com isso, esse candidato foi reeleito em 2008 e, só após o fim desses dois mandatos, é que foi condenado, no ano de 2015, em primeira instância, a mais de 90 anos de prisão, com direito a recursos em liberdade.
O paradoxo da democracia ressurgiu no mundo, em 2016, quando outros três sufrágios produziram resultados amplamente considerados antidemocráticos. A Grã-Bretanha votou a favor de um referendo que reivindicava o afastamento do país de uma integração política e economia com a União Europeia, da qual fazia parte desde 1973, sem adotar a união monetária. Foi uma reviravolta na tendência internacionalista das democracias ocidentais. Na Colômbia, outra consulta à população acabou por vetar uma primeira versão do acordo de paz que encerraria a guerra civil mantida por guerrilha e grupos paramilitares no interior do país. No final do ano, os Estados Unidos elegeram, o presidente Donald Trump, cujas propostas de campanha atentavam contra direitos cosmopolitas dos indivíduos, ao ameaçar dificultar a entrada de pessoas no país, por causa de sua origem ou credo religioso.

Soluções para o Problema

Em um regime onde uma multidão de interesses diferentes disputa a primazia de seus pleitos, como a democracia, não se pode exigir que as decisões tomadas pelo voto reflitam um comportamento orgânico racional, como demonstrou Kennett Joseph Arrow, através de seu teorema de Bem-Estar Social. Segundo Arrow, seria inviável descobrir uma relação de preferências da sociedade que satisfizesse as seguintes condições:
  1. A partir das preferências individuais, para uma função de bem-estar social garantir a preferência A sobre B, então esta função deve sempre favorecer A, se uma nova relação de preferências dos indivíduos fizer de A mais preferida do que antes;
  2. Quando A for parte do conjunto total de alternativas, se todos indivíduos preferirem A a B, a sociedade preferirá sempre A;
  3. Existe sempre um padrão de preferência do indivíduo que fará a sociedade escolher uma alternativa existente entre seus membros;
  4. Nenhum indivíduo pode ditar as suas preferências como sendo aquelas que a sociedade deve seguir. Não há uma função social que atenda essas quatro restrições, pois se uma sociedade preferir A a B, a despeito das preferências individuais, então não haveria necessidade de se levar o grupo à votação. Por outro lado, tal escolha também seria desnecessária se uma só pessoa fosse capaz de determinar o que a sociedade deve escolher, como no caso de uma ditadura. Portanto, nenhum indivíduo poderia gerar as preferências de uma sociedade, nem estas poderiam ser formadas pela vontade da maioria de votantes, daí a impossibilidade do bem-estar social se basear em preferências individuais. O que faz da eleição um mecanismo pouco eficiente nas democracias.
Grupos antagônicos podem fazer com que uma opção pior se sobreponha a melhores, devido à intransitividade de suas preferências. Embora a maioria dos cidadãos possa preferir A > B > C, em eleições de dois turnos, por exemplo, C pode vir a ser eleito, caso avance para uma segunda etapa e consiga o apoio do grupo rival (A ou B) de quem ficar de fora desta votação. Sem um déspota esclarecido que imponha a eleição de “A”, mantendo a transitividade das preferências em uma escolha racional pelo melhor, as democracias estão sujeitas a caírem, cedo ou tarde, em decisões paradoxais.
Também está afastada, por permanecer no campo da ficção científica, a possibilidade de se eleger um supercomputador como monarca absolutamente sábio como o “homem artificial” hobbesiano. A despeito das considerações de Herbert Alexander Simon (1916-2001), para quem, “a longo prazo, os computadores serão capazes de fazer tudo” [7].

[…]Eu gostaria de esperar um pouco antes de votar em um computador, e verificar antes a qualidade de seus programas! Suponho que uma resposta fútil poderia ser que não teríamos que avançar muito na ciência computacional para “produzir” um presidente tão qualificado quanto alguns dos mais recentes que os Estados Unidos tiveram! (SIMON, H. A. apud PESSIS-PASTERNAK, G. “O Computador Rei”, in Do Caos à Inteligência Artificial, p.232)

Na gravura de Calixto Cordeiro (1877-1957), a ilusão de que o voto representa a “soberania nacional”


A inteligência artificial ainda não foi capaz de programar uma máquina dessas que pudesse tomar as decisões políticas racionais em nossas sociedades. Por outro lado, democracias montadas em países sem tradição de respeito aos critérios mínimos de decência – como nos casos aqui citados da Argélia, Colômbia e do Brasil – deveriam ser excluídas coerentemente do rol das Sociedades Razoáveis. A última geração de brasileiros ainda não foi capaz de formar no Brasil um povo decente. O curto período de democratização vivido por este país não foi suficiente para moldar uma sociedade razoável.
Isto pode estar a indicar que para este estágio ser alcançado, não basta apenas difundir o sufrágio universal, sem, ao mesmo tempo, investir em uma cultura de consideração aos direitos humanos e conscientização política do poder do voto. Indica também as razões pelas quais a democracia não pode ser imposta como um dogma, pela força, a países sem a tradição de luta pelos direitos civis, por parte dos cidadãos. Os exemplos da Argélia, Colômbia e do Brasil são eloquentes. Entretanto, o mesmo erro se repete no Afeganistão, no Iraque e em outros lugares onde se quer impor a democracia a uma população historicamente hierarquizada.
Mesmo as chamadas “sociedades bem-ordenadas” – como seriam o Reino Unido e os EUA, na visão de Rawls – estão passíveis de cometerem erros que contradizem seus princípios maiores, por conta do teorema do bem-estar social. As democracias não podem ser impostas pela força, mas devem ser fruto de um amadurecimento da consciência dos cidadãos, para que o paradoxo da democracia não surja a cada eleição, agravando a desigualdade instalada ou gerando mais retrocessos. De Platão a Rawls, para uma democracia ser considerada plena e vigorosa, faz-se necessário que haja o estrito respeito a sua constituição, com seus cidadãos livres e iguais perante a lei. O que implica o fim da impunidade, dos abusos de autoridade e das violações de direitos.

Notas

1.Platão dividia os regimes políticos dessa maneira dicotômica, na qual a tirania seria oposta à monarquia e assim por diante. Porém, no livro VIII de A República (564a), ele afirma que o tirano surgiria do excesso de liberdade gerado pelas democracias que ignorassem o ordenamento das leis. A origem da democracia, por sua vez, se daria da corrupção da oligarquia, o oposto da aristocracia (ver PLATÃO. A República, 563e).
2.Veja ARISTÓTELES, Política, liv. IV, cap. 2, 1289b.
3.ARISTÓTELES, Op. cit., idem.
4.Veja HOBBES. Leviatã, introdução, p.5.
5.RAWLS, J. Direito dos Povos, part. II, § 8.2, pp. 84-85.
6.HOBSBAWN, E. Era dos Extremos, cap. 14, p. 397.
7.PESSIS-PASTERNAK, G. “O Computador Rei”, in Do Caos à Inteligência Artificial, p.232.

Referências Bibliográficas

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RAWLS, J. O Direito dos Povos; trad. Luís C. Borges. – São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Cosi Fan Tutte

A razão nunca erra. A razão falha sempre. Eis duas teses opostas muito fortes. A primeira era defendida pelos iluministas pioneiros e, hoje em dia, poucos são os que a sustentam sem vacilações. A segunda representa a posição cética clássica e atravessou o tempo com certo êxito. O falibilismo já não é contestado por nenhum filósofo contemporâneo lúcido. Porém, o racionalismo persiste não sem bons argumentos, pois, afinal de contas, a razão ainda é a principal característica humana a diferenciar essa espécie das outras. Várias teorias tentaram descrever, desde a antiguidade, os fatores que tornam o ser humano um animal racional, diferente dos demais. Dom divino ou natural, a racionalidade molda-se às exigências de cada época, conforme a imagem que os homens fazem deles mesmos.
Veja novo texto inserido na seção de Ética de Filosofia Contemporânea, em Discursus:

Natureza x Razão

Desde que Edward O. Wilson publicou Sociobiology (Sociobiologia), em 1975, a polêmica em torno da possibilidade de redução das ciências sociais à biologia gerou uma série de textos e atitudes radicais, seja a favor ou contra essa pretensão. De um lado, os sociólogos e cientistas sociais, em geral, a criticar os aspectos deterministas e supostamente autoritários do materialismo das ciências naturais. Por outro, os psicólogos, neurologistas e biólogos que não veem um argumento forte o suficiente para rebater os princípios inerentes à natureza humana. Uma colocação intermediária ainda está longe de obter o consenso de ambas partes.
Texto defende que no embate entre Seleção Natural x Escolha Racional, a razão ajudou a espécie humana a superar os obstáculos naturais. Veja na seção de Natureza e Sociedade de Filosofia Contemporânea.