Transformações

Alargamento de Barcelona feito por Cerdá

Vista aérea de bairro de Barcelona urbanizado por Ildefonso Cerdá Suñer (1815-1876). Fonte: Biblioteca Salvat de Grandes Temas.

Os estudos sobre a natureza e sociedade mudaram as concepções do mundo em volta e da maneira de viver dos agrupamentos humanos. Os conceitos variavam de acordo com o grau de entendimento obtido das pesquisas científicas e filosóficas. Ora a natureza era tida como algo perfeito e sublime a ser imitado e admirado, ora era vista como um universo imperfeito e ameaçador. A sociedade também teve suas diretrizes alteradas ao longo de sua história. Da participação irrestrita de poucos cidadãos livres nas decisões políticas para um maior número de eleitores interessados nos destinos da sociedade e com demandas crescentes de ampliação de seus direitos.
Uma cultura voraz consumidora dos recursos naturais disponíveis tomou abrangência global. Depois que os efeitos nocivos de sua indústria de transformação se tornaram nítidos, a preocupação com a sobrevivência no planeta passou ao centro das decisões políticas internacionais. Vários movimentos ecológicos surgiram no último século e os alertas de especialistas de diversos setores levaram à realização de inúmeros encontros internacionais voltados para avaliação das consequências dessas transformações. Mesmo correntes econômicas e políticas aversas à intervenção começam admitir a necessidade de se preparar para as mudanças climáticas acontecem com maior rapidez.
Alguns especialistas reunidos em torno do conservador Consenso de Copenhagen, promovido pelo economista Bjorg Lomborg em 2004, consideraram os custos de implementação das metas de emissões do Protocolo de Quioto muito dispendiosos. Melhor seria, na visão desses críticos, criar um fundo de pesquisa dedicado ao desenvolvimento de tecnologias para redução dos danos causados pelos gases poluentes[1]. Nesse ínterim, outras propostas polêmicas são especuladas por personalidades mistificadoras, como o físico e místico Fritjof Capra, autor de uma interpretação esotérica da teoria quântica (lançada no livro O Tao da Física, 1975), que agora se volta para questões da “alfabetização ecológica”.
Capra defende uma compreensão sistêmica e unificada da vida que integre as dimensões biológica, cognitiva e social, em todos os seus níveis, como uma teia interligada por redes complexas. para ser sustentável esse complexo deveria seguir cinco características básicas: interdependência, reciclagem, parceira, flexibilidade e diversidade. Esses seriam os cinco princípios ecológicos que levariam à sustentabilidade. Assim, “a sobrevivência da humanidade dependerá de nossa alfabetização ecológica, da nossa capacidade para entender esses princípios da ecologia e viver em conformidade com eles”[2].
A “alfabetização ecológica” sugere que seria possível extrair algum princípio de ação válido da mera integração da sociedade humana com as redes complexas que sustentam a vida no planeta. Esse argumento é obviamente falacioso pois do fato da natureza ser um sistema dinâmico que age de tal maneira, não significa que se deva agir da mesma forma. Não há nenhum valor intrínseco na natureza por ela mesma. Todo valor moral da exigência de se preservar as condições de vida no planeta reside no fato dele interessar a pessoas que dependem dela para poder existir. Sem a presença de um agente moral que lhe atribua um valor específico, nada mais possui valor por si mesmo.
O ineditismo do problema climático tem sido um campo fértil para especulações oportunistas. Por outro lado, as pesquisas avançadas das ciências da natureza e cognitivas ajudam a entender melhor as causas do comportamento predatório da espécie humana e da fonte de calor e poluição gerada pelas cidades. Do ponto de vista ecológico as crianças como todos os seres vivos procuram reter da natureza os recursos indispensáveis para sua sobrevivência momentânea e futura reprodução. Muitos dos fatores comportamentais são resultantes de estratégias evolutivas que foram adquiridas geneticamente devido à seleção natural. O que não significa que seja uma garantia de sucesso futuro. Cada organismo deve estar preparado para se adaptar às mudanças ocorridas no meio ambiente em sua geração.
De um modo geral, as sociedades bem sucedidas são aquelas que estimulam a cooperação entre seus membros e punem as deserções de modo eficaz. O movimento internacional das Cidades Educadoras, surgido em 1990, em Barcelona (Espanha), nesse sentido, visa portanto fazer das cidades um ambiente propicio para o desenvolvimento integro das pessoas. Entre outros compromissos importantes a Carta das Cidades Educadoras de 2004 estabelece que:

A cidade deverá garantir a qualidade de vida de todos os seus habitantes. Significa isto, um equilíbrio com o ambiente natural, o direito a um ambiente sadio, além do direito ao alojamento, ao trabalho, aos lazeres e aos transportes públicos, entre outros. Deverá promover ativamente a educação para a saúde e a participação de todos os seus habitantes nas boas práticas de desenvolvimento sustentável (Carta das Cidades Educadoras, princ. 11).

A história da humanidade privilegiou até agora os aglomerados urbanos como espaço efetivo das trocas comerciais e sociais. O sucesso aparente desta iniciativa produziu um excesso de demandas cujo custo ambiental se tornou uma sobrecarga para o planeta. A conscientização desse impacto e das propostas para minimizá-los são um bem público que movimentos como o Cidades Educadoras podem gerar aos países subdesenvolvidos que tentam se desenvolver de uma maneira insustentável que só leva a uma maior desigualdade, orientados por governos corruptos e demagógicos.

Ética do Cuidado

Muitas discussões em ética têm trazido à tona questões que abordam o cuidado que se deve ter com as ações tomadas hoje e que influirão na qualidade de vida das futuras gerações. Derek Parfit, filósofo britânico, destaca-se nesse cenário por abordar de forma precisa as consequências previsíveis de ações que possam afetar pessoas que ainda não nasceram. Seu livro Reasons and Persons (1984) tornou-se uma referência obrigatória para compreensão do conceito de pessoa e de racionalidades envolvidas deliberações morais.
Reasons and Persons traz pontos que foram tratados antes em artigos como “Future Generation: Further Problems” (1981), onde se discute, entre outros problemas, a avaliação de decisões políticas tomadas por um governo que afetarão a saúde e o bem estar das futuras gerações a longo prazo. Entre outros casos, analisa-se os resultados da implantação de uma usina nuclear, cujos defeitos ocorridos em sua construção atingirão as pessoas 200 anos depois. O foco da discussão é se o bem estar momentâneo e imediato de uma geração constitui uma razão que se sobrepõe aos prejuízos permanentes que serão impostos a pessoas que sequer existem. Um tipo de problema que envolve o conceito de pessoa e a preservação da natureza ao longo das gerações. O objetivo é saber se uma geração pode dispor dos bens materiais a seu alcance, sem se preocupar com quem virá depois a sofrer suas consequências: a consideração do direito de pessoas que ainda não nasceram por pessoas atuais[3].
Uma possível solução seria considerar todo princípio moral categoricamente válido para toda eternidade, como propunha Immanuel Kant (1724-1804), mais de dois séculos atrás[4]. Mas isso implica em pressupor uma capacidade racional perfeita que está além dos limites atuais da espécie. Ignorar os interesses das gerações futuras, por sua vez, resulta em desconsiderar os direitos das crianças atuais que não são consideradas como pessoas de posse plenamente formadas. O que diz respeito diretamente ao trabalho dos educadores que preparam as crianças para se tornarem cidadãos conscientes de seus direitos e deveres.
Assim sendo, não restaria outra postura senão condenar as políticas imediatistas que tentam garantir apenas o bem estar de curto prazo e o direito de uma geração aproveitar integralmente dos recursos naturais existentes. Todas essas questões e outras que podem ser levantadas sobre a natureza e sociedade estão em constante transformação por sua vinculação aos sistemas dinâmicos que fazem parte. Cabe ao educador da infância estar atento e pronto para refletir sobre elas.

Notas

1. Ver COPENHAGEN CONSENSUS. “The Results”
2. CAPRA, F. “Alfabetização Ecológica”, in A Teia da Vida.
3. Ver PARFIT, D. “Future Generations: Further Problems”, pp. 113 e ss.
4. Ver KANT, I. Crítica da Razão Prática, I part, liv. I, cap. 1, §7, A54.

Referências Bibliográficas

CAPRA, F. A Teia da Vida. – São Paulo: Cultrix e Amana-key, 1997.
CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS. – Gênova: Congresso Internacional das Cidades Educadoras, 2004.
COPENHAGEN CONSENSUS. Disponível na internet via http://www.copenhagenconsensus.com/CCC%20Home%20Page.aspx
KANT, I. Crítica da Razão Prática; trad. Artur Morão. – Lisboa: Edições 70, 1986.
PARFIT, D. “Future Generations: Further problems”, in Philosophy & Public Affairs, 11, nº2, 1981.